Fabio Bottrel — Perguntas

 

Leonard Cohen – Going Home

 

 

 

 

Caro leitor, gostaria que parasse de ler esse texto por um instante, fechasse os olhos por alguns segundos e tentasse imaginar uma cor que ainda não exista.

Não dá.

Portanto, nossa mente não é tão ilimitada quanto aparenta.

Como tentou fazer com as cores, unindo uma à outra na esperança de surgir uma nova, será que não fazemos isso com o mundo a nossa volta?

Jakob Von Uexküll, filósofo e biólogo estoniano, criou uma teoria chamada Umwelt, que infere a realidade como o mundo subjetivo de cada organismo vivo, ou seja, enxergamos a realidade até onde os nossos sentidos nos permitem enxergar e a interpretação que damos a ela. Tomando o mundo como a projeção de nossas percepções sensoriais, a interpretação física e cultural que damos a ele, unindo fatos desde os primórdios, não poderia estar de alguma maneira desconexa? E para reforçar tal comportamento desarmônico não poderia ser a criação de um Estado que perpetua tal interpretação distorcendo a realidade? Como dificilmente vemos um assaltante com realidades diferentes um do outro, então, para quem foi feita a lei?

Como escreveu Samuel Richardson, a lei não foi feita para os homens honrados, mas inquieta-me a pergunta: foram feitas por eles? O que separa um homem honrado de um não honrado está nas ações presentes sendo irrelevante a trajetória de vida da qual ela se originou?

Há pouco tempo escutei de um rapaz: “Bandido bom é bandido morto. ” Quando o ódio se torna clichê demanda reflexão numa juventude com bagagem pequena para tanto peso. Percebi sua decepção diante da discordância quando disse que bandido bom não existe, antes de querer-lhe a morte gostaria que tivesse a mesma educação, e se aí sim se tornar um bandido, talvez o argumento proceda. Mas o que levou o rapaz a pensar dessa maneira foi o ato ou o contágio pela interpretação coletiva, será que o ódio surge de uma interpretação errada?

Será que a poesia não é mera escavação da alma, mas a realidade que não enxergamos?

Abri os olhos nessa bela manhã, mal vi o sol e as perguntas já chegaram, com elas trouxeram a lembrança do Soneto Antigo de Cecília Meireles:

 

Responder a perguntas não respondo.

Perguntas impossíveis não pergunto.

Só do que sei de mim aos outros conto:

de mim, atravessada pelo mundo.

 

Toda a minha experiência, o meu estudo,

sou eu mesma que, em solidão paciente,

recolho do que em mim observo e escuto

muda lição, que ninguém mais entende.

 

O que sou vale mais do que o meu canto.

Apenas em linguagem vou dizendo

caminhos invisíveis por onde ando.

 

Tudo é secreto e de remoto exemplo.

Todos ouvimos, longe, o apelo do Anjo.

E todos somos pura flor de vento.

 

Cecilia Meireles

 

Luciane Silva — O graffite, a juventude e a vida nas grandes cidades

 

(Reprodução)

 

 

O texto de hoje convida os leitores da Folha para uma caminhada pelas principais ruas e avenidas de algumas cidades. Para esta caminhada imaginária vamos pensar quatro cidades: Campos dos Goytacazes, Porto Alegre, Rio de Janeiro e São Paulo. O fio da questão articula usos da cidade, juventude e gestão municipal. A esta altura, todos já compreenderam qual delas será escolhida como espelho. Desde que o movimento hip hop explodiu no Brasil, São Paulo sempre foi sua Meca, ponto vertiginoso de aglutinação de vozes, dança e… uso dos muros, prédios, ruas, para grafitagem e pichação. Não apenas nas periferias.

Observando os movimentos juvenis desde os anos 90, me atrevo a dizer que a renovação das práticas culturais nas cidades vem destas manifestações. Não estou falando de Anitta, nem de letras proibidas. Falo dos espaços da cidade e de como cada um de nós experimenta a “vida ao ar livre”. O fato de soar estranha esta experiência do encontro aberto, em praças, parques e ruas, nos encaminha na percepção de que nosso trajeto se resume aos lugares seguros: centros de compras, avenidas com bares luminosos e condomínios.

Campos dos Goytacazes prima pelos espaços fechados, no que se assemelha de fato, mas por razões muito diferentes, a São Paulo. Mas fora dos condomínios estão milhares de dançarinos de Passinho e pintores. E eles fazem um uso da cidade bastante interessante. Alteram-lhe o ritmo, a pulsação e a cor. O prefeito de São Paulo (ex apresentador de um programa de televisão, no qual pessoas são demitidas ao vivo) recebeu do artista Romero Britto um quadro que, segundo dizem, seria muito semelhante a outro dado ao ex presidente Lula em 2008.

Corações e prédios multicoloridos representam São Paulo. Cidades são feitas de diferenças, contradições, espaço abertos aos que nela pretendem intervir. Era esta a grande riqueza de Porto Alegre nos idos do I Fórum Social Mundial. A diversidade grafitada nas paredes, nos encontros musicais, nas reuniões de poesia e no cinema improvisado. Esta linguagem não pode ser gerida por um prefeito, por uma Universidade.

Antes de conhecer o Rio de Janeiro, um verso de Noel Rosa me chamava atenção “a gíria que o nosso morro criou, bem cedo a cidade aceitou e usou”. Este malandro, patrimônio da cidade do Rio de Janeiro, nasceu longe das salas de concerto, mas que músico não o abraçou durante o século XX?

Dória tenta apagar a memória viva de uma cidade feite de contradição. São Paulo já foi definida. Não é preciso tomar o tempo do leitor, como “o avesso, do avesso, do avesso”. As cidades globais (mais ou menos como quiserem pensar) buscam resgatar sua história relendo seu povo, relendo aqueles que foram invisibilizados.

O prefeito de São Paulo vai na contramão da história. Enquanto fantásticos murais são pintados em Lisboa, em Buenos Aires, em Berlim, Dória acredita na gestão do cinza e vai cobrir os muros da 23 de Maio com vegetação. Além de um crime contra o patrimônio público, sua atitude beira ao fascismo. E a ordem pela ordem nunca foi razão para comemorar a democracia.

Curitiba, da qual não devemos esquecer, manteve a ordenação urbana às custas de violência policial contra camelôs, o que não é  exatamente um troféu ao processo civilizatório. Penso que melhor a anarquia de uma Lapa, antes das ações de embelezamento e especulação imobiliária, a esta ordenação de neon, falsa como alegria das casas de show da Augusta as três da manhã.

Viver a cidade é viver seus cantos escuros, suas quebradas, suas esquinas de encontro de rima. Viver a cidade é revitalizar seus prédios e fazer deles cinemas, teatros, bibliotecas públicas. São Paulo não é Tóquio, o Rio de Janeiro não é Miami e a Pelinca nunca será Copacabana (nem precisa). Estas comparações são patológicas. A modernidade pode comportar vários projetos.

Campos tem chuvisco, tem o Paraíba, história de usinas e escravidão, grandes universidades, samba, decadência e belas igrejas. Tem o hotel Amazonas, belíssimo, morrendo a cada dia. O que faremos da cidade pelos próximos anos? Poderá a juventude de Guarus dançar o Passinho sem levantar suspeitas da Polícia Militar? Temos espaços sem juventude, juventude sem espaços, muros, praças. Que cidade queremos?

 

Guilherme Carvalhal — Outra vida possível

 

 

 

Certo dia minha avó me confessou em um surto de inesperada sinceridade e autocomiseração que passou a vida apaixonada por outro homem. Gostava de um filho de fazendeiro chamado Plínio desde a mocidade, cujo contato se afastou quando esse mudou pro Rio de Janeiro pra estudar. Mesmo assim, nas vindas dele de férias, os dois caminhavam pelo campo, não longe demais pro povo não comentar. Esse rapaz dizia “quero me casar com você”. E minha vó correspondia sorridente e enamorada em seus tempos primaveris e inocentes.

Entretanto, não agradava seu pai esse tal Plínio. Meu bisavô, um matuto que valorizava serviço de macho, não aceitava a filha de namoros com um almofadinha que estudava pra ser advogado. Queria alguém de trabalho pesado, da enxada, do serrote, do martelo, que realmente suasse para sustentar a família. E não admitia os seus, pobres de nascença e de vivença, envolvidos com gente rica.

Seguindo o costume daqueles tempos, meu avô indicou um moço que se encaixasse em seus critérios como noivo. E ela, muito obediente, casou-se com Jerônimo, meu avô Jominho, conforme todos o conheciam. Nunca o amou, mas sempre o respeitou, ela me revelou em um misto confuso de resignação e arrependimento alguns meses após enviuvar.

Curiosa com essa relato e indignada com as desventuras do passado, procurei mais acerca dessa antiga história, propelida por uma repentina pulsão, não sei precisamente se em busca de alguma justiça ou se por outro misterioso objetivo. Viajei à velha cercania onde meus avós passaram a juventude, desenterrando as imagens perdidas dos seus primeiros passos. Perguntei sobre os nomes aos atuais moradores, mas ninguém mais se recordava, no máximo resgatando uma memória vaga e imprecisa. Dirigi-me ao cartório, solicitei para analisar antigas certidões de nascimento e obtive a de Plínio, de onde descobri seu nome completo.

Pesquisando na internet, me deparei com informações desse meu quase avô. Plínio tornou-se desembargador em Santa Catarina e constituiu sua vida nesse estado. Achei relatos de jornais o mencionando e consegui saber um pouco sobre sua atuação em Florianópolis. Do casamento com Cláudia ele teve dois filhos e uma filha, médico, juiz, médica. Vários netos e uma única neta.

Porém, uma notícia me chocou. Um site de notícias informava uma tragédia, o suicídio de Natália, a neta. Encheu-se de remédios para dormir e sofreu parada cardíaca, sendo que sucedeu essa a outras duas tentativas anteriores em que a resgataram antes de morrer. As fotografias das matérias mostravam a jovem, os longos cabelos pintados de loiro, o nariz afinado na ponta, a campeã sub-17 de natação, a aprovada no vestibular de medicina, aquela que percorreu a Europa como presente pelos 18 anos, achada morta no chão de seu quarto envolta em uma papa de vômito.

Essa revelação me impregnou de um estranho pavor, um medo a me fazer tremer as mãos, e prestes a entrar em colapso deitei-me na cama, esbaforida, exausta, desesperada. Sem nem compreender exatamente porquê, ao convalescer desse súbito mal-estar comprei passagem para Florianópolis e no dia seguinte embarquei, sem ao menos me preocupar com malas ou com o que mais carregaria. Ciente do cemitério onde a sepultaram, logo ao sair do aeroporto pedi ao taxista que me levasse lá, exigindo pressa do motorista.

Percorri entre fileiras de túmulos até achar o dela. O nome por extenso na placa de bronze, o jarro de flores já apodrecidas e acumulando água de chuva e larvas de mosquito. Nascida em 1988, assim como eu. Única neta mulher de Plínio e Cláudia, assim como eu de Jerônimo e Ieda. Tudo extremamente parecido, em uma conjunção que não poderia ser mera coincidência. E eu, também batizada Natália, filha do segundo filho, guardando uma medalha de natação em casa e de licença do setor de oftalmologia do hospital. Ajoelhei-me chorando, derrubada por uma forte tristeza, e ao mesmo tempo aplacada por um forte alívio, ciente, assustadoramente ciente, de que caso vovó tivesse se casado com Plínio seria eu quem jazeria naquela sepultura.

 

Gustavo Alejandro Oviedo — A tediosa felicidade da prosperidade

 

Noruega, o país mais feliz do mundo

 

 

A ONU divulgou essa semana o ranking dos países mais felizes do mundo. De um a dez, os mais ditosos foram Noruega, Dinamarca, Islândia, Suíça, Finlândia, Holanda, Canadá, Nova Zelândia, Austrália e Suécia.

Não parece ser casualidade que os primeiros no ranking sejam também aqueles países onde melhor se vive. Como não surpreende que o último seja a República Centro-africana. Todavia, o ranking da ONU vai de encontro a várias crenças pseudofilosóficas sul-americanas, como aquela que sustenta que nós deveríamos ser mais felizes que os europeus, em especial daqueles europeus que encabeçam a lista, os escandinavos, tidos sempre como circunspectos, pouco amistosos e suicidas.

Afinal, somos latinos! E isso significa que rimos e choramos com maior intensidade do que noruegueses ou dinamarqueses, e por algum misterioso motivo acreditamos que a intensidade das paixões vale mais do que a parcimônia. A nossa reação sobre um acontecimento pareceria ter mais importância do que o acontecimento em si.

Bem, ao que parece, a ONU não compartilha nosso entendimento. Os países mais felizes têm populações chatas: anglo-saxões e nórdicos. São sociedades que decidiram renunciar às alegres instabilidades produzidas pelas lutas pelo poder dos políticos, à diversão dos ajustes econômicos e à refrescante vivacidade da violência social.

Dos dez primeiros, oito decidiram que o seu líder será um monarca, um sujeito um pouco absurdo que será considerado o soberano, para assim não ter que se submeter às ambições ‘caudilhescas’ de políticos, generais e empresários que podem resultar, além de igualmente absurdos, eventualmente malucos e perigosos. A monarquia constitucional desses países se baseia na premissa de que é melhor um fantoche decorativo sem poder do que um palhaço que se pretende dono do circo. Parece que funciona.

Harry Lime, o cínico personagem de Orson Welles em “O Terceiro Homem”, estava errado: a entediante Suíça (4ª no ranking), produtora de relógios de cuco, é mais feliz do que a efervescente Itália (48º lugar), com seu Renascimento, suas guerras e sua latinidade.

Um cantor argentino tem uma música onde sustenta que ‘la buena felicidad dicen que no se nota’. É verdade: a felicidade e a nossa percepção dela não costumam ser contemporâneas. Mas, às vezes, a desgraça tampouco é percebida, e a costume nos faz confundir mediocridade com normalidade. Acontece com algumas pessoas. E também com certos países.

 

Às quartas, Gustavo Alejandro Oviedo é novo reforço do “Opiniões”

 

Amanhã quem estreia como colaborador deste “Opiniões” é o advogado e publicitário Gustavo Alejandro Oviedo. Sua publicação terá peridiodicidade quinzenal, sempre às quartas, em revezamento com o jornalista e servidor federal Ricardo André Vaconcelos.

Oviedo irá substituir o músico Claudio Kezen. Como antes, nas quintas, a antropóloga e poeta Manuela Cordeiro já havia ocupado a vaga da jornalista e escritora Paula Vigneron — cuja talentosa prosa pode continuar a ser acompanhada em seu próprio blog, o “Vigneron”, também hospedado na Folha Online.

Kezen teve uma passagem curta pelo blog, entre janeiro e fevereiro deste ano, enquanto Paula teve participação mais longeva: de abril a dezembro de 2016. O blog aproveita para agradecer publicamente aos dois ex-colaboradores, tanto quanto àqueles que aqui se mantêm, ofertando a multiplicidade das suas opiniões a você, leitor do “Opiniões”.

A hora é de dar as boas vindas a quem chega: um argentino caído em Campos, que traz a expectativa de reforço do jogo dialético entre o centro e a ponta destra. Para saber quem é e do que pretende falar o Oviedo, melhor saber por suas próprias palavras:

 

 

Gustavo Alejandro Oviedo (Foto: Folha da Manhã)

 

 

Sou argentino e brasileiro, 46 anos, advogado, publicitário e cinéfilo.

Estudei cinema na Universidad del Cine de Buenos Aires e me formei em Direito na FDC de Campos.

Depois te ter escrito crítica de cinema e uma coluna semanal sobre política na Folha, me é dada a oportunidade de compartilhar o espaço no blog do Aluysio com figuras como Ricardo André Vasconcelos e Marcelo Amoy Proprius, por falar apenas de duas pessoas pelas quais, além do titular do espaço, tenho afeto e respeito.

Assim, poder colaborar num espaço onde se apresentam diferentes opiniões de pessoas que considero inteligentes, me colocando ao par delas, me deixa honrado, mas também um pouco apreensivo: não sei se deveria tentar a sorte dessa maneira.

Mas, enfim. Vamos em frente, para escrever sobre aquilo que penso tem que ser dito, seja do tópico que for. Política, arte, vida e o que vier. Sem certeza sobre nada, mas sempre com ânimo provocador e, se puder, num portunhol legível.

 

Fernando Leite — Ofício

 

 

 

Ofício

 

Os cientistas estão intrigados com os urubus.

Que mistério encerra este pássaro que não canta?

Senhor dos monturos,

do que sobra dos mortos.

 

Ceia o que mundo expele

e no entanto seu aparelho digestivo

é igual ao de todos os bichos de pena,

ao do pintassilgo,

igual até ao do sabiá laranjeira

mais bonito quando canta

do que quando voa.

 

O que a Ciência sabe

é que está nas alturas

o segredo que o torna único

entre as aves da terra.

 

Depois que come a carne roxa,

a córnea cega, o corpo putrefato

que o crime escondeu

ele sobe a mais de mil metros

e lá faz a digestão.

 

Quando desce

vem limpo como o menino

que vai à primeira comunhão:

corpo e alma cheirando à lavanda.

 

João Tatê, caboclo de Barra do Itabapoana,

que caminha pelas veredas da doideira,

ensina: há um átimo de segundo

antes da morte fechar sobre nós suas asas,

seu hálito de enxofre

— é quando todo homem se arrepende e se salva.

 

O que os urubus comem é

carne dos convertidos.

 

Impossível de digerir é o pecado.

 

Dezembro de 1996

 

(Do livro “Arquitetura da Manhã”)

Vanessa Henriques — Crack: a droga dos excluídos

 

(Divulgação)

 

 

Nos últimos anos, notícias sobre o uso de crack no Brasil ganharam notável destaque nos principais meios de comunicação. Muito se falou a respeito de uma suposta epidemia desta droga, cuja potência seria tão destruidora que seria capaz de não apenas criar uma dependência instantânea, mas como também levaria o seu usuário a um óbito inevitável em poucos meses. Na cidade de São Paulo, a formação de uma cena de uso de grandes proporções, que logo ganhou o apelido de “cracolândia”, potencializou ainda mais os discursos alarmantes a respeito do poder arrasador dessa substância.

Os usuários de crack – não raras vezes designados como “cracudos”, “zumbis” ou “mortos-vivos” – são representados pelos noticiários, grande parte das vezes, como seres subtraídos de sua humanidade: a droga teria roubado desses indivíduos parte de sua energia vital, transformando-os em criaturas movidas pelo único desejo de reinstalar, incessantemente, a intoxicação causada pelo estimulante. Desta forma, consolidou-se no imaginário social a noção de que se deveria imputar apenas aos efeitos físico-químicos proporcionados pela substância a responsabilidade pelo surgimento das “cracolândias”.

Neste contexto, políticos e acadêmicos uniram esforços para compreender este fenômeno social. Era preciso afastar as narrativas construídas pelo senso comum e pelo sensacionalismo midiático a respeito do tema, para que então fosse possível empreender a tarefa de descrever e analisar o fenômeno a partir de um ponto de vista amparado pelo conhecimento científico.

Em 2014, uma pesquisa realizada em parceria entre a Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas (SENAD) e a Fundação Oswaldo Cruz (FIOCRUZ) mostrou quem e quantos são os usuários de crack no Brasil[1]. Foi detectado que 8 em cada 10 usuários regulares são negros e não chegaram ao ensino médio. Além disso, outros marcadores de vulnerabilidade social foram encontrados: 40% se encontravam em situação de rua e 49% tiveram passagem pelo sistema prisional. Em grande medida, esses indicadores de vulnerabilidade social precediam o começo do envolvimento com o crack. Além disso, foi estimado que 0,8% da população adulta brasileira faça uso regular de crack; número preocupante, mas que é de oito a quinze vezes menor do que o número de dependentes de álcool no Brasil, por exemplo.

Dando continuidade aos achados da pesquisa realizada pela Fiocruz, outra pesquisa[2], capitaneada pelo sociólogo Jessé Souza, da qual tive o prazer de participar, e que contou com as valiosas contribuições de um grupo de sociólogos, psicólogos, psiquiatras e assistentes sociais, pôde investigar mais profundamente como o uso abusivo de crack e suas propriedades físico-químicas, junto ao processo de exclusão social, formam um ciclo vicioso que se retroalimenta; o cotidiano intragável vivenciado por uma grande massa de indivíduos conduz a um desejo de autodestruição que se materializa no abuso de crack e que, por sua vez, só faz aumentar o desprezo social e a degradação subjetiva e objetiva a que esses indivíduos estão sujeitos.

Além de termos entrevistado usuários de crack que faziam uso da substância há mais de 20 anos – o que comprova que o crack não mata necessariamente em poucos meses – percebemos diferenças significativas nos padrões de uso de usuários pertencentes a diferentes classes sociais. Os indivíduos mais atingidos pela marginalização social e sua consequente privação de recursos, correm mais riscos de serem mais afetados pelos efeitos físico-químicos destrutivos proporcionados pelo uso abusivo do crack. Durante a pesquisa, tivemos acesso a indivíduos pertencentes à classe média que conseguiam controlar o uso de crack graças ao acesso a recursos econômicos e afetivos que proviam sustentação institucional e psicológica, o que impedia que o uso de crack se tornasse o elemento central e totalizante de suas vidas, como acontece com muitos dos usuários que vão morar nas “cracolândias” e tem seus laços familiares completamente esgarçados.

Neste sentido, pudemos concluir que qualquer política pública que se pretenda efetiva no enfrentamento do problema do crack, deve aliar o tratamento químico à oferta de serviços básicos que atenuem a “patologia social” subjacente ao uso abusivo de crack enquanto um fenômeno socialmente expressivo. O programa “De Braços Abertos”, criado pelo governo Haddad, foi exemplar nesse sentido, obtendo reconhecimento internacional e resultados bastante positivos em outra pesquisa recentemente realizada[3]. No entanto, o prefeito Dória já sinalizou que o programa ou será extinto ou sofrerá mudanças significativas em seu projeto original. Aguardemos, então, os próximos capítulos.

 

[1] https://www.icict.fiocruz.br/content/livro-digital-da-pesquisa-nacional-sobre-o-uso-de-crack-%C3%A9-lan%C3%A7ado

 

[2] http://crres.ufes.br/conteudo/lan%C3%A7amento-da-pesquisa-crack-e-exclus%C3%A3o-social

 

[3] http://pbpd.org.br/wp-content/uploads/2016/12/Pesquisa-De-Bra%C3%A7os-Abertos-1-2.pdf

 

O Globo confirma “Ponto Final” em dia de GAP no apartamento de Garotinho

 

 

 

Fonte no “Ponto Final”

Na edição desta coluna do último domingo (12), foi publicado (aqui): “segundo fontes, o escritório de (Álvaro) Lins teria sido contratado por seu antigo chefe (Anthony Garotinho) para levantar informações sobre o delegado federal Paulo Cassiano, o promotor estadual de Justiça Leandro Manhães e o juiz Ralph Manhães. Por terem participado da operação ‘Chequinho’, nas eleições municipais de Campos do ano passado, os três foram eleitos por Garotinho como inimigos pessoais”.

 

GAP no apartamento de Garotinho

As fontes da coluna foram confirmadas cinco dias depois, pelo jornal O Globo, que publicou ontem (aqui): “A contratação de Lins foi veiculada pelo jornal ‘Folha da Manhã’ e, segundo O Globo apurou, foi confirmada a investigadores por duas fontes diferentes”. A matéria noticiou a operação de agentes do Grupo de Apoio à Promotoria (GAP) na manhã de ontem, no apartamento em que reside Garotinho, no Rio, e dois endereços da empresa “Palavra de Paz”, da qual ele é sócio. O objetivo foi captar imagens das câmeras de segurança, para verificar se Lins e Garotinho se reuniram.

 

Quadrilha condenada

Como o “Ponto Final” relembrou no último domingo, Garotinho e Lins foram alvos da operação “Segurança Pública SA”, da Polícia Federal, na qual o segundo chegou a ser preso entre 2008 e 2009, perdendo o mandato de deputado estadual e a carteira da OAB, recuperada em 2013. Os dois foram condenados pela Justiça Federal pela formação de uma quadrilha armada, da qual Garotinho era o chefe, quando secretário de Segurança do governo estadual Rosinha Garotinho (2003/2007), no qual Lins foi chefe de Polícia Civil.

 

Novas suspeitas

Segundo informou a reportagem de O Globo, a operação do GAP de ontem foi motivada pela suspeita de que “o ex-governador contratou Lins para montar um dossiê com o objetivo de constranger delegados, promotores, juízes e testemunhas envolvidos no processo. Há ainda a suspeita de que Lins tenha ligado para testemunhas como forma de pressão”. Foi pela interferência nas investigações, sobre as denúncias do uso de Cheque Cidadão na compra de votos na eleição municipal de 2016, em Campos, que Garotinho chegou a ser preso no Rio em novembro passado.

 

Alerta

A cada dia tem se tornado maior o alerta em relação à circulação do vírus da febre amarela no estado do Rio e, com destaque para o interior, onde a primeira morte já foi registrada. Como esta coluna previu, ontem, Campos montou uma estratégia para a vacinação em massa, inclusive com “força-tarefa” neste fim de semana. No hospital de campanha, montado em Casimiro de Abreu, onde ocorreu a morte, estão sendo aplicadas uma média de 221 doses por hora.

 

Atenção mundial

O avanço da doença em todo o país tem causado preocupação e atraído olhares de fora, tanto que a Organização Mundial da Saúde (OMS) enviará mais de mais de 3,5 milhões doses da vacina contra a febre amarela para o Brasil. Elas serão destinadas a áreas vistas como prioritárias no país. O pedido foi feito pelo ministério da Saúde, que adquiriu, ontem, mais 12 milhões de vacinas contra a doença, sendo 8,46 milhões produzidas pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz).

 

No seu bolso

A Petrobras aumentou em 9,8%, em média, os preços dos botijões de até 13 kg de gás. O reajuste entrará em vigor às 0h da próxima terça-feira, dia 21. O último reajuste realizado pela companhia foi em 1º de setembro de 2015. As revisões dos preços feitas para as refinarias podem ou não se refletir no preço final ao consumidor, uma vez que, de acordo com a legislação, há liberdade de preços no mercado de combustíveis e derivados. A formação de cartel pode gerar prisão, como aconteceu em Campos nesta semana.

 

Com a colaboração de Rodrigo Gonçalves

 

Publicado hoje (18) na Folha da Manhã