Carol Poesia – Inquérito Poético (parte 2)

Suspeito – Eu?
Inspetora – Por acaso o senhor reconhece isso, seu Adalbeto?
Inspetora – Foi achado no local do crime e tem a sua assinatura.
Suspeito – Como isso foi parar lá?
Inspetora – É o que eu gostaria de saber!
Suspeito – Escrevi esse poema quando eu era criança, muito novo.
Inspetora – Então o senhor confessa que conhecia e mantinha relações com a poesia desde criança?
Suspeito – Eu escrevia às vezes alguns pensamentos rimados…
Inspetora – Me diz uma coisa seu Adalberto, qual foi a última vez que o senhor escreveu um poema?
Suspeito – Eu? Tem muito tempo… Eu não escrevo faz muito tempo… Mas eu não estou entendendo, isso é bom ou ruim?
Inspetora – Eu não sei. O senhor que tem que me dizer! É bom ou é ruim ficar sem escrever? Sabe seu Adalberto, Beto, posso te chamar assim? Eu olho pra você e não vejo a inocência de um auxiliar de escritório que trabalha oito horas por dia pra pagar as contas. Não sei, não sei… Tem algo diferente no seu olhar, na sua respiração… Beto, quando eu falo em poesia, qual é o primeiro verso que vem à sua cabeça?
Suspeito – Quê?
Inspetora – Um único verso é suficiente!
Suspeito – Você só pode estar brincando… O que que eu fiz pra merecer isso, posso saber?
Inspetora – Não precisa ser seu. Qualquer verso. Eu tenho todo o tempo do mundo…
Suspeito – “Que não seja eterno/ posto que é chama/ mas que seja infinito enquanto dure”.
Inspetora – Vinicius de Moraes. Outro!
Suspeito – “Oh! que saudades que tenho/ Da aurora da minha vida,/ Da minha infância querida/ Que os anos não trazem mais!”.
Inspetora – Casimiro de Abreu. Está indo bem.
Suspeito – “O poeta é um fingidor/ finge tão perfeitamente/ que finge sentir a dor/ a dor que deveras sente”.
Inspetora – Fernando Pessoa! Lindo!
Suspeito – “Eu canto porque o instante existe/ e a minha vida está completa./ Não sou alegre nem sou triste:/ sou poeta./ Irmão das coisas fugidias,/ não sinto gozo nem tormento./ Atravesso noites e dias/ no vento./ Se desmorono ou se edifico,/ se permaneço ou me desfaço,/ – não sei, não sei. Não sei se fico/ ou passo./ Sei que canto. E a canção é tudo./ Tem sangue eterno a asa ritmada./ E um dia sei que estarei mudo:/ – mais nada.”
Inspetora – Cecília Meireles!
Suspeito – CHEGA! Eu confesso: sou poeta, a cada instante que passa me nasce uma rosa na testa!
Inspetora – Grande Paulo Leminski!
Suspeito – Chega! Eu estou falando de mim! O verso é dele mas eu estou falando de mim! A verdade é que eu conheço a poesia sim, a minha relação com ela é íntima e antiga! Desde pequeno eu não vejo sentido nenhum no que é útil, no que é prático, no que é comprovado cientificamente. Eu não tenho o sonho de ser rico, nem de descobrir alguma coisa muito importante, pouco me importa a bolsa de valores, eu estou me lixando pra alta do dóllar. Eu trabalho porque preciso comer, eu ainda como porque preciso estar vivo, eu quero estar vivo só pra acompanhar essa poesia toda que acontece independente de mim a cada dia. Ela não precisa de mim, mas eu preciso dela! Eu preciso realizar a inutilidade de imaginar a história de vida de cada desconhecido no ônibus. Eu preciso ver a multidão no metrô, coreografada, em alto relevo e 3D, cantando “Aba Pai”. Eu preciso ouvir a conversa da vizinha e adivinhar o que veio antes ou dar um outro final. Eu preciso do silêncio, da falta de ação, dos momentos de vácuo e de inércia em que a morte parece estar rondando e eu pareço estar querendo morrer, mas o que eu desejo mesmo é esse entre-vida-e-morte, esse estado sublime de experimentação do nada. A quase morte é um tesão! E eu sou viciado! Eu quero estar vivo pra quase morrer todos os dias! O entre-sono também me fascina, aquele estágio em que você não está dormindo, nem acordado, a realidade se mistura com o pensamento imaginário e surge tanta coisa brilhantemente desvairada! Eu adoro dormir… pena que eu tenho insônia! O sono é uma prévia da morte, sabe?! Um gostinho, uma pitada antecipada e vivenciada por todo mundo a cada noite. É uma experiência solitária, quase um poema, de repente você fecha os olhos e pluft! Está completamente sozinho em você mesmo! É o que existe de mais estranho e contraditoriamente de mais natural na vida. E o que seria da vida sem esse morrer diário pra recuperar as forças, hein?! O que seria da realidade sem esse profundo mergulho cotidiano dentro si mesmo fora da realidade? Poesia e morte andam assim oh! (faz sinal com os dedos) Você deveria saber! (leve pausa) A poesia está morta mas eu fiz o que pude! E fiz por mim! Porque a poesia é a humanidade que me salva e que falta na humanidade. É o oposto da engrenagem. É o andar na contramão e por isso mesmo faz todo o sentido. Ela não é cadeira não… Quem diz que fazer poesia é igual fazer cadeira pode até ser poeta, mas nunca foi marceneiro. Poesia é um estado de alma, e se ela morreu pouco me importa o que vai acontecer agora.
(pausa prolongada)
Inspetora – Meus pêsames.
Inspetora – O senhor está dispensado, seu Adalberto.
Suspeito – Estou?
Inspetora – Está. Se eu precisar eu chamo o senhor de novo.
Suspeito – Se eu tiver que voltar prefiro que seja a noite, pra eu não ter que faltar o serviço.
Inspetora – Qualquer novidade sobre o caso eu te aviso. Passar bem.
Suspeito – Obrigado e desculpe qualquer coisa.
Inspetora – Próximo!
(fim)
Confira aqui a primeira parte do “Inquérito Poético”

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Este post tem um comentário

  1. Sérgio Provisano

    A Poesia é, como ouso dizer, Carol Poesia, o oxigênio da alma e temo ser intimado por dizer isso, mas de cara eu declaro, não sou Poeta, quando muito costuro palavras e entendo que a vida não tem a menor graça se não existisse Poetas e Poesia… E Música e Artes e Literatura e Cultura, enfim coisas mais que essenciais, eu diria imprescindíveis, como é imprescindível o Opiniões, que Aluysio Abreu Barbosa viabilizou e nos permite ler esse inquérito primoroso e confesso – inquéritos levam à confissões – que já estava curioso esperando o final do inquérito, ansioso… Adorei o fim do inquérito e aguardo o que virá por ai, daqui para a frente.

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