Artigo do domingo — Sobre Hawking e Marielle

 

Duas vidas de superação tiveram fim no mesmo dia: Marielle Franco e Stephen Hawking (Montagem: Eliabe de Souza, o Cássio Jr.)

 

 

“Eu poderia viver recluso numa casca de noz e me considerar rei do espaço infinito”

(Hamlet, Ato II, Cena II)

 

Semana entre mortes marcantes e pouco tempo para escrever. Na madrugada de quarta (14), o astrofísico e matemático inglês Stephen Hawking sucumbiu, aos 76 anos, à rara doença degenerativa contra a qual lutava desde os 21. Na noite do mesmo dia, a socióloga e vereadora carioca Marielle Franco (Psol), de 38, foi executada com quatro tiros na cabeça dentro do próprio carro, em pleno Centro do Rio. Junto dela, também foi assassinado o motorista Anderson Gomes (39), alvo de três disparos pelas costas.

Conheci Hawking pela fama de pop star, dada à associação das suas genialidade e doença, antes mesmo de ler “O Universo numa Casca de Noz” (2001). Bestseller escrito para leigos, sem uso da matemática, nele falava de microcosmo quântico e macrocosmo universal, conjecturando sobre temas ainda atuais à física teórica como partículas fundamentais, buracos negros, viagens no tempo e o futuro biológico e tecnológico da humanidade.

Uma das teses apresentadas por Hawking em seu livro era o “paradoxo dos gêmeos”. Por conta da série “Cosmos”, apresentada pelo astrônomo e astrofísico estadunidense Carl Sagan (1934/96) e exibida pela Rede Globo nas manhãs de sábado nos anos 1980, já era familiarizado com o conceito. Consequência da Teoria da Relatividade Restrita, fundamentada pelo físico judeu-alemão Albert Einstein (1879/1955), o paradoxo é um experimento mental sobre dois gêmeos: um fica na Terra, outro se lança pelo espaço em velocidade fantástica.

O resultado? Quando volta ao nosso planeta, o viajante sideral está bem mais novo do que seu irmão gêmeo, tornado ancião pela “lenta” velocidade terrena. Apesar do impacto, foi o único livro de Hawking que li.

Com o mesmo constrangimento, confesso: apesar de ser uma jovem liderança política em ascensão no Rio, quinta vereadora mais votada em sua primeira disputa eleitoral, não tinha ouvido falar de Marielle até sua morte. Sobre Anderson, motorista da vereadora há apenas dois meses, bastou saber que era casado e deixou um filho de apenas um ano.

Mãe também de filha única, Marielle era afrodescendente, lésbica e feminista. Ela se dizia “cria da Maré”, bairro carioca com grande concentração de favelas, onde nasceu e cresceu. Trabalhou desde os 11 para ajudar a custear seus estudos e, aos 19, se matriculou na primeira turma de pré-vestibular comunitário oferecido na Maré. Com 21, começou a militar em direitos humanos, após perder uma amiga numa troca de tiros entre PMs e traficantes.

Aos 23, iniciou a graduação em Ciências Sociais na PUC-RJ, a partir de uma bolsa integral do Programa Universidade Para Todos (Prouni). Depois, fez mestrado na UFF em Administração Pública, onde defendeu a tese “UPP — A redução da favela em três letras: uma análise da política de Segurança Pública do Estado do Rio de Janeiro”.

Na eleição de 2006, ela fez parte da campanha vitoriosa de Marcelo Freixo (Psol) a deputado estadual. Nomeada assessora parlamentar, esteve à frente da coordenação da comissão de Defesa dos Direitos Humanos e Cidadania da Assembleia Legislativa. No último pleito, se lançou à Câmara Municipal do Rio e, com mais de 46 mil votos, foi a segunda mulher mais votada a vereador no Brasil.

No Legislativo carioca, Marielle presidiu a comissão de Direito da Mulher e foi eleita relatora da comissão que fiscalizava a intervenção federal no Estado do Rio. Por conta das constantes denúncias que fazia contra a violência policial nas incursões em comunidades carentes, sobretudo por parte do 41º BPM de Acari, bem como pelas características “profissionais” da sua execução, as suspeitas mais óbvias recaem sobre um câncer fluminense: a corrupção policial institucionalizada nas milícias.

Por pressão popular nacional e internacional, a despeito da criminosa ineficiência do Brasil na apuração de homicídios, o cerco parece se fechar nas evidências. As cápsulas 9 mm usadas na execução de Marielle e Anderson foram desviadas do lote UZZ-18, vendido em 2006 pela Companhia Brasileira de Cartuchos (CBC) à… Polícia Federal.

O mesmo lote teve munições identificadas em episódios anteriores: três no Rio e um, em São Paulo. Na maior chacina deste Estado, 17 pessoas foram executadas em 2015, nos municípios de Barueri e Osasco. Pelos homicídios de lá, coincidência ou não, três policias militares e um guarda civil municipal foram condenados.

Caso se confirmem as suspeitas, se estará diante de um desafio aberto da banda podre da Polícia do Rio à intervenção federal no Estado. Um tapa estalado e ardido na cara da própria democracia brasileira.

Pouco antes de ser morta, Marielle enviou um artigo ao Jornal do Brasil, publicado na última sexta (16). Nele, escreveu:

— No último final de semana, pelo menos cinco pessoas morreram e quatro ficaram feridas na Região Metropolitana do Rio. Delas, quatro eram mulheres. Alba Valéria Machado morreu ao tentar proteger o filho, em Nova Iguaçu. Natalina da Conceição foi atingida durante confronto entre PMs e traficantes na Praça Seca. Janaína da Silva Oliveira morreu em tentativa de assalto em Ricardo de Albuquerque. Tainá dos Santos foi atingida por um tiro de fuzil na comunidade Vila Aliança. São as mulheres negras e periféricas que perdem seus filhos para a letalidade.

Horas depois, a vereadora carioca foi a próxima vítima mulher, negra e periférica. Junto com ela, seu motorista periférico e branco. Ao que tudo indica, pelos mesmos motivos que a juíza branca Patrícia Acioli foi executada em 2011, com 21 tiros de armas restritas das forças de segurança, quando chegava à porta da sua casa de classe média alta, em Niterói. Titular da 4ª Vara Criminal de São Gonçalo, ela tinha sido responsável pela prisão de pelo menos 60 policiais ligados a milícias e grupos de extermínio.

Em contrapartida, não dá para fazer oba-oba pseudo-ideológico com a entrevista do traficante Nem da Rocinha ao jornal espanhol El País, enquanto 134 PMs foram assassinados no Estado do Rio em 2017. E outros 27 só nestes primeiros 45 dias de 2018. Para os cegos à direita e à esquerda, bom lembrar que a parlamentar também dava assistência às famílias dos policiais mortos, tingidas do mesmo vermelho coagulado de sangue que poria fim à sua vida.

Goste-se ou não, Marielle representou o que o governo Lula (PT), que instituiu o Prouni em 2005, teve de melhor na inclusão educacional e social do país. Por partidas, vias, destinos (e quebra-molas) distintos, é exemplo de superação que pode ser comparado ao de Hawking. Se a vida e a obra deste viraram filme — “A teoria de tudo” (2014), de Steve Marsh —, as da ativista e vereadora carioca reúnem condições de também se tornar.

Até lá, talvez só as estrelas possam desvelar o que há para além deste buraco negro que se tornou a vida real do Rio. Referências universais do Brasil, pouca coisa hoje nos descreve melhor do que o paradoxo dos gêmeos.

 

Publicado hoje (18) na Folha da Manhã

 

fb-share-icon0
Tweet 20
Pin Share20

Este post tem 4 comentários

  1. Vania Batista

    Brilhante texto! Parabéns!!

  2. ADRIANA

    NO MEIO DE TANTA BESTEIRA ESCRITA NAS REDES SOCIAIS SOBRE O CASO SEU TEXTO FOI PRECISO

  3. jessica ribeiro

    com tantas mortes pela violencia no rio porque voces so falam da morte de mariele? porque ela era negra homosexual e favelada ? por acaso que nao e importa menos ?

  4. cesar peixoto

    É lamentável o caso da morte da vereadora Marielle, mais o que me entristece é ver todo os dias nos noticiários de nossa cidade, meninos e meninas seres assassinadas covardemente, eu não vejo ninguém fazer uma mobilização para conter a violência em nossa cidade.Agora o poder público está gastando millhões para elucidar o assassinato da vereadora, enquanto outros casos como da nossa cidade fica a merce do poder público.Isso é Brasil

Deixe um comentário para ADRIANA Cancelar resposta