Versos do domingo — Beto Angeiras

O ano era 1994. Tentava retomar a carreira acadêmica abandonada em Campos. Morava no Rio, junto com meu irmão, Christiano. Sua namorada de então, Eliana, fazia psicologia na Universidade Santa Úrsula (USU), curso que teve um dos alunos, Luiz Alberto Barbosa Gomes Angeiras (1968/1994), assassinado aos 25 anos, por dois PMs, com dois tiros pelas costas, em troca de um relógio e uns trocados, no município de São Pedro da Aldeia, em fevereiro daquele ano.

À época, ainda em Campos, soube do caso pela repecussão na mídia. Meses depois, a lembrança foi resgatada quando descobri, já morando no Rio, que o Beto Angeiras, como era mais conhecido, era poeta, e dos bons, grata influência assumida do paranaense maldito Paulo Leminski (1944/1989).

Eliana ganhou na USU um exemplar do livro “Idos Gemidos”, coletânea dos poemas de Beto reunida e editada por seus amigos, e me presenteou, provavelmente pelo fato de eu ter vencido, dois anos antes, o FestCampos de Poesia Falada — prêmio que voltaria a conquistar, mais maduro, em 2007.

O fato é que, desde que ganhei e devorei o livro, guardado com carinho até hoje, fiquei impactado não só pela jovem vida desperdiçada por motivo tão banal e torpe, como por aquilo que nunca saberemos da continuidade do poeta ainda promissor — daquilo que seu colega de ofício português Fernando Pessoa (1888/1935) tão bem definiu como “a história do que poderia ter sido”.

Pelo jovem poeta que Beto sempre será, que tanto marcou aquele que fui um dia, o blog selecionou três dos seus poemas, todos sem título, para a publicação neste domingo.

O primeiro, fruto do amor desabusado pela vida, quando um homem encontra na mulher, em generosa comunhão de carne, seu abrigo ao menino. O segundo, em todas as suas metades-migalhas, como consta aqui, no blog Asazul, da Vilma, é, não sem motivos, o preferido inteiro da mãe do autor, Maria Regina.

Todavia, é do terceiro que talvez se possa extrair a melhor lição, sobretudo neste 11 de setembro em que o mundo pára para refletir sobre a violência que tanto o marcou há exata uma década. Mesmo diante do assassínio a traição, seja por duas balas ou dois aviões, de um ou de tantos: “Deixa que a poesia,/ ela própria,/ corrige a vida”.

Tenho o estômago forte

e as veias alargadas, avenidas por onde corre

querosene, álcool,

gasolina.

E a faísca que se produz entre tuas pernas.

No teu cio alagado,

nos teus músculos contraídos,

nos teus dentes na minha carne.

Que teu gozo venha sempre primeiro,

feroz e feminino.

Incendiando o desejo,

desatinando os sentidos

e me convidando a ser homem, antes de,

menino,

procurar teu abrigo

Tua falta, metade fita,

É metade lenda,

Distinta farsa

Tua falta é quase nada

É metade linda

Metade faca

Tua falta, quase tudo

Vento que espalha

Gota, migalha

Impossibilidade

Vai, vai fazer fazer poesia,

vai cada ano rimando,

medindo, apagando.

Vai.

Vai enquanto a peste

mata negra e raivosa

um a um de sua aldeia.

Vai.

Vai fazer poesia,

Que beleza não tem hora

e nem tem dia.

Vai.

Deixa que a poesia,

ela própria,

corrige a vida.

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Este post tem um comentário

  1. sandra

    Que bom que elas não foram embora,não estão de férias.Só assim posso curti-las neste domingo morno.Parabens ao poeta,que tão cêdo nos deixou e parabens ao blogueiro que garimpou versos tão bonitos

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