Mais para Buster Keaton do que para Charles Chaplin

Num mundo onde até monstros sagrados como Martin Scorsese já declararam que, doravante, só pretendem filmar em 3D, fazer um filme mudo foi sem dúvida uma aposta de risco do diretor francês Michel Hazanavicius. Todavia, como não é de hoje que os franceses têm no cinema e na música produzidos nos EUA, suas mais confessas admirações nas relações nem sempre de simpatia com aquele país, talvez não surpreenda tanto uma verdadeira ode de amor à era do cinema mudo de Hollywood, como é o caso de “O Artista”, ganhador de cinco estatuetas do Oscar deste ano, incluindo melhor filme, diretor e ator — Jean Dujardin, que já havia faturado o mesmo prêmio em Cannes.

Talvez para equilibrar o suposto obstáculo da mudez na grande maioria das cenas (embora não em todas), bem como para reforçar a paixão assumida pelo cinema estadunidense, os dois gêneros pelos quais “O Artista” transita não poderiam ser mais populares, nem mais tipicamente hollywoodianos: a comédia romântica e o musical — ainda que, no último caso, por motivos óbvios num filme mudo, com números restritos à dança. E ainda que essa mesma restrição não se repita no falado “Cantando na Chuva”, de 1952, é neste grande clássico dirigido por Stanley Donen e Gene Kelly, que o filme mais recente, também roteirizado por Hazanavicius, bebe desavexadamente para conceber sua trama.

Ambos retratam o mesmo dilema, entre as décadas de 20 e 30 do século passado. Em “Cantando na Chuva”, Gene Kelly é a estrela do cinema mudo Don Lockwood, que encontra grandes dificuldades para fazer a transição ao cinema falado. Mesmo crítica da sua maneira de interpretar, baseado em expressões faciais e gestos exagerados, a dançarina e candidata a atriz Kathy Selden, interpretada por Debbie Reynolds, acaba se apaixonando por Loockwood. E, transposta à tela, a parceria amorosa salva a carreira do astro decadente, ao mascarar sua deficiência nas falas com suas habilidades na dança, transformando seu novo filme, de um constrangedor épico romântico de capa e espada, num musical de sucesso.

Em “O Artista”, Dujardin (muito parecido com Gene Kelly quando jovem) é George Valentin, estrela do cinema mudo que faz sucesso em pares românticos de Hollywood ao lado de “louras burras”, assim como Lockwood em “Cantando na Chuva”. A novidade fica por conta do acréscimo original do pequeno cão Jack (na verdade, chamado Uggy), parceiro inseparável de Valentin na vida e nas telas.

Também como Lockwood, o personagem de Dujardin tem dificuldades na passagem para o cinema falado. E aqui, algumas outras diferenças, já que o ator é de cara descartado pelo estúdio nessa transição, tentando, por conta própria, bancar sua insistência no cinema mudo. Embora com resultado igualmente desastroso, pelo menos o personagem de Gene Kelly chega a tentar atuar falando, enquanto Valentin se nega terminantemente, numa recusa que ganha um caráter obsessivo e quase suicida, gerando algumas interessantes alucinações em contraponto com a mudez do filme.

Embora em “Cantando na Chuva” a consumação do romance real na vida e sua consequente transição em musical nas telas sejam mais rápidas, e menos sofridas, é também uma dançarina e atriz iniciante, elevada à condição de estrela com o cinema falado, que acaba salvando a carreira (e a vida) de Valentin. No caso, a interessantíssima Peppy Miller, interpretada pela bela franco-argentina Bérénice Bejo, esposa na vida real do diretor/roteirista (e homem de sorte) Hazanavicius.

Elencadas todas as “coincidências” (aquelas que o filósofo alemão Friederich Nietzsche dizia não haver) com o falado “Cantando na Chuva”, se tivéssemos que buscar um paralelo para o caráter cômico de “O Artista” dentro do próprio cinema mudo, poder-se-ia dizer que o ganhador do Oscar de 2012, por seu humor mais sutil, está mais para Buster Keaton do que para Charles Chaplin.

Para a grande maioria que não tem a menor ideia de quem foi o primeiro, vale inclusive como possível primeiro passo no interesse para uma fase do cinema na qual muita gente boa da vida real, assim como o Valentin das telas, segue até hoje afirmando terem sido realizadas as maiores obras de uma tal de sétima arte.

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