“Acaso, não confortamos o teu peito,
E aliviamos o teu fardo,
Que feria as tuas costas,
E enaltecemos a tua reputação?
Em verdade, com a adversidade está a facilidade!
Certamente, com a adversidade está a facilidade!
Assim, pois, quando estiveres livre dos teus afazeres, continua a prédica,
E volta para o teu Senhor toda a atenção”.
(Corão, Sura 94, versos 1 a 8, revelado ao profeta Muhammad pelo arcanjo Gabriel)
“Eles pensam que os gregos são deles”. Disse a mulher fenícia, sob a cumplicidade muda, mas risonha do marido, para ironizar a pretensão do interlocutor de ambos, que como qualquer ocidental, julgava a si e aos seus herdeiros de fato e direito do ponto mais alto da história humana, alcançado entre os mares Egeu e Adriático, e os sécs. VIII e IV a.C., naquilo que se convencionou chamar de Civilização Grega.
De fato, assim como aquela mulher, fenícia foi a mãe do primeiro filósofo, Tales (624/558 a.C.), de Mileto, colônia grega na Ásia Menor, onde hoje fica a Turquia. A história não registrou o nome da mãe do filósofo, mas muitos séculos, mares e continentes depois, foi Suad Moussalem quem me reeducou sobre a devida origem de tudo aquilo gerado por Tales, o que significa dizer todas as ciências humanas.
Era 2004, ano de eleições municipais, onde ela e o marido, Makhoul Moussalem conversavam comigo sobre os planos dele em se candidatar pelo PT à Prefeitura de Campos. O encontro, como não poderia deixar de ser, se deu no Kantão do Líbano, onde libaneses e seus descendentes se confraternizam há décadas com todas as demais etnias que habitam esta planície cortada pelo Paraíba.
Chamados vulgarmente de turcos, pois na época de sua maior migração ao Brasil, tinham estampados em seus passaportes a bandeira da Turquia, domínio que só cairia ao fim da I Guerra Mundial (1914/1918), aquelas gentes sempre fizeram questão, antes e muito depois, de se reafirmar libaneses. A bem da verdade, mesmo na Antiguidade, essas tribos de cananeus (primos dos hebreus, ou judeus; e dos ismaelitas, ou árabes) ficaram conhecidos como fenícios por alcunha dos vizinhos gregos, que, além da filosofia, lhes tomaram de empréstimo a vocação comercial marítima e uma outra pequena invenção: o alfabeto.
Mas voltando à conversa que iniciou toda essa digressão histórica, necessária para se entender a importância de um povo, eu já conhecia Makhoul de longa data, desde que uma queda me arrebentou o crânio e ele, numa cirurgia de alto risco, assumida com grande coragem, salvou minha vida.
Contato médico derivado ao intelectual, foi a partir de Makhoul que passei a me interessar pela cultura do médio oriente e islâmica. Foi ele, por exemplo, quem me apresentou ao persa Rumi (1207/1273), a quem hoje considero o maior poeta medieval, superior mesmo aos italianos Dante (1265/1321) e Petrarca (1304/1374). E conhecer um poeta como Rumi é quase como ter a vida salva de novo.
Quando estive em Konya, capital religiosa da Turquia, em julho de 2009, visitei com grande emoção o túmulo de Rumi, no Museu Mevlâna. Tinha ao lado meu filho, Ícaro, então com 10 anos, outro dos tantos que passaram pelas mãos médicas de Makhoul.
Por conhecer previamente Makhoul, não só sua cultura, como seu temperamento forte, é que a partir daquela conversa no Kantão, me impressionei ao constatar que sua parceira, além de também libanesa, era uma pessoa dotada das mesmas características, talvez até mais acentuadas.
Não me lembro se após a eleição de 2004, ou a suplementar de 2006, que Makhoul também disputou, Suad me ligou no jornal, querendo tomar satisfações pela cobertura que julgou aquém da merecida à campanha do marido. Em respeito à amizade e minha dívida de vida com ele, mas também à coragem e à paixão tão latentes nela, mentalizei uma contagem regressiva para evitar, da minha parte, qualquer ignição.
A última vez que vi Suad em vida, foi quando recebi ela e Makhoul na minha casa, em Atafona, junto a um grupo de amigos, no último verão, para uma peixada. Sem cerimônias ao se confraternizar, como penso ser característica do seu povo, ela entrou na cozinha onde eu preparava o almoço e ajudou a mim e a Lívia, minha esposa, a servir aos demais convidados.
Depois que comemos, enquanto todos conversávamos, Suad deu mais uma prova de sua coragem, ao tirar o chapéu e exibir nos cabelos ralos as cicatrizes da luta contra o câncer que enfrentou, sem vergonhas, de cabeça erguida, até o fim. E despida de qualquer vaidade, aquela mulher de uma raça antiga e orgulhosa me pareceu ainda mais bela.
Conforta o que Deus, pela boca do arcanjo, sussurrou ao ouvido do profeta: “Certamente, com a adversidade está a facilidade!”
Belas e felizes as palavras do cronista. Conheci rapidamente a Srº SUAD em uma visita que fiz ao Dr. Makhoul no final de 2009, onde ouvi sua opinião médica sobre um exame de minha irmã Paula Virgínia, que infelizmente também tinha câncer e hoje não está entre nós. Que Deus abençoe e conforte esta família nesta hora tão difícil.
Lindas palavras! Linda homenagem a uma mãe/esposa/amiga exemplar ,amorosa, forte companheira,honesta,verdadeira,guerreira…. Virtudes ?Inúmeras.Defeitos?Poucos,nossos amigos não tem defeitos!Que o esposo e os filhos seus,companheiros dos meus,recebam o carinho de todos nós que partilhamos da amizade deste casal AMIGO