Fernando Leite – Linda Mara e a saga de “Augusto Matraga”

Vivíamos os primeiros anos da década de 1980, do último século do milênio passado, embora o calendário se despedisse, cercado de superstições e medos, o Brasil experimentava o”melhor dos tempos”. A abertura política retirava, gradualmente, uma tampa de chumbo sobre nossos sonhos e a arte florescia, vigorosa, irrequieta, ansiosa por espaços. Aqui, na vila formosa de São Salvador dos Campos, um longo domínio político conservador vazava e o que era preciso acontecer, começava a tomar forma e rosto e corpo.
A Faculdade de Filosofia, era, então, palco de todas as liberdades, fórum político, por onde passaram todos os candidatos a governadores do Estado, na campanha de 1982, vencida por Leonel Brizola e onde, ainda experimentamos o luxo de receber e conversar, visivelmente, emocionados, com o velho “Cavaleiro da Esperança”, Luís Carlos Prestes, recém-chegado ao Brasil, depois de longo exílio. Era a lenda, “a tempestade de homem”, como diria Oswald de Andrade, bem diante de nós e impressionava por sua fragilidade física. Sem contar luminares da cultura nacional.
Éramos um grupo grande e todos muito jovens. Vencemos as eleições para o Diretório acadêmico e instituímos uma “dinastia”, nos revezando nos 4 anos do curso de Jornalismo, no comando do centro dos estudantes. Foi nesse período que eu conheci essa moça. Uma paranaense, filha de dona Maria e seu Malaco, voluntariosa e, como todos nós, cheia de sonhos. Linda Mara é o nome dela. Da amiga que julguei ter feito lá no alvorecer dos anos 80. Abríamos a alameda do futuro com o desassombro da juventude.
Sei que, a exemplo do que dizia o poeta Torquato Neto, “vou desafinar o coro dos contentes”, mas também citando o designer gráfico, Sérgio Provisano, sou “um cavaleiro das causas perdidas” e, como tal, devo abrir mão do conforto de gritar o que significativa parcela da sociedade quer ouvir e falar, mansamente, o que penso.
A vida e seus desígnios e a política nos levaram por caminhos diversos. Mais apropriado: antagônicos.
A jornalista Linda Mara encarnou a carranca do longevo governo passado, gestão do casal Garotinho, de quem é fiel escudeira e sua melhor tradução. Contra ela migraram todos os ódios e ela os replicava de volta com igual intensidade. Exercia seu poder de mando, subalterno ao casal, com visível gosto e dessa forma, amealhou inimigos aos cachos dentro e fora da administração. Sua prisão, por razões de cunho eleitoral, foi catártica. Guardando as proporções e os motivos teve o mesmo efeito espetaculoso, estético, das cabeças raspadas do Sérgio Cabral e do Eike Batista e de outros presos pela Operação Lava Jato, menos notáveis. Não era nem a prisão em si que era comemorada, mas sua execração pública.
E é nesse patamar da prosa que me detenho. A sociedade brasileira, ao que parece, não tem se conformado com os remédios institucionais para combater os males que a afligem, secularmente. Quer mais. O que quer mais? No caso, aqui, na nossa paróquia, a personagem em questão foi indiciada pelo Ministério Público e Polícia Federal, teve o diploma e o mandato de vereadora eleita cassados, responde a um caudaloso processo judicial e recorre a instâncias superiores da Justiça, conforme reza o famoso “estado democrático de direito”. Aguarda, cumprido o rito processual, a sentença definitiva. Tem mais? Quem sabe um carimbo na testa, uma marca que a diferencie dos demais. Tenho medo desta sanha “justiceira”.
Mais do que isso não é Justiça, é vingança.
Não sou seu advogado de defesa. Estamos em espaços políticos, diametralmente, opostos. Sequer, temos convivência pessoal. Acho que ela e todos os outros denunciados, devem responder pelo que fizeram, mas também recuso o papel de bedel das causas alheias. Não sou julgador. Essa vaga está completa e cabe a um poder instituído para tal. Defendo a civilidade, ao contrário do rancor, do ódio visceral. Anseio por uma sociedade capaz de entender que os erros são, quando percebidos, o combustível da mudança.
Como devoto de são Guimarães Rosa, recorro a um conto de seu evangelho Sagarana: “A Hora e a Vez de Augusto Matraga”. Rosa conta a história de Augusto Esteves que, depois de aprontar todas, resolveu se redimir de suas culpas, carpir seus pecados e se sacrificar pelo justo, em duelo com “Joãozinho Bem-Bem”, famoso bandoleiro dos sertões mineiros, que impunha à força suas vontades. Redimido, queria “ir para o céu, nem que fosse a porrete”. Assim como ele, todos têm a sua hora e sua vez. Além do que ninguém deve ter compromisso com erros pretéritos, JK já disse isso.
As pessoas são o que são e o que foram. E, sobretudo, o que serão. Vivemos, graças a Deus, numa sociedade regrada, cujos limites são a ordem e a lei. Fazer “justiça” que atenda aos desejos dos que se consideram ofendidos e exigem castigo além da letra da lei é retroagir, no tempo e no sentimento, na evolução civilizatória.
Vamos adiante!
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Este post tem um comentário

  1. Sérgio Provisano

    O Opiniões, já disse antes e repito, meu querido Aluysio Abreu Barbosa, mas que prefiro chamar de Aluysinho, é um espaço diferenciado nesta irrefreável democracia que são as redes sociais, aqui a gente respira inteligência, reflexões, Cultura, enfim, aqui é um espaço para se pensar, livre pensar. combater as causas perdidas, mas nem tão perdidas enquanto existirem pessoas que desafinam sim o coro dos contentes e eu, você e muito iguais a nós, mesmo com pensamentos distintos, ainda pensam, debatem, e evoluem em seus pensares, construindo e partilhando-os, pois como dissemos o debate é necessário. Os anos 80 foram ricos de mudanças, havia lá um grupo que queria mudar, infelizmente houve uma liderança que envelheceu antes de ficar velho, estagnou-se, ficou conservador e aí, vemos o fator Linda Mara como a síntese do retrocesso, se trocou por alguns Cheques Cidadão, moeda de troca daquela política atrasada, de toma lá dá cá, como se políticas populistas fossem ser uma prática a ser feita ad eternum e ignorar que as pessoas evoluem mudam, se conscientizam. Linda Mara, a mim, nunca enganou, eu tenho de priscas eras, divergências de ordem pessoal e política, mas sempre primei, meu querido Aluysinho, pelo convívio elegante, civilizado com ela, mas confesso que os meus dois pés sempre estiveram atrás, sua execração pública tem fundamento naquele velho ditado popular: “quem semeia ventos, colhe tempestades” e arrogância e desprezo pelo outro não nos leva mesmo a lugar nenhum e o preço a se pagar sempre é muito alto. Fraterno e forte abraço.

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