A conquista do Pólo Sul no feriadão

 

Enquanto dava um beiço neste espaço virtual, dediquei o feriadão da semana passada a uma mídia antiga, que exige uma intersecção de sentidos infelizmente cada vez mais na contramão dos dias de hoje, na qual a visão faz comunhão com tato e olfato: o livro. Li, em quatro dias, num fôlego interrompido só pela respiração pesada e vencida pelo sono, as quase 700 páginas de “O Último Lugar da Terra — A Competição entre Scott e Amundsen pela Conquista do Pólo Sul”, do jornalista e escritor sul-africano Roland Hunteford, tradução de José Geraldo Couto, editado pela Companhia das Letras em 2002.

Robert Falcon Scott foi o oficial da Marinha Real Britânica que comandou uma confusa expedição à Antártida, entre 1900 e 1904, no navio Discovery, e depois uma outra, a bordo do Terra Nova, entre 1910 e 1912, que conseguiu ser ainda mais desastrada, pois além de só alcançar o Pólo Sul cinco semanas após seu concorrente (Amundsen), terminou com a morte dos cinco integrantes da equipe no caminho de volta à base, incluído o próprio Scott. Por sua vez, o explorador noruguês Roald Amundsen já havia integrado a primeira expedição a passar um inverno na Antártida, entre 1887 e 1889, a bordo do navio Bélgica, além de ter sido o primeiro a completar a navegação pela passagem ártica Noroeste, entre o Atlântico e o Pacífico, contornando o norte do Canadá no comando do pequeno veleiro Gjoa, entre 1903 e 1905, caminho buscado por nautas de todas as plagas nos 400 anos anteriores.

Ao comandar a primeira expedição que chegou também ao Pólo Sul, em 15 de dezembro de 1911, Amundsen não o fez com base no espírito coorporativo do seu concorrente inglês, mas a partir da sua experiência individual, acumulada nos dois extremos da Terra e agregada às habilidades igualmente individuais dos seus companheiros Helmer Hassen, Oscar Wisting, Olav Bjaaland e Sverre Hassel. Íntimos do uso de esquis, dos trenós puxados por cães e da idumentária esquimó — elementos menosprezados e subaproveitados pelos britânicos, em nome de uma pretensa superioridade civilizatória ou pela simples incompetência tão típica do espírito de funcionário público —, todos os cinco noruegueses voltaram sãos e salvos à sua base.

Quando eles partiram à conquita do Pólo Sul, em mais de 1,5 mil kms de território inexplorado distante da sua base antártica, o Framheim — “Casa de Fram”, este o legendário navio norueguês que, capitaneado por Amundsen, levou a expedição ao continente gelado —, Rutford descreve o ato, em resumo histórico e poético: 

— Aquele destacamento que serpenteva em direção ao sul, nevasca adentro, emergindo e desaparecendo à medida que seguia a ondulação da barreira, como um esquadrão de navios de guerra avançando sobre as vagas, representava a culminação de uma era. Os homens estavam vestidos com roupas esquimós, os cães que rompiam a neve com eles estavam arreados à maneira esquimó; mas os trenós, os esquis, os alimentos (…), os sextantes, os fogareiros portáteis, as barracas e toda a bagagem eram produto do engenho do Ocidente. Era um casamento entre a civilização e uma cultura primitiva. A tecnologia utilizada já estava no limite da obsolescência. Aviões e tratores estavam prestes a tomar seu lugar. Essa era a última expedição clássica no estilo antigo e estava destinada a encerrar uma era de exploração terrestre que começou com a explosão do espírito humanista durante a Renascença.

Este casamento entre tecnologias passada e presente — conduzidas pelo espírito assumido de indivíduos, no lugar dos que se dizem coletivos, mas escondem interesses pessoais de todos os tipos —, que explica a vitória de Amundsen e o fracasso fatal de Scott, continua valendo, um século depois, para análise  de quaisquer projetos, seja nos pólos ou mais próximo do Equador. Destaque ainda à união entre literatura de aventura e trabalho biográfico bem escrito e extensamente pesquisado, com base nos diários não só dos líderes das duas expedições, mas nos de vários de seus companheiros.

Dos projetos aos indivíduos que os compõem, mantém também sua pertinência atemporal uma das analogias finais de Hunteford, entre suas duas personagens centrais:

— Scott queria ser um herói; Amundsen queria meramente chegar ao pólo. Scott, com sua tendência de autodramatização, representava para as galerias; Amundsen pensava no trabalho que tinha pelas mãos, não numa platéia.

 

Da esquerda à direita: Amundsen, Hanssen, Hassel e Wisting, no Pólo Sul, diante da barraca e da bandeira da expedição norueguesas (foto da Biblioteca Nacional da Noruega, Divisão de Iconografia de Oslo)
Da esquerda à direita: Amundsen, Hanssen, Hassel e Wisting, no Pólo Sul, diante da barraca e da bandeira da expedição norueguesas (foto da Biblioteca Nacional da Noruega, Divisão de Iconografia de Oslo)
Da esquerda à direita: Scott, Bowers, Wilson e Evans(todos mortos no caminho de volta) diante da mesma barraca e bandeira deixadas no Pólo Sul, cinco semanas antes, pela expedição norueguesa que os superou (foto do Insituto de Pesquisa Polar Scott)
Da esquerda à direita: Scott, Bowers, Wilson e Evans (todos mortos no caminho de volta) diante da mesma barraca e bandeira deixadas no Pólo Sul, cinco semanas antes, pela expedição norueguesa que os superou (foto do Insituto de Pesquisa Polar Scott)
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Este post tem 2 comentários

  1. Guilherme Ribeiro Gomes Belido

    Aluysio.

    Única sobrevivente do latim da Itália central, a Língua Portuguesa, mesmo sofrendo os efeitos causados pela dificuldade de sua própria etimologia – logo, dificuldade “dela” mesma – chegou, ainda que cambaleante, aos dias atuais.
    Contudo, “a última flor do Lácio”, de Bilac, talvez não subsista à nova “linguagem” que emerge horrorosa, simplista errada e burra da Internet (e dos e-mails), – mãe, pai e parteira de todas as abreviaturas.
    Quem sabe estamos a presenciar o surgimento da “Abregiria”, mistura de abreviatura com gíria, língua do vale-tudo, onde a regra é não ter regras.
    Com efeito, a inovação acabaria com o que hoje entendemos por “escrever errado”, até porque inexistiria o “escrever-certo”.
    Mas enquanto o culto à ignorância não se instaura absoluta e universalmente, o hábito simples (incomum, mas simples) de “gastar” o feriadão lendo um livro talvez sirva de inspiração aos (ainda) resistentes à idéia de sepultar de uma vez por todas o Português.

    Abraços, Guilherme.

  2. Aluysio

    Caro Guilherme,

    Antes tarde do que nunca, peço que desculpe o atraso no retorno, mas o sinal da net que consigo captar em Atafona, meu pouso de quase todo o final de semana, varia com as marés. Deu para moderar o seu e alguns outros comentários, mas não a maioria, o que só faço hoje.
    Quanto ao teor do seu comentário, meu amigo, não apenas em relação à última flor do Lácio, mas a todas as línguas, de maneira geral, parece mesmo ocorrer a involução a que vc se refere, com o abandono do livro em escala geométrica e inversamente proporcional ao avanço da leitura na internet, com toda sua sanha de resumo de signos.
    Para onde isso vai nos levar, ainda é cedo para saber, talvez até para dimensionar. Tenho pena de quem nunca teve a visão da leitura acompanhada também pelo tato e olfato do livro, buscando na sombra o melhor ângulo para a entrada de luz sobre a página aberta, em vez de tê-la emanando da própria tela.
    Todavia, se aprendi alguma coisa com o que encontrei nos livros, é que a vida não é um ato de justiça; ela apenas é!

    Abraço e grato pela colaboração!

    Aluysio

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