Atafona, manhã ensolarada e fria do final de junho de 2008. Depois de esperá-la descer a Serra do Mar serpenteando às margens do Muriaé em sua afluência ao Paraíba do Sul e deste ao oceano Atlântico, havia dormido com ela, grande paixão de uma vida inteira, talvez a única, duas noites antes. Duas depois, trazia ainda frescas as memórias de mais uma das nossas tentativas de reconciliação, plenas em cama, pele, cheiros, olhos nos olhos, mas inconciliáveis em tudo mais.
De qualquer maneira, era uma sexta-feira, completaria 36 anos no dia seguinte e a comemoração estava marcada para começar desde a noite daquele, no Pontal, na velha casa de barcos dos Aquino transformada em bar, que quatro anos depois não resistiria ao avanço do mar. Havia chamado ela, lógico, assim como outras pessoas, que começariam a chegar dali a algumas horas.
Precisava, pois, pegar a picape e agir as coisas. Na rua de pista dupla que começa na antiga caixa d’água, à beira mar, e acaba na madeireira do Jacuí, às margens da BR 356, o celular apita no console do carro, anunciando o torpedo com o suspense dos grandes naufrágios.
Era ela! Com a certeza dos amantes, eu sabia, mesmo antes de conferir a mensagem, na qual concentrava toda a atenção que devia dedicar à direção. Como também já sabia, ela não viria. Vi nos signos de cristal líquido aquilo que já havia lido no castanho dos seus olhos, na manhã anterior, em mais uma das nossas despedidas.
Por um segundo, senti reabertas as feridas mais profundas até então rasgadas num coração de poeta, protegido nos modos de homem rude, seguindo os ensinamentos de paixão e mar que Hemingway lecionou em vida e prosa. Pela janela do motorista sempre aberta à brisa de Atafona, deixei que o vento que entrava no carro o fizesse também em mim, para aliviar aquele conhecido ardume dentro do peito, como um sopro de mãe nos tempos de ralado e mertiolate. Queda e redenção de um homem condensadas no espaço de um segundo.
Ainda com o telefone à mão direita, percebi algo além dele enroscado entre os dedos, me despertando ao tempo da realidade. Só aí notei aquele fio longo de cabelo ruivo, balançando na brisa e iluminado do sol que invadia o pára-brisas, tudo adoçado pelo cheiro de maresia, enquanto “The Blower’s Daughter”, sussurrada na voz rouca de Damien Rice, tocava ao acaso no rádio do carro. Tantos sinais me deram a certeza — uma certeza tão rara quanto a verdadeira paixão.
Devolvi o celular e o fio de cabelo ao console onde minha mão os encontrou, liberando-a para aumentar ao máximo o volume do som, ao mesmo tempo em que acelerava a picape e a velocidade do vento. Sem dolo ou culpa, sorri como sorriu a personagem da Natalie Portman, na última cena do filme “Closer”, autêntica “filha dos ventos” liberta no hermetismo anônimo da multidão.
Minha vida era minha de novo!
closer
(p/ branca)
ao volante da picape,
um naufrágio de torpedo
atravessa damien rice,
à imagem do seu canto.
o hermético, dos ventos,
dita planos diferentes,
à longitude dos destinos
entre a foz e o afluente.
um coração em déjà vu,
quando partido, se areja
pelo sopro da janela
no motorista que acelera
e, de leveza, até sorri,
ao notar entre seus dedos
— acaso do tato no ato final —
aquele fio longo de cabelo,
só e sangue como o sol.
passa a musa e o chapéu:
“i can’t take my mind…
my mind… my mind…
til i find somebody new”.
atafona, 05/07/08
De tirar o fôlego…
Lindo !