Quem entende um pouco de artes-marciais nunca teve dúvidas: nenhum especialista em determinada luta, por mais brilhante que seja, pode ter sucesso em combate aberto contra um advsersário do primeiro time do MMA (mixed martial arts, o antigo vale-tudo). Até os anos 90, antes da explosão do Ultimate Fighting Championship (UFC), nos EUA (onde o MMA já é o esporte número 1 entre os homens entre 18 e 35 anos), América Latina, Europa, Oriente Médio e Ásia, o boxe era, sem sombra de dúvida, a luta que atraía maior público internacional. Por conseguinte, pagava as maiores bolsas e promovia os maiores eventos.
O UFC foi criado pela família Gracie, em 1993, nos EUA, para provar no país poderoso do mundo a supremacia do jiu-jitsu brasileiro sobre as demais artes-marciais. O objetivo foi alcançado por um dos filhos do lendário Hélio Gracie, Royce Gracie, campeão das duas primeiras edições, ainda na forma de torneio eliminatório, com curiosos combates entre especialistas se sucedendo no mesmo dia, até a final, sem adoção de luvas, divisão de categorias por peso ou limite de tempo.
As dificuldades começaram a surgir no UFC 3, em 1994, quando Royce venceu a primeira luta, mas se contundiu e não pôde prosseguir para defender o título. Ele voltaria na edição seguinte, em dezembro do mesmo ano, para derrotar na final o favorito Dan Severn, primeiro representante da longa linhagem que faria com sucesso a transição do wrestling (luta olímpica e greco-romana, que rivalizava com o jiu-jitsu brasileiro desde os combates de Hélio Gracie, na década de 50 do séc. 20) ao MMA.
No UFC 5, quando as necessidades comerciais da transmissão de TV começaram a impor limites de tempo, fazendo com que Royce empatasse com Ken Shamrock, a quem havia vencido no UFC 1, os Gracie decidiram abandonar o evento.
Na verdade, avançando um pouco mais na história do esporte, pode-se dizer que o primeiro lutador daquilo que se entende hoje como MMA foi o também brasileiro Marco Ruas. Quando ganhou o UFC 7, em 1995, após vencer quatro combates contra lutadores de estilos diferentes, se impondo tanto na trocação em pé, quanto na luta de solo, Ruas provou que o MMA não se tratava de uma competição entre especialistas, mas generalistas que soubessem usar o melhor de cada arte-marcial de acordo com as circunstâncias da luta.
Enquanto dentro do octagon o futuro era definido por um brasileiro (Ruas), fora dele o porvir do novo esporte foi traçado com visão empresarial e competência por um estadunidense que assumiu o UFC após o abandono de outros brasileiros (os Gracie). Se nunca teve maior projeção como praticante de artes-marciais, Dana White é o principal responsável pelo crescimento do UFC que preside e, por conseguinte, do MMA.
Tacada de mestre na popularização do esporte foi a criação do reality show Ultimate Fighter. Nele duas equipes de aspirantes ao UFC são treinadas, em regime de internato, por estrelas consagradas do evento. À parte o desempenho nos treinamentos e nas lutas, o público comum se identifica não com máquinas de combate, mas seres humanos, jovens em sua maioria, que dormem, acordam, comem, vão ao banheiro, têm saudades da família, sonhos, medos, frustrações, dor e até choram, enquanto abrem mão de tudo mais para tentar agarrar a chance de sucesso na atividade profissional que escolheram.
A cada nova pesquisa, comprovando o crescimento do esporte e do evento em escala geométrica e mundial, é encurtada a passos largos a longa distância que ainda separa o MMA e o UFC da maior ambição confessa de Dana White: Fazer o primeiro ser mais popular que o futebol e o segundo mais importante que a Copa do Mundo.
Onzes fora o futebol, em relação a um esporte individual mais análogo, o boxe, o MMA usou o UFC 118, realizado na cidade de Boston, na madrugada de hoje, como palco do protagonismo que hoje ocupa, pelo menos no mundo das lutas. Depois do pouco sucesso que pugilistas profissionais de renome como o sul-africano François Botha e o estadunidense Ray Mercer tiveram no K-1 (espécie de vale-tudo na trocação em pé, com socos, chutes e joelhadas, mas sem luta agarrada), ninguém poderia supor que James “Lights Out” Toney, mesmo com uma vitória sobre Evander Hollyfield em seu brilhante cartel de boxeador, pudesse ter grande chance dentro das regras mais amplas do MMA (aberto também a cotoveladas, quedas, chaves e torções), sobretudo diante de uma lenda deste esporte, talvez seu maior nome egresso do wrestling: Randy “The Natural” Couture.
Toney foi campeão mundial de boxe nas categorias médio, super-médio e cruzador. Couture conquistou o cinturão do UFC como peso pesado e meio-pesado. Na praia de um, o outro provavelmente morreria afogado na beira. À deriva no oceano de possibilidades do MMA, foi o que aconteceu com o pugilista, ainda no primeiro assalto, sem chance de soltar sequer um soco em pé. Ciente do perigo caso isto ocorresse, Couture mudou seu estilo de esgrima de wresting e trocação à curta distância (o chamado dirting boxe, onde os cotolevos ferem tanto quanto os punhos), enquanto espreme o adversário contra as grades e prepara o terreno para atirá-lo ao solo.
Mantendo-se distante das mãos de Toney nos segundos iniciais, The Natural não demorou a voar para catar com as mãos as pernas do oponente, derrubá-lo, passar sua guarda e finalizá-lo com um katagatame (sufocamento entre o peso do corpo concentrado no ombro sob a axila do adversário e o braço fechado pelo seu pescoço, no lado oposto). Antes de apagar suas luzes, Lights Out preferiu bater.
Relevante ressaltar que o katagatame é um golpe de jiu-jitsu (presente também no judô). Acrescido ao jogo de um wrestler, contra um pugilista, só evidencia como qualquer especialista tem hoje pouca ou nenhuma chance no MMA. Numa brincadeira, após a luta, um dos segundos de Couture pôs uma faixa-preta sobre seu ombro, numa referência clara ao jiu-jitsu usado (e talvez pensado antes) na finalização.
Na principal luta da noite, pelo título dos leves do UFC, Frank Edgar defendeu o cinturão de quem havia tomado: BJ Penn. Como na primeira peleja, a revanche dos lutadores estadunidenses também foi definida pela decisão dos juízes, após cinco assaltos de cinco minutos (quando não vale título, são três rounds). Todavia, diferente do último combate, que muita gente achou (inclusive o blogueiro) ter sido vencido por BJ, a madrugada de hoje não deixou dúvida quanto à superioridade de Edgar em todos os assaltos.
Embora careça de força em suas mãos, o campeão voltou a compensá-la com muita rapidez na soltura dos golpes e nos deslocamentos constantes, demonstrando seu grande preparo físico, calcanhar de Aquiles do ex-campeão. Reconhecido por seu talento extra-classe mesmo antes de entrar no MMA, BJ foi o primeiro não brasileiro campeão mundial de jiu-jitsu. E, já dentro do UFC, talvez fosse quem melhor aplicasse o jogo de boxe em todas as categorias, ao lado do brasileiro Anderson Silva, dono do cinturão dos médios. Mas diferente deste, a dedicação insuficiente aos treinos rendeu um estigma ao havaiano: é lutador, não atleta.
Na revanche contra Edgar, BJ não demonstrou vontade de quem quer ser (ou voltar a ser) campeão. Sem conseguir se impor na trocação, durante os três primeiros assaltos, ele tentou levar a luta para o chão, nos dois últimos, mas com o mesmo resultado. Se a má fase é ainda a ressaca de quem tentou subir de categoria para conquistar o cinturão dos meio-médios, e foi derrotado também duas vezes pelo campeão canadense Georges Saint-Pierre, ou se é mesmo o início da decadência de quem já foi apontado como um dos melhores lutadores de MMA de todos os tempos, peso a peso, só as próximas lutas de BJ Penn irão dizer (como bem observou aqui o jornalista e lutador Luciano Andrade). Mas em sua brilhante carreira, a luz ora acesa é a do sinal amarelo.
No MMA, bem como na história da vida, os especialistas e os indolentes não têm vez.
Parabèns pelo post, como grande admirador do torneio venho parabenizá-lo e agradecer pela ótima exposição. Gostaria de solicitar que continuasse comentando, para assim contribuir com a disseminação e popularização do esporte.
Caro Diego,
Agradeço pela parabenização. Quanto a continuar a postar sobre o MMA, bem como lutas em geral e outros esportes, é uma intenção do blog, até para variar o desprazeroso ecoar do samba de uma nota só que se tornou a política desta planície de interesses cortada pelo Paraíba.
Abraço e grato pela colaboação!
Aluysio
Sempre valorizei o brilho que comentários e críticas podem lançar às artes e a outras formas de expressão. Como admirador (impressionista) de artes marciais, embora esteticamente goste bem pouco de MMA e jiu-jitsu, encontrei em seu texto esse brilho. Por mais que isso talvez signifique pouco, considerando meus parcos conhecimentos (sobretudo práticos) acerca do assunto e o fato de não ter assistido à luta. Um abraço.
Caro Gustavo,
O texto trouxe mesmo essa intenção de historiografar didaticamente o esporte e o evento. Daí, talvez, seu tamanho. Entendo suas ressalvas estéticas em relação ao jiu-jitsu e ao wrestling, principais responsáveis pelo parte de solo do MMA, assim como o boxe e o muay thay são suas bases na trocação em pé, que é mais apreciada não só por vc, como pela maioria do público, sobretudo o estadunidense. Também prefiro a luta em pé, tanto para assistir, quanto para praticar, muito embora tenha a exata noção que o jogo de solo é muito, mas muito mais cerebral. E, talvez por isso mesmo, de entendimento mais complexo.
De qualquer maneira, se vc entende pouco de lutas, creio que o oposto se dá em relação a textos, o que me faz agradecer pelo elogio.
Abraço e grato pela colaboração!
Aluysio