“Todo brasileiro nasce flamenguista, só que alguns degeneram”. Volta e meia repetida pelos rubro-negros, a frase do compositor Ary Barroso é não só verdadeira, no que se refere aos exageros ufanistas do torcedor médio do time da Gávea e da Seleção Brasileira, como pertinente à sequência de um raciocíonio que comecei a desenvolver aqui, em diálogo com um leitor, e que pretendo retomar agora, véspera do jogo de amanhã, contra o Equador, que definirá (ou não) nossa passagem à próxima fase da Copa América.
Caracterizado por seu aspecto lúdico e sua vocação ofensiva, disse anteriormente que o chamado futebol-arte, na Seleção Brasileira, foi praticado dentro de um período histórico muito claro e definido, que vai da Copa de 1938, na França, à de 1982, na Espanha. Em ambas, coincidentemente marcadas pela presença de craques do Flamengo (Leônidas da Silva e Domingos da Guia, em 38; Zico, Leandro e Júnior, em 82), caimos diante da Itália, que acabaria levando aqueles dois Mundiais separados por 44 anos.
Entre eles, mesmo quando não foi campeão, o Brasil só não foi a seleção sensação da Copa, quando dela foi eliminado por duas equipes européias que figuram até hoje entre as melhores na história do futebol mundial, como provas vivas de que a arte no trato com a bola não tem pátria: a Hungria de Ferenc Puskas, em 1954, e a Holanda de Johan Cruijff, exatos 20 anos depois.
E não deixa de ser curioso constatar que ambas cairam na final diante da Alemanha (ainda Ocidental, dividida pelo Muro de Berlim), país que, junto com a Itália, tradicionalmente pratica em melhor nível aquilo que ficou conhecido como contraponto do futebol-arte: o futebol-força. No paralelo, devidas são as ressalvas da superioridade técnica da Itália de 38, de Giuseppe Meazza, sobre à de 82, do carrasco Paolo Rossi, assim como a da Alemanha do kaiser Franz Beckenbauer, de 74, sobre à de Fritz Walter, em 54.
Em relação ao Brasil, a ressalva também é pertinente à Copa de 1966, quando fomos eliminados ainda na primeira fase, com Pelé violentamente caçado pela boa seleção portuguesa de Eusébio e Coluna, no único Mundial que a Inglaterra sediou e venceu, pelos hábeis pés dos Bobby Charlton e Moore. Mas, além de 1938 e 1982, a beleza do jogo brasileiro encantou o mundo em 1950, quando perdemos a final em pleno Maracanã, diante do Uruguai; em 1958, nossa primeira conquista, quando o campista Didi conduziu o futebol brasileiro à sua maioridade; em 1962, no Bi de Garrincha, mais lúdico dos nossos jogadores; em 1970, na apoteoese do Tri e talvez desse próprio período histórico de quase meio século, muito bem resumido pelos pés de Pelé, Gérson, Rivelino e Tostão; e até em 1978, quando o time do capitão Cláudio Coutinho saiu da Argentina do generalíssimo Jorge Videla com o duvidoso título de “campeão moral”.
Mas a partir da Copa de 1986, no México, com Zico no sacrifício e já na mesma curva descendente de Falcão e Sócrates, um Telê Santana escaldado pela derrota quatro anos antes escalou como titulares dois típicos volantes de contenção, desprovidos de maior qualidade ténica: Alemão e Elzo. Tolidos de capacidade criativa no meio-de-campo da Seleção Brasileira, útero sem o qual o futebol-arte não se concebe, a decadência e posterior aposentadoria daquela brilhante geração de 82 foi parcialmente atenuada nas Copas de 1986, de 1990 (na Itália), de 1994 (nos EUA), de 1998 (novamente na França), de 2002 (no Japão e na Coréia do Sul) e de 2006 (na Alemanha reunificada), pela linha direta de três atacantes de exceção: Careca (86 e 90), Romário (90, como reserva, e 94) e Ronaldo Fenômeno (94, como reserva, 98, 2002 e 2006).
Bem escudados na frente por Muller (Careca), Bebeto (Romário e Ronaldo) e Rivaldo e Ronaldinho Gaúcho (Ronaldo), e com uma priorização cada vez maior dos cuidados defensivos, a coisa meio que virou: segura na defesa e chuta a bola para a frente, que os caras resolvem. Romário, em 94, e Ronaldo, em 2002, resolveram. Mas tanto eles, quanto Careca, como dito antes, foram atacantes de exceção, não regra — numa linha direta tão rara, quanto na filosofia foram, por exemplo, Sócrates (o ateniense, não o brasileiro), Platão e Aristóteles.
Quando a regra prevaleceu em nosso ataque, com Luís Fabiano (na Copa de 2010) e, agora, com Pato, bons jogadores, mas incapazes de resolver as coisas sozinhos, como seus antecessores eram, fomos obrigados a olhar para trás, para o setor de criação de jogadas. E, em todo o futebol brasileiro (ou jogado por brasileiros), ninguém é capaz, como o próprio Mano Menzes já admitiu, de encontrar nada além de Paulo Henrique Ganso, um jovem de 21 anos, para depositarmos todas as esperanças do resgate de algo que a Seleção Brasileira abandonou como regra há quase três décadas.
Não por acaso, Ganso, assim como Neymar, são produtos de um time, o Santos, que voltou a tentar colocar em prática o futebol-arte. Nem tão artístico assim, a partir da consistência defensiva imposta por Muricy Ramalho, deu até para conquistar a última Libertadores, contra o mesmo Peñarol que o Santos de Pelé derrotou na primeira conquista da América do Sul por um clube brasileiro, em 1962. Mas o fato histórico é que, depois do Flamengo de Zico (campeão da Libertadores e Mundial, em 1981), referência e base daquela Seleção de 82, apenas dois clubes tupiniquins praticaram, sem margem à contestação, o futebol-arte: o São Paulo de Telê, Bi-Mundial 1992/93, e o Palmeiras, de Vanderley Luxemburgo, Bi-Brasileiro 93/94.
No que se refere à Seleção de hoje, deve até dar para bater o Equador, amanhã, a exemplo do que fez ontem a Argentina, com uma seleção sub-22 da Costa Rica, e passar à próxima fase da Copa América. Mas mesmo que conquistemos a própria competição, convém baixar a bola do ufanismo tolo e constatar a verdade: não temos mais o melhor time, ou a melhor seleção, ou o melhor jogador do mundo. Estes são, por ordem, o Barcelona, a Espanha e, admitam ou não as patriotadas argentinas, Lionel Messi.
Frutos de anos de trabalho nas divisões de base do clube catalão, os três são hoje as melhores traduções coletivas e individual daquilo que se convencionou chamar de futebol-arte. Para que ele volte a caracterizar o jogo da Seleção Brasileira, após quase 30 anos de abandono, por ora não resta nada além do trabalho, da humildade, do compromisso e, sobretudo, da paciência.