Versos do domingo — James Joyce

Na reunião de pauta da última quinta-feira, o editor da Folha Dois, Marcos Curvello, informou que a matéria destinada à Folha Letras da edição do dia seguinte (anteontem) seria sobre o escritor irlandês James Joyce (1882/1941), mais precisamente sobre uma sua biografia pesquisada e escrita por Edna O’Brien, também romancista irlandesa, que se tornou mais conhecida no Brasil após afirmar, sendo ecoada pelo jornalista Diogo Mainardi, que “Chico Buarque é uma fraude”. Polêmica por polêmica, a pauta da biografia foi “vendida” por Curvello com base na “novidade” do apreço pessoal do autor de “Ulysses” (considerado por muita gente boa como o maior romance do séc. 20) pelos bordéis. Aleguei que a informação era correta, embora longe de ser nova ou desconhecida, pois o próprio Joyce já admitira essa sua vocação boêmia e hedonista em versos. No caso, no poema “O Santo Ofício”, escrito em 1904, poucos meses antes do autor deixar sua Dublin natal, numa sátira mordaz contra os intelectuais da sua terra reunidos no movimento chamado “Renascença Céltica” — entre eles, o grande poeta William Butler Yeats (1865/1939), Nobel de Literatura em 1923, prêmio que Joyce nunca ganhou. 

Contrário ao emprego de palavras do gaélico (língua dos antigos celtas, ou gauleses, chamados “gálatas” por Paulo em suas epístolas) e ao resgate do misticismo ancestral irlandês (herança do paganismo druida) cultivados na arte por seus compatriotas, numa tentativa de reafirmação de nacionalidade, diante da dominação inglesa (a porção católica da Irlanda só se tornaria independente da Grã-Bretanha protestante em 1922), Joyce usou no poema a forte imagem da Inquisição Católica para endossar seu compromisso com a língua inglesa, da qual foi o principal reinventor no séc. 20, e com a escola de pensamento peripatético, fundada pelo filósofo grego Aristóteles (384 a.C./322 a.C.) — “cuja cabeça sustenta até hoje o Ocidente”, como já cantou o Caetano, amigo de Chico.

Cantando aquilo (e naquilo) que julgava universal, o poeta assumiu a escatológica condição de “Catarse-purgativo” para também combater o que considerava provincianismo de uma Irlanda que, como poucos, soube imortalizar em verso e prosa. 

Assim como o nosso Mulato, autor dos versos publicados aqui no último domingo, Joyce foi um poeta sempre eclipsado à sombra gigantesca do prosista. No entanto, publicada nos livros “Música de Câmara” (1907) e “Pomas, um tostão cada” (1927, no qual incluiu o “Santo Ofício” escrito 23 anos antes), sua obra poética é considerada fundamental por gente como o estadunidense Erza Pound (1885/1972), um dos principais poetas modernistas da língua inglesa, ou o brasileiro Haroldo de Campos (1929/2003), luminar do nosso Concretismo e considerado mundialmente um dos melhores tradutores do grego Homero, pai de todos os poetas.

Ainda assim e cultuado por ter transposto à prosa a ourivesaria da palavra que caracteriza a poesia, o próprio Joyce sempre se considerou um “poeta frustrado”.

Abaixo, entre os bares e bordéis da Dublin do final do séc. 19 e início do 20, você, leitor desta planície do séc. 21, poderá fazer sua própria análise…

 

 

O Santo Ofício

 

Dou-me este denominativo

A mim: Catarse-purgativo.

Eu, que troquei tortuosa via

Pelo manual da poesia,

E a bares e bordéis transporto-lhes

O gênio agudo de Aristóteles —

Pros bardos não errarem a esmo,

Eu interpreto-me a mim mesmo:

Ouve o meu lábio que repete

Cultura de peripatético.

 

 

 

The Holy Office

 

Myself unto myself will give

This name Katarsis-Purgative.

I, who dishevelled wys forsook

To hold the poets’ grammar-book,

Bringing to tavern and to brothel

The mind of witty Aristotle,

Lest bards in the attempt should err

Must here be my interpreter:

Wherefore receive now from my lip

Peripatetic scholarship.

 

  

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