Opiniões de poesia — Castro Alves

Conforme anunciado aqui, segue o transplante, do “Cantos” a este “Opiniões”, de textos que o blogueiro produziu sobre poesia. A bola da vez, no resgate, é Antônio Castro Alves, mais alto eco do nosso Romantismo aos “Versos que Homero gemeu”…

 

Castro Alves — Brisa do Brasil

Por aluysio, em 07-10-2009 – 15h33

Ouvir ou dizer que o Brasil nunca produziu poetas à altura de seus maiores romancistas, não é conversa nova. Tampouco é recente constatar que o conceito de brasilidade desta mesma prosa superior (será?) foi fundamentado com a publicação de “Os sertões”, em 1902, narrativa ocular de Euclides da Cunha (1866/1909) da Guerra de Canudos (1896/97). Após seguir seus passos pelo sertão baiano, expedição que rendeu um caderno publicado a 26 de dezembro de 2002, comemorativo ao centenário da obra, escrevi que a partir dela  “nossa literatura (…) rompeu com a importação de modelos, de realidades estrangeiras, e se propôs a discutir o Brasil, plantando na terra seca a semente do Modernismo, fazendo brotar Ramos e Rosas em meio a Rochas, contrapondo nosso atraso diante de outros países e, muito mais grave, o atraso do Brasil em relação ao Brasil”.

Sete anos depois, necessário ressaltar que a defesa de “Os sertões” como pedra fundamental de uma prosa genuinamente brasileira foi feita antes e depois, por gente mais balizada, do grande euclidianista Roberto Ventura (1957/2002) ao mestre peruano Mario Vargas Llosa. Mas e a posia brasileira? Se realmente ainda deve o seu equivalente a Machado de Assis (1839/1908) — para quem a prosa de Euclides serviu de ponte rumo ao Modernismo de Graciliano RAMOS (1892/1953) e Guimarães ROSA (1908/1967) —, quem há de contestar a brasilidade pujante e inaugural do poema “O navio negreiro”, escrito por Castro Alves (1847/1871) em 1868, 34 anos antes de “Os sertões”?

Certo que Gonçalves Dias (1823/1864), primeiro grande poeta do Romantismo que teve Castro Alves como estrela derradeira, buscou fundamentar antes essa mesma brasilidade. Todavia, se poemas seus com essa aspiração nacional, como “O canto do Piaga” (de 1847) e “I-juca-pirama” (de 1851), pela qualidade dos versos, estão à altura de “O navio negreiro”, deste se distanciam pela idealização indianista de Gonçalves Dias, no paralelo fictício do Brasil pré-crabalino com a Idade Média européia e suas estórias de cavalaria. Já Castro Alves optou por desenrolar o drama dos seus versos sob a luz do sol real, sem abandonar o hemisfério Sul ou se afastar do Equador. Bom baiano, sua latitude era África com Brasil.

Escrito por um jovem de 21 anos, “O navio negreiro” integrava o livro “Os escravos”, seu segundo. O primeiro — único publicado nos 24 anos em que se resumiram sua vida — foi “Espumas flutuantes”, sendo “A cachoeira de Paulo Afonso” o terceiro. 

Cronologicamente, o primeiro poema de “Os escravos” foi “A canção do africano”,  escrito em 1863 por um adolescente de 16 anos, idade em que se manifestou pela primeira vez a tuberculose que iria matá-lo, assim como o amor pelas mulheres, marca da sua vida, começou a se manifestar em sua lírica. Iminência da morte oposta à paixão pela vida: contraste superlativo que iria marcar toda a poética de antíteses de Castro Alves.

 Três anos mais tarde, em 1866, o poeta passou de admirador a amante da atriz portuguesa Eugênia Câmara, 10 anos mais velha que ele e sua grande paixão. Para ela, além de poemas, escreveu a peça “Gonzaga”, sobre o famoso caso de amor que teve a Inconfidência Mineira como pano de fundo.

Quando compôs “O navio negreiro”, Castro Alves estava em São Paulo, roteiro precedido por Rio e Bahia, após deixar, em 1867, os estudos de Direito em Recife, curso no qual nunca se formaria. Ia em companhia de Eugênia, lendo em público seus versos e encenando com a musa sua peça, colhendo sucesso popular incomum a um poeta no Brasil, cujo crédito devia mais à audição do que à leitura da sua obra.  Não por outro motivo, classificava o ritmo, que marca a musicalidade dos versos, como “talismã da verdadeira poesia”. E isso num tempo anterior à disseminação do verso livre de Walt Whitman (1819/1892), quando a rima e a métrica ainda eram elementos indissociáveis do fazer poético.

Guardadas as proporções devidas, fenômeno análogo ocorre em Campos, com o já tradicional Festival Nacional de Poesia Falada. Em algumas de suas edições anuais anteriores, o sucesso de poetas egressos do teatro, como Antônio Roberto Kapi e Adriana Medeiros, deveu-se muito à oralidade impressa em seus versos pelo ritmo do palco, esse “talismã” que raras vezes brilhou na poesia brasileira como em “O navio negreiro”. Não terá sido coincidência que o poema foi recitado por seu autor, pela primeira vez,  em um teatro, triunfalmente, num hoje distante 7 de setembro de 1868.

Seja pela forma de pequena epopéia, ou pelo conteúdo libertário — equilibrado entre Romantismo e Sociologia —, “O navio negreiro” é fruto direto da principal influência de Castro Alves: o escritor francês Victor Hugo (1802/1855). E para além da literatura iam os paralelos com seu mestre. Ainda que sem a excelência deste, que chegou a ser um dos maiores artistas gráficos da França de sua época, o poeta baiano manteve em paralelo a atividade de desenhista e pintor.  

Se essa característica de imagista está expressa em toda a sua obra literária, em “O navio negreiro” ela atingiu, talvez, o seu ápice. Após as antíteses entre mar e céu do primeiro movimento, como vida e morte confluídas no eterno (“Embaixo — o mar… em cima — o firmamento… / E no mar e no céu — a imensidade!”),  será pelos olhos do albatroz, “Leviatã do espaço”, que se descortinarão as glórias passadas dos povos marinhos, cantadas no segundo movimento e pontuadas, não coincidentemente, com os nautas da pátria de Homero, pai de todos os vates.  

Segue-se então o terceiro movimento, reunido na vertigem de uma única estrofe, quando a ave-poeta dá seu mergulho. Como um travelling descendente do cinema, num daqueles geniais planos-sequência de Orson Welles, revela-se ao leitor o “quadro de amarguras”, a “cena funeral”, as “tétricas figuras”, a “cena infame e vil”, o “horror” do tráfico de escravos.

No quarto movimento,“talismã” do autor, o ritmo imprime a musicalidade expressa pelo “estalar do açoite” sobre os africanos, tirados do porão e postos “horrendos a dançar” no convés, costume realmente adotado nos navios negreiros para que o prejuízo da morte por inanição não se abatesse sobre  a  mercadoria humana. E no refrão da “orquestra irônica, estridente”, ecoa o riso do maestro Satanás.

Na passagem do quarto ao quinto movimento, outra das antíteses de Castro Alves. Após Satanás, surge Deus, cujo livre arbítrio aos homens não O exime de ser violentamente cobrado pelo poeta, que recruta também as forças da natureza a apagar o “borrão” da escravidão. É ainda neste movimento que os escravos ganham indentidade, a partir de referências geográficas (“Ontem a Serra Leoa”) e etnográficas, muito embora a citação das personagens bíblicas Agar (escrava egípcia de Abraão)  e Ismael (filho dos dois e patriarca da tribo dos ismaelitas, mais tarde árabes) aponte para a África do Norte, o Magreb muçulmano, enquanto a maioria dos escravos negros trazidos à América advinha da África sub-saariana, ao sul. Espécie nativa da Ásia, tampouco os tigres citados fazem parte da fauna africana.

Como o caráter de nacionalidade do poema se refere ao continente do outro lado do Atlântico, é só no sexto e último movimento que surge o “povo que a bandeira empresta / P’ra cobrir tanta infâmia e cobardia”: “Auriverde pendão da minha terra / que a brisa do Brasil beija e balança”. Nas aliterações (brisa, Brasil, beija, balança), recurso antecipado ao Modernismo, nossa digital é descoberta na arma do crime, como se toda a descrição da crueldade com que este foi cometido convergisse em preâmbulo à revelação final dos assassinos de uma raça: NÓS!

Ao fim do seu prefácio de “Os sertões”, ao resumir todo caráter da sua obra, Euclides da Cunha sentenciou o genocídio praticado pelo Exército Brasileiro contra as 25 mil almas arrebanhadas por Antônio Conselheiro num aldeamento miserável de sertão: “Aquela campanha lembra um refluxo para o passado. E foi, na significação integral da palavra, um crime. Denunciemo-lo”.

Em verso e prosa, nas denúncias dos crimes que cometemos, a identidade de uma nação.

 

 

O NAVIO NEGREIRO

 

TRAGÉDIA NO MAR

 

 

’Stamos em pleno mar… Doudo no espaço

Brinca o luar — doirada borboleta —

E as vagas após ele correm… cansam

Como turba de infantes inquieta.

 

’Stamos em pleno mar… Do firmamento

Os astros saltam como espumas de ouro…

O mar em troca acende as ardentias

— Constelações do líquido tesouro.

 

’Stamos em pleno mar… Dois infinitos

Ali se estreitam num abraço insano

Azuis, dourados, plácidos, sublimes…

Qual dos dois é o céu? Qual o oceano?…

 

’Stamos em pleno mar… Abrindo as velas

Ao quente arfar das virações marinhas,

Veleiro brigue corre à flor dos mares

Como roçam na vaga as andorinhas…

 

Donde vem?… Onde vai?… Das naus errantes

Quem sabe o rumo se é tão grande o espaço?

Neste Saara os corcéis o pó levantam,

Galopam, voam, mas não deixam traço.

 

Bem feliz quem ali pode nest’hora

Sentir deste painel a majestade!…

Embaixo — o mar… em cima — o firmamento…

E no mar e no céu — a imensidade!

 

Oh! Que doce harmonia traz-me a brisa!

Que música suave ao longe soa!

Meu Deus! Como é sublime um canto ardente

Pelas vagas sem fim boiando à toa!

 

Homens do mar! Ó rudes marinheiros

Tostados pelo sol dos quatro mundos!

Crianças que a procela acalentara

No berço destes pélagos profundos!

 

Esperai! Esperai! Deixai que eu beba

Esta selvagem, livre poesia…

Orquestra — é o mar que ruge pela proa,

E o vento que nas cordas assobia…

 

…………………………………………………………………………………………………………

 

Por que foges assim, barco ligeiro?

Por que foges do pávido poeta?

Oh! Quem me dera acompanhar-te a esteira

Que semelha no mar — doudo cometa!

 

Albatroz! Albatroz! águia do oceano,

Tu que dormes das nuvens entre as gazas,

Sacode as penas, Leviatã do espaço!

Albatroz! Albatroz! dá-me estas asas…

 

 

Que importa do nauta o berço,

Donde é filho, qual seu lar?…

Ama a cadência do verso

Que lhe ensina o velho mar!

Cantai! que a noite é divina!

Resvala o brigue à bolina

Como um golfinho veloz.

Presa ao mastro da mezena

Saudosa bandeira acena

Às vagas que deixa após.

 

Do Espanhol as cantilenas

Requebradas de langor,

Lembram as moças morenas,

As andaluzas em flor.

Da Itália o filho indolente

Canta Veneza dormente

— Terra de amor e traição —

Ou do golfo no regaço

Relembra os versos do Tasso

Junto às lavas do Vulcão!

 

O Inglês — marinheiro frio,

Que ao nascer no mar se achou —

(Porque a Inglaterra é um navio,

Que Deus na Mancha ancorou),

Rijo entoa pátrias glórias,

Lembrando orgulhoso histórias

De Nelson e de Aboukir.

O Francês — predestinado —

Canta os louros do passado

E os loureiros do porvir…

 

Os marinheiros Helenos

Que a vaga iônia criou,

Belos piratas morenos

Do mar que Ulisses cortou,

Homens que Fídias talhara,

Vão cantando em noite clara

Versos que Homero gemeu…

…Nautas de todas as plagas!

Vós sabeis achar nas vagas

As melodias do céu…

 

 

Desce do espaço imenso, ó águia do oceano!

Desce mais, inda mais… não pode o olhar humano

Como o teu mergulhar no brigue voador.

Mas que vejo eu ali… que quadro de amarguras!

Que cena funeral!… Que tétricas figuras!…

Que cena infame e vil!… Meu Deus! meu Deus! Que horror!

 

 

Era um sonho dantesco… O tombadilho

Que das luzernas avermelha o brilho,

Em sangue a se banhar.

Tinir de ferros… estalar do açoite…

Legiões de homens negros como a noite,

Horrendos a dançar…

 

Negras mulheres, suspendendo à tetas

Magras crianças, cujas bocas pretas

Rega o sangue das mães:

Outras, moças… mas nuas, espantadas,

No turbilhão de espectros arrastadas,

Em ânsia e mágoa vãs.

 

E ri-se a orquestra, irônica, estridente…

E da ronda fantástica a serpente

Faz doudas espirais…

Se o velho arqueja… se no chão resvala,

Ouvem-se gritos… o chicote estala…

E voam mais e mais…

 

Presa nos elos de uma só cadeia,

A multidão faminta cambaleia,

E chora e dança ali!

 

…………………………………………………………………………………………………………

 

Um de raiva delira, outro enlouquece…

Outro, que de martírios embrutece,

Cantando, geme e ri!

 

No entanto o capitão manda a manobra

E após, fitando o céu que se desdobra

Tão puro sobre o mar,

Diz do fumo entre os densos nevoeiros:

“Vibrai rijo o chicote, marinheiros!

Fazei-os mais dançar!…”

 

E ri-se a orquestra irônica, estridente…

E da roda fantástica a serpente

Faz doudas espirais!

Qual num sonho dantesco as sombras voam…

Gritos, ais, maldições, preces ressoam!

E ri-se Satanás!…

 

 

Senhor Deus dos desgraçados!

Dizei-me vós, Senhor Deus!

Se é loucura… se é verdade

Tanto horror perante is céus…

Ó mar! por que não apagas

Co’a a esponja de tuas vagas

Do teu manto este borrão?…

Astros! noite! tempestades!

Rolai das imensidades!

Varrei os mares, tufão!…

 

Quem são estes desgraçados,

Que não encontram em vós

Mais que o rir calmo da turba

Que excita a fúria do algoz?

Quem são?… Se a estrela se cala,

Se a vaga à pressa resvala

Como um cúmplice fugaz,

Perante a noite confusa…

Dize-o tu, severa musa,

Musa libérrima, audaz!

 

São os filhos do deserto

Onde a terra esposa a luz

Onde voa em campo aberto

A tribo dos homens nus…

São os guerreiros ousados,

Que com os tigres mosqueados

Combatem na solidão…

Homens simples, fortes, bravos…

Hoje míseros escravos

Sem ar, sem luz, sem razão…

 

São mulheres desgraçadas

Como Agar o foi também,

Que sedentas, alquebradas,

De longe… bem longe vêm…

Trazendo com tíbios passos,

Filhos e algemas nos braços,

Nalma — lágrimas e fel.

Como Agar sofrendo tanto

Que nem o leite do pranto

Têm que dar a Ismael…

 

Lá nas areias infindas,

Das palmeiras no país,

Nasceram — crianças lindas,

Viveram — moças gentis…

Passa um dia a caravana

Quando a virgem na cabana

Cisma da noite nos véus…

… Adeus! ó choça do monte!…

… Adeus! palmeira da fonte!…

… Adeus! amores… adeus!

 

Depois o areal extenso…

Depois o oceano de pó…

Depois no horizonte imenso

Desertos… desertos só…

E a fome , o cansaço, a sede…

Ai! quanto infeliz que cede,

E cai p’ra não mais s’erguer!…

Vaga um lugar na cadeia,

Mas o chacal sobre a areia

Acha um corpo que roer…

 

Ontem a Serra Leoa,

A guerra, a caça ao leão,

O sono dormindo à toa

Sob as tendas d’amplidão…

Hoje… o porão negro, fundo,

Infecto, apertado, imundo,

Tendo a peste por jaguar…

E o sono sempre cortado

Pelo arranco de um finado,

E o baque de um corpo ao mar…

 

Ontem plena liberdade,

A vontade por poder…

Hoje… cum’lo de maldade

Nem são livres p’ra… morrer…

Prende-os a mesma corrente

— Férrea, lúgubre serpente —

Nas ròscas da escravidão.

E assim roubados à morte,

Dança a lúgubre coorte

Ao som do açoite… Irrisão!…

 

Senhor Deus dos desgraçados!

Dizei-me vós, Senhor Deus!

Se eu deliro… ou se é verdade

Tanto horror perante os céus…

Ó mar, por que não apagas

Co’a a esponja de tuas vagas

Do teu manto este borrão?…

Astros! noite! tempestades!

Rolai das imensidades!

Varrei os mares, tufão!…

 

 

E existe um povo que a bandeira empresta

P’ra cobrir tanta infâmia e cobardia!…

E deixa-a transformar-se nessa festa

Em manto impuro de bacante fria!…

Meu Deus! meu Deus! mas que bandeira é esta,

Que impudente na gávea tripudia?!…

Silêncio!… Musa! chora, chora tanto

Que o pavilhão se lave no teu pranto…

 

Auriverde pendão de minha terra,

Que a brisa do Brasil beija e balança,

Estandarte que a luz do sol encerra,

E as promessas divinas da esperança…

Tu, que da liberdade após a guerra,

Foste hasteado dos heróis na lança,

Antes te houvessem roto na batalha,

Que servires a um povo de mortalha!…

 

Fatalidade atroz que a mente esmaga!

Extingue nesta hora o brigue imundo

O trilho que Colombo abriu na vaga,

Como um íris no pélago profundo!…

… Mas é infâmia de mais… Da etérea plaga

Levantavai-vos, heróis do Novo Mundo…

Andrada! arranca este pendão dos ares!

Colombo! fecha a porta de teus mares!

 

S. Paulo, 18 de abril de 1868

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