“Amigo é coisa para se guardar
Debaixo de sete chaves
Dentro do coração
Assim falava a canção que na América ouvi
Mas quem cantava chorou
Ao ver o seu amigo partir
Mas quem ficou, no pensamento voou
Com seu canto que o outro lembrou
E quem voou, no pensamento ficou
Com a lembrança que o outro cantou
Amigo é coisa para se guardar
No lado esquerdo do peito
Mesmo que o tempo e a distância digam “não”
Mesmo esquecendo a canção
O que importa é ouvir
A voz que vem do coração
Pois seja o que vier, venha o que vier
Qualquer dia, amigo, eu volto
A te encontrar
Qualquer dia, amigo, a gente vai se encontrar”
Na voz de Milton Nascimento, a “Canção da América” ecoou no final da manhã da última terça-feira, no auditório da Faculdade de Medicina de Campos (FMC), entre amigos, parentes, colegas e pacientes de Pedro Otávio Enes Barreto, que lotavam o amplo recinto, reunidos ali, mais do que em torno de um corpo, por um sentimento prenhe de vida, cuja culminância era comungada com rara exatidão pela música. Tomado pelo pranto, com o rosto recolhido no ombro protetor da minha mãe, não vi a expressão da mesma emoção nas muitas outras faces. E nem precisei!
Enquanto ouvia a música entrecortada por meu próprio soluçar, escutava também o coro choroso de dezenas de outros, espocados de todas as direções, num anonimato que desenhava aos meus ouvidos, mesmo em minha cegueira materna e momentânea, a face inconfundível de uma coletividade, do sentimento ancestral de uma tribo a reverenciar a partida de um seu grande homem, que fez da própria vida um sacerdócio à preservação da vida do outro.
No velório e no enterro de Pedrinho, ouvi muitas histórias de e sobre seus pacientes, a maioria contada por pessoas que até então sequer conhecia: “Ele salvou a vida da minha filha!”, me disse uma; “Ele salvou meu pai!”, revelou outro; “Ele fez tudo que pode para salvar e amenizar o sofrimento da minha mãe”, lembrou um terceiro; “Quando fiquei mal de grana e não pude mais pagar a consulta, ele me atendeu de graça e ainda me arrumou os remédios”, confessou uma quarta.
Em meio a essas e tantas outras histórias que narravam o alívio de tanto sofrimento em tantas famílias, em dado momento do velório, na terça, fui obrigado a me preocupar com o ente mais querido da minha própria. Ao perceber que meu filho, Ícaro, de apenas 12 anos, não conseguia conter a forte emoção de que fora acometido desde o dia anterior, quando soube da morte do seu adorado tio Pedrinho, saí com ele do auditório da FMC para a varanda do prédio.
Lá, junto também a meu pai, tentei consolar meu filho, lembrando-o que muito mais forte do que a morte de Pedrinho foi a sua vida integralmente dedicada à preservação das outras, que ali prestavam sua última homenagem. Neste momento, um sujeito aparentando mais ou menos a minha idade, enternecido pela dor da criança, se aproximou, virou para Ícaro e disse: “Seu pai está coberto de razão! A vida de Pedrinho tem que ser lembrada pelas muitas que salvou, inclusive a minha, que já estava desenganado por outros médicos, sem nenhum diagnóstico conclusivo, até ele entrar no caso, me tratar e dar a chance de hoje estar aqui, vivo e bem, falando com você!”.
Mesmo após sua morte, numa cura de Pedrinho ainda a parir outra, Ícaro parou de chorar.
Num documentário sobre jazz, lembro do trompetista estadunidense Wynton Marsalis fazendo a ressalva: “Shakespeare não vai descer a você, Beethoven não vai descer a você. É você que tem que fazer o esforço de se elevar para tentar compreendê-los. E quando consegue, quando chega lá, tem o ganho dessa elevação a que se forçou, dessa nova visão que ganhou a partir de um ponto mais alto”.
Independente à questão da genialidade, a têmpera do grande homem só é forjada quando a atuação individual em qualquer atividade toca aquele ponto coletivo, imutável ao longo dos tempos, que o historiador francês Fernand Braudel chamou de “humanidade de base”, aquilo que o filósofo grego Sócrates frisava ser comum entre mim e você, leitor, entre todas as nossas muitas diferenças, mas fundamentalmente aquilo que nos faz homens e não bestas.
A partir da comoção geral pela morte de Pedrinho, é até natural que todos nós, familiares, amigos e admiradores, busquemos nos elevar a um patamar de humanidade superior, aproximando nossas vidas da dele, nos tornando momentaneamente melhores, mais pacientes, dedicados e sensíveis uns com os outros. Mas e quando passar o tempo, nesse processo de cura mais poderoso que o receituário de todos os médicos? Quando a morte de Pedrinho já não doer tanto, será que continuaremos nos pautando por seu exemplo de altruísmo?
Para quem ama Pedrinho e de fato o admira, o grande desafio, além de não passar a conjugação dos verbos ao pretérito, talvez seja o de manter seus valores vivos em qualquer tempo presente que o futuro reserve. É difícil, mas seria um erro se admirar Pedrinho por aquilo que ele era e julgamos inalcançável para nós mesmos, pois sua grande lição foi justamente ensinar aquilo que cada um de nós pode ser se realmente quiser.
Quem abandonar essa busca estará aceitando que o legado de Pedrinho — “de ética, superação e amor ao próximo”, como sua esposa, Luiza Helena, ressaltou a todos em seu túmulo — tenha deixado esta vida com ele. Quanto a mim, como irrelevante exemplo, por mais que minha arrogância, vaidade, impaciência ao erro alheio e pretensa autossuficiência ora afastem em um universo a minha vida da dele, pretendo sinceramente trabalhar para encurtar essas distâncias.
Longe de se tratar de uma tentativa tola de se “beatificar” ou “canonizar” Pedrinho, guardo com muito carinho todos os momentos que tivemos juntos, incluindo a última vez na qual ele bebeu cachaça, mais Guilherme Guitton e Betinho Vianna, no final do ano passado, na minha casa em Atafona; a última vez em que ele tomou uma cerveja, já no início do verão, junto também do seu filho Pedro Henrique, no Restaurante do Ricardinho, à margem direita da foz do Paraíba; e da sua última noite de vida, de domingo para segunda, já no quarto do Prontocardio em que faleceria algumas horas depois, onde no lugar de qualquer bebida alcoólica, virei aquela madrugada umedecendo seus lábios com uma gaze molhada, contando os segundos entre suas respirações e as gotas d’água que pingava lentamente em sua boca.
Enquanto minhas respirações durarem, tentarei manter vivo seu legado. Se conseguir, talvez mereça acesso à cadeira que ele guarda para mim numa mesa de bar. Afinal, “qualquer dia, amigo, a gente vai se encontrar”…
Que texto!Dolorido, emocionante,com certeza aonde êle se encontra,deve estar orgulhoso do filho querido,VOCê,Deve ser muito bom conseguir se expressar, e bem ,de alguma forma.Meus mais sinceros sentimentos pelo golpe que a vida te aplicou,não tenho palavras para atenuar esta dor,felizmente ainda não passei por esta situação apesar de fazer medicina há muito tempo,ela, a morte, não se aproximou de mim.Ainda bem que tens o ombro da tua mãe e o calor do teu filho e do teu pai que juntos amenisam a tua dor.
É admirável tudo dito por você sobre uma pessoa querida por todos.Linda todas as palavras que li.
Por mais que falemos em Pedrinho,ainda é muito grande a distância que nos separa de sua generosidade,seu otimismo,sua genuína amizade.Você disse muito bem,Aluysio,precisamos tentar dar o primeiro passo em direção aos valores que fizeram dele essa pessoa admirável e ímpar.O tempo vai passar,mas creio que nos sentimentos de quem com ele conviveu,vai restar sempre a lição de amor,de humildade e da alegria que tanto fez questão de cultivar.Há em nossos corações uma vontade imensa de chorar,mas é um choro de saudade,de muita saudade.O desespero não fazia parte de seu vocabulário.Apenas o consolo,a palavra amiga dita na hora certa.A maior homenagem que podemos prestar a esse doce amigo é tentar imitar suas atitudes e aprender com elas que a vida passa muito rápido,mas ficam as nossas marcas e que estas sejam as melhores.Até qualquer dia,amigo!!!!!