Artigo do domingo — Referências

 

Zé Eugênio (Foto: Facebook)
Zé Eugênio (Foto: Facebook)

Por Aluysio Abreu Barbosa

 

Já escrevi e repeti mais vezes do que gostaria: nada dá a sensação do tempo passando sobre nós, do que quando ele não passa mais na vida de quem nos servia de referência. No dia de Natal, na morte do cantor e compositor britânico George Michael (1963/2016), escrevi e me lamentei, mais que pela pessoa que não conheci, pela perda do autor e intérprete de parte da trilha sonora de uma geração.

Só quem foi adolescente e jovem entre os anos 80 e 90 do último século do milênio passado, sabe o orgulho que deu fazer parte presente daquela efervescência. Da música, ao cinema, aos esportes, aos avanços da tecnologia, ao fim da Ditadura Militar no Brasil (1964/85) e da Guerra Fria (1945/91), no mundo, não há para onde se olhar retrospectivamente sem orgulho do que era produzido enquanto cumpríamos nossos ritos de passagem à maturidade.

À parte quaisquer diferenças individuais, tínhamos esperança coletiva num mundo melhor do que este tão estranho no qual nos encontramos — e constatamos, talvez em desencanto, também ter ajudado a construir.

Conheci José Eugênio Koch Torres, o Zé Eugênio, nos anos 1990. Três anos mais velho que eu, sabíamos quem éramos desde a década passada. Mas só passamos a conviver, a partir de amigos comuns, quando a diferença de idade tão “distante” na adolescência se apequenou naturalmente na juventude e idade madura.

Formal e de poucas palavras no contato inicial, se revelava verborrágico e muitas vezes assertivo após alguma intimidade. Numa mesa de bar ou reunião entre amigos, com a voz naturalmente mais solta pela bebida, não havia como “competir” com Zé Eugênio na dominância do debate. Sobre qualquer assunto, costumava dar e sustentar sua opinião com firmeza e eloquência — mesmo que, eventualmente, fosse apenas um “chute”.

Quando ele inclinava o queixo para baixo, franzia o cenho e encarava por cima dos olhos, numa expressão facial bem característica, era capaz de conferir importância com sua voz grave ao argumento, a priori, mais despretensioso. E, a despeito do desagrado do eventual interlocutor, era sempre o mais sincero possível.

Certo ou errado, não cultivava obstáculos de hipocrisia social entre mente e boca. E, embora nunca tenha lhe dito, o admirava por isso.

Fui algumas vezes à sua casa de construção antiga e bem conservada na rua Aquidaban. E nela, quando conseguia cavar a muito custo um hiato nos monólogos de Zé Eugênio, mantivemos aquelas conversas inteligentíssimas das quais, no dia seguinte, ninguém nunca se lembra.

De férias em Atafona, com meu filho, dolosamente desligado do mundo para tentar colocar corpo e leitura em dia, fiquei ainda ilhado de telefonia celular desde o último domingo, como todos em São João da Barra, por conta da competência natimorta da Vivo. Neste isolamento que me impus e que me foi imposto, fui de carro à casa da família Tinoco em Atafona, no final da manhã de ontem, quando soube que Zé Eugênio havia morrido no dia anterior, na sua casa, na Aquidaban, ponto de encontro de uma geração. Tinha acabado de voltar de Atafona.

Confesso que o impacto inesperado da notícia me deixou atordoado. Não só por conhecer e gostar de Zé Eugênio há cerca de três décadas, mas porque estive com ele apenas cinco dias antes, na segunda-feira. E sem que nada indicasse isso naquele momento, embora represente bastante agora, nosso último encontro não poderia ter sido mais emblemático: numa mesa de alvenaria sob a frondosa sombra do ficus italiano, também chamado de falsa seringueira, árvore guardiã e símbolo do Carlinhos Pisca-Pisca, boteco mais tradicional de Atafona.

Nesses encontros inesperados e prazerosos que compõem a rotina do verão atafonense, e o distinguem da estação em qualquer outro pedaço de litoral do planeta Terra, ele estava com duas tias; e eu, esperando quem chegaria de ônibus. Enquanto o fazia, sentei com eles e conversamos por cerca de meia hora, tempo de dividirmos, velas enfunadas ao vento nordeste, nossas duas últimas garrafas de cerveja.

Geralmente cético, Zé estava esperançoso no novo governo municipal de Campos, cuja posse, como assessor jurídico do vereador Neném (PTB), outro amigo comum, ele presenciara. Muito embora, como advogado, tivesse críticas à atuação do Judiciário e do Ministério Público goitacá na condução da operação Chequinho. E, se não as tivesse, não seria Zé Eugênio.

Com sua morte, me solidarizo, sobretudo, com sua mãe, Estelmar, e sua esposa, Bethânia. Para elas, como aos amigos da mesma geração, muitos bem mais próximos do que eu, se vai aquilo que Fernando Pessoa (1888/1935) definiu pela pena de Álvaro de Campos: “Um ponto de referência de quem sou”.

 

Publicado hoje (07) na Folha da Manhã

 

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