Artigo do domingo — A explosão triunfal dos idiotas

 

“Até o século XIX o idiota era apenas o idiota e como tal se comportava. E o primeiro a saber-se idiota era o próprio idiota. Não tinha ilusões. Julgando-se um inepto nato e hereditário, jamais se atreveu a mover uma palha, ou tirar uma cadeira do lugar. Em 50, 100 ou 200 mil anos, nunca um idiota ousou questionar os valores da vida. Simplesmente, não pensava. Os ‘melhores’ pensavam por ele, sentiam por ele, decidiam por ele. Deve-se a Marx o formidável despertar dos idiotas. Estes descobriram que são em maior número e sentiram a embriaguez da onipotência numérica. E, então, aquele sujeito que, há 500 mil anos, limitava-se a babar na gravata, passou a existir socialmente, economicamente, politicamente, culturalmente etc. houve, em toda parte, a explosão triunfal dos idiotas.”

Como a mordacidade, o antimarxismo era característica marcante de Nelson Rodrigues (1912/80). Que fica bem evidenciado no trecho acima, extraído da sua crônica “A revolução dos idiotas”. Mas por mais conservador que fosse o grande dramaturgo brasileiro do séc. XX, se ele estivesse vivo neste séc. XXI, quanto tempo levaria para constatar que seu vaticínio não é exclusividade de um espectro político?

Como jornalista, Nelson se tornou conhecedor íntimo do cotidiano carioca, sobretudo o suburbano. E, como dramaturgo, talvez sua grande virtude tenha sido identificar nessa realidade o mesmo elemento trágico com que os gregos antigos criaram o teatro. Ao levar essa realidade particular e universal aos palcos, chocou a hipocrisia do seu tempo em peças como “Vestido de noiva”, “O beijo no asfalto”, “Bonitinha, mas ordinária”, ou “Toda nudez será castigada”.

Apelidado de “anjo pornográfico”, como Nelson veria, por exemplo, a cruzada contra a arte e os artistas brasileiros, liderada pela neodireita histérica do MBL, a partir da exposição “Queermuseu” no Santander de Porto Alegre, entre agosto e setembro no ano passado? Ou ao recrudescimento do movimento, com a performance “La bête” no MAM de São Paulo, em novembro? Ou aos protestos diante do Sesc Pompéia, em dezembro, em que bonecas vestidas de bruxas e com a foto da filósofa estadunidense Judith Butler, militante das questões de gênero, foram queimadas numa simulação da Inquisição? A mesma que, na Idade Média, queimou milhares de mulheres de verdade e obrigou o astrônomo italiano Galileu Galilei (1564/1642) a negar que o Sol, não a Terra, era o centro do nosso sistema estelar.

Outro italiano, o filósofo e semiólogo Umberto Eco (1932/2016) escreveu um grande livro sobre a herança grega no Ocidente, a Idade Média e a Inquisição: “O nome da rosa”. Foi contemporâneo de Nelson Rodrigues, mas viveu mais e teve tempo para pegar as novidades recentes da tecnologia na disseminação da informação. Em junho de 2015, ao receber o título de doutor honoris causa em comunicação e cultura da Universidade de Turim, Eco foi contundente: “As mídias sociais deram o direito à fala a legiões de imbecis que, anteriormente, falavam só no bar, depois de uma taça de vinho, sem causar dano à coletividade. Diziam imediatamente a eles para calar a boca, enquanto agora eles têm o mesmo direito à fala que um ganhador do Prêmio Nobel”.

Na última semana, foi através das mídias sociais que legiões de imbecis brasileiros fizeram o país passar vergonha aos olhos do mundo. Primeiro, após a embaixada da Alemanha publicar um vídeo contra o extremismo de direita e lembrar a experiência daquele país com o nazismo (1933/45), a direita tupiniquim usou as redes sociais para tentar reescrever a história. Não só afirmando que o regime de Adolf Hitler (1889/1945) seria de “esquerda”, como tentando negar até o Holocausto, no qual 6 milhões de judeus foram assassinados em campos de extermínio. Depois, a revista britânica The Economist, bastião do liberalismo econômico, foi chamada de “esquerdista” por essa mesma direita ruminante, após a publicação de uma matéria de capa alertando ao perigo da eleição de Jair Bolsonaro (PSL).

Tentar ensinar história da Alemanha aos alemães, ou lecionar liberalismo econômico à Economist, são feitos talvez sem precedentes. Ridículo à parte, têm o valor prático do obeso que diz à balança ter uma opinião diferente sobre o seu peso.

Embora genial, Nelson estava errado. Não há monopólio ideológico na imbecilidade que Eco viu ecoada nas redes sociais. Ela está, por exemplo, na direita que não quer o lulopetismo de volta ao poder, mas vota em Bolsonaro, melhor adversário para Fernando Haddad (PT) no segundo turno. Como está na esquerda que prega #EleNão, mas vota em Haddad, melhor adversário para Bolsonaro no segundo turno.

De um jeito e do outro também, exala o cheiro da gasolina ateada à “explosão triunfal dos idiotas”.

 

Publicado hoje (22) na Folha da Manhã

 

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