FDP! pelos olhos de quem nos viu de fora, digno da nossa grandeza

Desde que foi aberto na quarta-feira (23) da semana passada, até seu encerramento quatro dias depois, no último domingo (30), o Festival Doces Palavras (FDP!), deixou impressões duradouras em quem dele participou. Poucas, no entanto, foram até agora externadas com as mesmas sensibilidade e sofisticação do escritor capixaba Fabio Bottrel, aqui, na democracia irrefreável das redes sociais. Bom ver Campos com olhos emprestados de quem vem de fora e constatar que, apesar de todos os pesares, ainda podemos produzir coisas muito boas, quando movidos pelo que nos une, não o que separa.

Aos leitores mais atentos à questão técnica, pode ser interessante o exercício de buscar no refinamento da prosa do Bottrel as referências implícitas aos campistas Adriana Medeiros, Ilana Vaz, Alcir Alves, Artur Gomes, Adriano Moura e Marcelo Sampaio. Quem não conseguir, como este blogueiro, que por conta própria só foi capaz de achar duas, não tem problema. A comunhão desabrida de emoções basta para adoçar a boca pela palavra:

 

 

FDP! enquanto a fogueira do Pontal queimava (foto de Rodrigo Silveira - Folha da Manhã)
FDP! enquanto a fogueira do Pontal queimava (foto de Rodrigo Silveira – Folha da Manhã)

 

 

Fabio Bottrel, escritor
Fabio Bottrel, escritor

Festival Doces Palavras

 

— Aonde vais?

— Vou passear com o Tango, comer doces e escutar poesia.

Era o que dizia, assim que acordava, para quem perguntava, com sorriso na cara, pois era Festival Doces Palavras.

Durante quatro dias desejei ser dois, três ou quatro, para estar ao mesmo tempo nas oficinas, shows ou no teatro. Lavei minha alma antes do meu corpo, quando corria com esforço para casa, umedecer a fotossíntese da pele e voltar, ainda havia o que dançar, pois ali, todos escutavam a música.

Na manhã seguinte vi o barro virar gente, bem na minha frente. Vi uma mulher deixar de ser pele para ser poesia, e me dei rios de alegria. Escutei o timbre doce nos olhos dos meus amigos, são minha família.

E lá na, lua, ali, do ladinho do Bar Doce Bar, meus lábios, olhos e ouvidos abraçados com a poesia mais bonita. Não havia mais ninguém, todos estavam imersos nas peças, shows e poemas enquanto a fogueira do Pontal queimava. Naquela noite minh’alma se perdeu no seu sorriso, caso a encontre, peça, por favor, para que ela se perca novamente.

Encontrei-me com a dedicação incansável dos organizadores, ao se, ver, e não se encantar, é coisa de gente que gosta de resmungar. Fui para o samba sambar, coisa de sampa-rio, de tanta gente que tinha.

A praça foi palco do abraço entre reis da távola redonda e mouros, foi tanta beleza, que pedi desculpas a Campos se minha presença não for digna de sua grandeza.

Ao fim da noite, quando a última palavra doce foi pronunciada, adeus, não havia mais corpo, a alma não estava em mim, e já não tinha mais para onde ir.

 

Ponto Final — O que separou você do FDP!, caro leitor?

Ponto final

 

 

FDP! (I)

Todos que compareceram ao Festival Doces Palavras (FDP!), em quaisquer um dos dias entre as últimas quarta e domingo, saíram da efervescência cultural que tomou conta do entorno da praça do Liceu com duas certezas: foi muito bom, mas poderia ter dado muito mais gente. Chega a ser curioso notar que até pessoas ligadas de alguma maneira à arte e à cultura, sempre a cobrar opções da cidade nestas áreas, sequer tenham dado as caras em pelo menos um dos muitos debates, oficinas, lançamentos de livros, apresentações de música e teatro, que se sucederam durante cinco dias nos dois coretos e nas tendas instaladas da praça do Liceu, além da própria escola, da Villa Maria e do auditório da OAB.

 

FDP! (II)

Constatado que quem cobra opções e não comparece quando estas são ofertadas de graça, em praça pública, com farto anúncio na mídia, é o mesmo público que lota as cadeiras pagas do Trianon, para assistir ao artista global da vez correr a sacolinha pelo interior, o incauto que observa as contradições desta taba goitacá chega a ter ecoado aos ouvidos, em forma de oração, os versos de Cazuza: “Vamos pedir piedade / Senhor, piedade / Pra essa gente careta e covarde / Vamos pedir piedade / Senhor, piedade / Lhes dê grandeza e um pouco de coragem”.

 

FDP! (III)

Grandeza e coragem não faltaram à Academia Campista de Letras (ACL), à Associação de Imprensa Campista (AIC) e à Companhia de Desenvolvimento do Município de Campos (Codemca), bem representados por seus respectivos presidentes: os professores Hélio Coelho, Vitor Menezes e Wainer Teixeira. Se os dois primeiros provaram que ainda existe sociedade civil organizada em Campos, o último atestou ainda haver algum senso de direção num governo municipal perdido. Com toda sua diversidade, o FDP! lecionou a didática daquilo que une, mais do que separa. Credor da cultura do município desde sua gênese, bem que merecia melhor paga do respeitável público: você!

 

Publicado hoje na coluna “Ponto final”, na Folha da Manhã

 

Poema do domingo — “Choro e quero beber a água do choro”

“Li o ‘Eu’ na adolescência e foi como se levasse  um soco na cara (…) Ao espanto sucedeu intensa curiosidade. Quis ler mais esse poeta diferente dos clássicos, dos românticos, dos parnasianos, dos simbolistas, de todos os poetas que eu conhecia (…) Augusto dos Anjos continua sendo o grande caso singular da poesia brasileira”.

(Carlos Drummond de Andrade)

 

Em 2002, quando do centenário de publicação de “Os Sertões”, escrevi num caderno especial publicado na Folha, após uma expedição a Canudos, no sertão da Bahia, que a obra prima de Euclides da Cunha (1866/1909) foi a primeira em nossa literatura a cessar com a importação de modelos da Europa, realinhando para o interior do Brasil as atenções desde o seu descobrimento voltadas às novidades que chegavam pelo litoral. E se a encipoada prosa euclideana plantou em terra seca as sementes do Modernismo, “fazendo brotar (Graciliano) Ramos e (Guimarães) Rosas em meio a (Glauber) Rochas”, caberia não por coincidência a um seu leitor atento e de primeira hora fazer o mesmo em nossa poesia, substituindo a partir dela o interior de um país pelo seu próprio enquanto homem.

Fruto da mesma decadência do senhor de engenho nordestino em choque com os avanços à luz da ciência prometidos pela ainda recém-nascida República positivista, que na virada dos séculos 19 ao 20 apresentara a fatura de 30 mil vidas humanas perdidas na Guerra de Canudos (1896/97), o paraibano Augusto dos Anjos (1884/1914) publicou em vida um único livro, em 1912, não ao acaso intitulado “Eu”. Classificado muitas vezes como simbolista e vivendo num tempo em que o parnasianismo dominava a poesia brasileira, Augusto tem sua condição de precursor do Modernismo defendida com afinco por gente como o poeta contemporâneo Ferreira Gullar:

 

— Não apenas o nível de complexidade a que Augusto conduz a expressão verbal, como também o rompimento com a concepção literária acadêmica, o situam como precursor da poesia que se fará no Brasil depois do movimento de 22 (…) Pode-se dizer que, ao longo do processo poético brasileiro até Augusto dos Anjos, quase sempre o poeta ocultou o homem. Talvez por isso mesmo, mas não só por isso, é que, na obra do poeta paraibano, o homem aparece de maneira tão escandalosa, a exibir seus intestinos, seu cuspo, sua lepra, seu sexo, sua miséria. A poesia de Augusto dos Anjos é fruto da descoberta dolorosa do mundo real, do encontro com uma realidade que a literatura, a filosofia e a religião já não podiam ocultar. Nasce do seu gênio poético, do seu temperamento especial, mas também de fatores culturais que a determinaram.

 

Esse pendor do poeta pelo escatológico, esse decantado “mau gosto”, assim como o cientificismo datado e muitas vezes reducionista da sua linguagem, têm contribuído para afastar leitores mais sensíveis à superfície, muito embora sua obra tenha conquistado ao longo dos anos uma popularidade incomum para poetas no Brasil, notadamente em seu Nordeste natal. Pelos mesmos motivos que a mineira Itabira fez de Drummond (1902/87) um poeta da memória, o engenho Pau D’Arco, no atual município paraibano de Sapé, onde Augusto nasceu e se criou, nunca deixaria de bater ponto em seus versos, mesmo depois de vendido em consequência da decadência financeira da família — igual em tempo, espaço e motivo a de tantas outras numa elite nordestina rural, patriarcal e ferida de morte com o avanço do capitalismo sobre o interior do país.

Em sentido contrário, Augusto foi também um homem ilustrado do seu tempo, formado em 1907 na Faculdade de Direito do Recife, onde teve o pensamento moldado na famosa “Escola do Recife”, movimento filosófico baseado no materialismo e no evolucionismo europeus, que alcançou grande força a partir de Tobias Barreto (1839/89). Influenciado pela teoria de evolução de Charles Darwin (1809/82), pela sociologia positivista de Auguste Comte (1798/1857), pelo pessimismo materialista de Arthur Schopenhauer (1788/1860), pelo liberalismo clássico de Herbert Spencer (1820/1903), pela monera primeva de Ernst Haeckel (1834/1919), o poeta passou a encarar a morte como fato material e, toda a existência, como consequência amoral de um simples, mas inexorável processo químico.

Se seu Nordeste não conhecia as conquistas científicas ou os avanços sociais e econômicos dos quais essas filosofias eram frutos, elas foram abraçadas como explicação racional ao desmoronamento do seu mundo pré-industrial. Diante da miséria localizada das famílias tradicionais falidas, dos caboclos e negros famintos pela seca, o niilismo que aprendera nos livros foi aceito como justificativa de uma tragédia universal. Diferente dos modernistas que cantariam a ciência com louvor e esperança, Augusto enxergou nela apenas a aceleração rumo ao Nada.

Diante d’Ele, questionando sua existência de Hamlet-Severino, como nunca ninguém fizera nestas terras de Vera Cruz, o poeta esculpiu paralelepípedo em verso muito antes de Chico Buarque, contou as telhas do teto sob a luz da lua minguante, chorou e bebeu a água do choro:

 

 

Augusto dos Anjos

 

 

Tristezas de um quarto minguante

 

Quarto Minguante! E, embora a lua o aclare,

Este Engenho Pau d’Arco é muito triste…

Nos engenhos da várzea não existe

Talvez um outro que se lhe equipare!

 

Do observatório em que eu estou situado

A lua magra, quando a noite cresce,

Vista, através do vidro azul, parece

Um paralelepípedo quebrado!

 

O sono esmaga o encéfalo do povo.

Tenho 300 quilos no epigastro…

Dói-me a cabeça. Agora a cara do astro

Lembra a metade de uma casca de ovo.

 

Diabo! Não ser mais tempo de milagre!

Para que esta opressão desapareça

Vou amarrar um pano na cabeça,

Molhar a minha fronte com vinagre.

 

Aumentam-se-me então os grandes medos.

O hemisfério lunar se ergue e se abaixa

Num desenvolvimento de borracha,

Variando à ação mecânica dos dedos!

 

Vai-me crescendo a aberração do sonho.

Morde-me os nervos o desejo doudo

De dissolver-me, de enterrar-me todo

Naquele semicírculo medonho!

 

Mas tudo isto é ilusão de minha parte!

Quem sabe se não é porque não saio

Desde que, 6ª feira, 3 de maio,

Eu escrevi os meus Gemidos de Arte?!

 

A lâmpada a estirar línguas vermelhas

Lambe o ar. No bruto horror que me arrebata,

Como um degenerado psicopata

Eis-me a contar o número das telhas!

 

— Uma, duas, três, quatro… E aos tombos, tonta

Sinto a cabeça e a conta perco; e, em suma,

A conta recomeço, em ânsias: — Uma…

Mas novamente eis-me a perder a conta!

 

Sucede a uma tontura outra tontura.

— Estarei morto?! E a esta pergunta estranha

Responde a Vida — aquela grande aranha

Que anda tecendo a minha desventura!

 

— A luz do quarto diminuindo o brilho

Segue todas as fases de um eclipse…

Começo a ver coisas de Apocalipse

No triângulo escaleno do ladrilho!

 

Deito-me enfim. Ponho o chapéu num gancho.

Cinco lençóis balançam numa corda,

Mas aquilo mortalhas me recorda,

E o amontoamento dos lençóis desmancho.

 

Vêm-me à imaginação sonhos dementes.

Acho-me, por exemplo, numa festa…

Tomba uma torre sobre a minha testa,

Caem-me de uma só vez todos os dentes!

 

Então dois ossos roídos me assombraram…

— “Por ventura haverá quem queira roer-nos?!

Os vermes já não querem mais comer-nos

E os formigueiros já nos desprezaram”.

 

Figuras espectrais de bocas tronchas

Tornam-me o pesadelo duradouro…

Choro e quero beber a água do choro

Com as mãos dispostas à feição de conchas.

 

Tal uma planta aquática submersa,

Antegozando as últimas delícias

Mergulho as mãos — vis raízes adventícias —

No algodão quente de um tapete persa.

 

Por muito tempo rolo no tapete.

Súbito me ergo. A lua é morta. Um frio

Cai sobre o meu estômago vazio

Como se fosse um copo de sorvete!

 

A alta frialdade me insensibiliza;

O suor me ensopa. Meu tormento é infindo…

Minha família ainda está dormindo

E eu não posso pedir outra camisa!

 

Abro a janela. Elevam-se fumaças

Do engenho enorme. A luz fulge abundante

E em vez do sepulcral Quarto Minguante

Vi que era o sol batendo nas vidraças.

 

Pelos respiratórios tênues tubos

Dos poros vegetais, no ato da entrega

Do mato verde, a terra resfolega

Estrumada, feliz, cheia de adubos.

 

Côncavo, o Céu, radiante e estriado, observa

A universal criação. Broncos e feios,

Vários reptis cortam os campos, cheios

Dos tenros tinhorões e da úmida erva.

 

Babujada por baixos beiços brutos,

No húmus feraz, hierática, se ostenta

A monarquia da árvore opulenta

Que dá aos homens o óbolo dos frutos.

 

De mim diverso, rígido e de rastos

Com a solidez do tegumento sujo

Sulca, em diâmetro, o solo um caramujo

Naturalmente pelos mata-pastos.

 

Entretanto, passei o dia inquieto,

A ouvir, nestes bucólicos retiros,

Toda a salva fatal de 21 tiros

Que festejou os funerais de Hamleto!

 

Ah! Minha ruína é pior do que a de Tebas!

Quisera ser, numa última cobiça,

A fatia esponjosa de carniça

Que os corvos comem sobre as jurubebas!

 

Porque, longe do pão com que me nutres

Nesta hora, oh! Vida, em que a sofrer me exortas

Eu estaria como as bestas mortas

Pendurado no bico dos abutres!

 

Pau d’Arco, maio, 1907

 

Artigo do domingo — Respostas, senhores! Respostas!

Saúde doente 1

 

 

Jornalista e blogueiro Arnaldo Neto
Jornalista e blogueiro Arnaldo Neto

Por Arnaldo Neto

 

Interferências políticas geram o caos do serviço de saúde pública em Campos. Da afirmativa do diretor da Faculdade de Medicina de Campos, Nélio Artiles, publicada (aqui) no domingo passado, sobre a politização das Unidades Básicas de Saúde (UBSs) à grave denúncia do médico sanitarista e do trabalho Erik Schunk (aqui), sobre medicamentos usados por vereadores como moeda de troca junto à população, na edição de ontem, a série de reportagens da Folha da Manhã, com o objetivo apontar princípios para mudar o atual cenário da cidade, evidenciou que a raiz de todo mal no serviço de saúde pública está em entregar aos aliados, como forma de recompensa ou barganha, a administração de ofícios que deveriam ser técnicos para garantir o acesso pleno à serviços assegurados pela Constituição.

Usar do poder político em pontos administrativos não é algo que costuma terminar bem em lugar nenhum, muito menos no Brasil. Para os de memória curta, a Operação Lava Jato ainda está em curso e sua gênese — vejam só que coincidência — tem relação com os indicados por políticos para ocupar cargos técnicos naquela que já foi a empresa de maior orgulho do país, a Petrobras.

Não se faz omeletes sem quebrar os ovos. É necessário retirar da administração pública esse modelo de “sociedade institucional”, que a população campista aponta na gerência dos serviços de saúde, para que se venha a obter resultados futuros. O atual cenário nacional não é dos melhores, mas a esperança de grande parte dos brasileiros é que passada as turbulências da corrupção institucionalizada evidenciada pela Operação Lava-Jato, o Brasil se aprume no caminho do desenvolvimento e, condenados os culpados, possa se chegar um dia ao utópico “país melhor”.

Da mesma forma deve acontecer em Campos. Não dá para imaginar que a afirmativa do médico sanitarista ao dizer que “é muito comum que em salas de atendimento de vereadores tenham todos os medicamentos que faltam nos postos de saúde” passe despercebido, que não haja investigação. O administrador público tem que apurar a origem de tal denúncia, mostrar ao povo quem usa deste artifício e, no mínimo, limar da vida pública. Os 25 representantes da Casa do Povo, inclusive, devem esclarecer essa questão. Como as denúncias não citam nomes, são postos em igualdade todos aqueles que têm uma cadeira na Câmara de Campos. Ser acusado de reter medicamento para usar como troca para fins eleitoreiros não causa revolta numa Casa que tem três médicos na atual legislatura? O silêncio nesta questão é tão perturbador quanto à sensação que a denúncia pode ser verdadeira.

Seria audácia e egocentrismo sem limites do grupo que se perpetua no poder há quase três décadas creditar toda reclamação do cidadão quanto à qualidade da saúde pública apenas ao intuito de perseguição partidária. Quem precisa de um remédio na farmácia básica, passa a noite em uma fila para conseguir uma consulta no Sistema Único de Saúde (SUS), na maioria das vezes pouco se importa com quem detém o poder. Aliás, muitos ajudaram a eleger quem hoje tem a caneta na mão e acreditaram que teriam serviços melhores.

Além dos princípios, senhores, respostas! Não há perspectiva de melhora enquanto toda informação, inclusive com os erros administrativos, estiverem guardados a sete chaves, envoltos numa “caixa preta” para proteger os seus, em detrimento ao que deveria ser melhor para todos.

 

Publicado hoje na Folha da Manhã