Para o bem e o mal, lapidar o texto do jornalista e escritor Ocinei Trindade, publicado aqui e reproduzido abaixo…
A morte da colunista na fogueira
Ela era fogo. Do fogo viera, do fogo vivera, talvez, até morresse na fornalha. Seu nome também era inflamável: Mary Fuego. Nome de feiticeira para uns, de bruxa para outros. Era a colunista social mais temida, odiada e falsamente bajulada da metrópole. Os adúlteros fugiam dela. Pior que ter certeza de um escândalo sexual estampado no jornal, é a dúvida, a desconfiança e a especulação de estar corneando ou sendo corneado, de ser gay ou lésbica clandestinamente. E nisto, Mary Fu (seu nick name) era craque. Sagaz, inteligente e muito ferina, sobreviveu até onde pôde, multiplicou o tempo de sua existência feito gato diante dos perigos cavados.
Mary Fu tinha estilo. Nunca foi bonita, mas chegou a ter olhos expressivos e cabeleira de Farrah Fawcett. Somente. Era difícil imaginar alguém sendo seu amigo. Dizem que tinha. Pelo menos um. Será que não? Bem, muitos se aproximavam dela para ferir os adversários. Mulheres invejosas, homens falidos e sexualmente impotentes, bichinhas e putinhas alpinistas, alguns poucos ricos e uma infinidade de pseudorricos e pseudopoderosos. Mary Fu se fazia de serva, mas ao final, ela era a senhora da notícia e do comércio de pessoas fúteis a fazerem poses e a expressarem opiniões vulgares ou minimamente inteligentes.
Entretanto, contar com anos de poder não é para qualquer um. Poucos se mantêm no topo por muito tempo. Isso é coisa para Madonna ou Nossa Senhora. E, Mary Fu não foi muito longe. Durante um período, se dividiu entre o ostracismo e o banimento, cortejou alguns endereços da boemia onde poderia encontrar-se com a nata industrial, comercial e afins: alcoólatras pederastas, pedófilos e pervertidos. Mary Fu bebeu todas ou quase. Embriagou-se e envereredou-se pela desconstrução. Era visível a cada dia a decadência física e moral. Acidentes, sobreviveu a vários. Perdeu dentes, cabelos, estatura. Altiva, não se curvava nunca e seguia mancando pelos corredores e avenidas. Patético, diziam.
Para alguns políticos, Mary Fu era útil. Uma espécie de Mata Hari infiltrada com ou sem disfarces, com ou sem informantes. Houve uma época em que a resgataram das sombras e do lodo. Devolveram-na um pedaço de papel para que ali publicasse as supostas opiniões e a suposta formação de opiniões. Os sobrenomes dos falidos ainda poderiam causar alguma impressão, desde os Guinle, os Mayrink Veiga, os Oliveira ou os Silva, entre outros. Já que o mundo muda e não pode parar, a nova safra de ricos emergentes poderia ser agora um filão, quiçá uma nova mina de ouro, para Mary Fu. Não foi bem assim como imaginou.
O declínio e a falência de tudo tomaram conta da colunista. Os mais otimistas e poucos cristãos de coração cogitavam uma mudança ou redenção por parte dela. Alguns acreditam que os maus-carácteres podem e têm a chance de mudarem. Nisto estão incluídos os calunidadores, chantagistas, mentirosos, maledicentes, invejosos, soberbos, venenosos, perigosos, e sobretudo, os impuros de alma. Alguns afirmavam que Mary Fu era tudo isso e mais um pouco. Diziam também que ela gostava dos comentários que chegavam aos seus ouvidos. Assim, sentia-se ao menos respeitada, embora respeito e desprezo nunca tenham combinado.
Não é possível afirmar se Mary Fuego era vilã em tempo integral. Cogitam que dentro de todo ser pérfido se esconde um mínimo de afeto e mimo. Desconheciam suas relações pessoais, pois estas nem sempre foram compartilhadas. Sabe-se que ela gostava de gatos. Em sua casa, havia vários exemplares belos e bem alimentados. Há quem prefira os bichos e até se refugiem entre esta ou aquela fauna. Os gatos a veneravam. Exceto um: o Amador, sonso e violento. Todavía, Mary Fu amava Amador, o gato amarelo de olhos amarelados. Ninguém acredita piamente que bruxas amem, porém é preciso. Mary Fuego amava.
A inveja era uma companheira inseperável da colunista. Mary invejava os maridos ricos, os maridos belos, as mulheres lindas e chiques, os bens materiais alheios, as joias, os carros, as mansões e as viagens para a Europa que todos faziam, menos ela. Mary afirmava para si mesma: “Minha coluna tinha que ser escrita no Le Monde ou no Le Figaro, ou no mínimo, no New York Times”, suspirava sulforosa. No entanto, seguia ela a sua rotina na Gazeta Canavieira, datilografando ácidos e venenos em forma de letras e frases na velha Olivetti, bem lá no fundo da redação do jornal, plec, tac, plec, tac, plec, tac…
Havia dias em que os editores e proprietários do folhetim se divertiam e se orgulhavam das notas cabeludas. Isto costumava render dividendos para plantar em seguida desmentidos e exaltações às figuras públicas da época. O lucro era mais ou menos dividido com Mary, que sempre ficava com no máximo vinte por cento. Era pouco. Mary Fu não gostava de ser dizimista em dobro. Dentro de si, praguejava e blasfemava toda sorte de injúrias e maldições contra os patrões. Ficava furiosa quando suas notas sofriam alguma alteração ou eram suprimidas por completo. Ela não se preocupava nem um pouco com os processos judiciais, diferentemente dos donos do jornal.
Mary Fuego, mesmo manca, não descia do salto. Houve uma vez em que sua coluna sofrera modificações por parte do dono do jornal. Faltando poucos minutos para a edição ser fechada, o editor deu seu jeito para tapar o buraco em branco que ficara. Na ausência de Mary Fuego, ele não perdeu tempo. Inventou uma viagem glamurosa das irmãs Colares, suas amigas pessoais: belas e suburbanas toda vida, jovens que nunca haviam frequentado a chamada alta roda da sociedade. O jornal foi publicado. No dia seguinte, Mary Fu entrou na redação cuspindo fogo e marimbondos. Queria saber quem autorizou aquela nota e quem eram as jovens que ela nunca ouvira falar. O editor, cínico e faceiro, disse que ninguém autorizou, que foi preciso cobrir o buraco e que as Colares eram suas amigas de Guarus. Mary Fu, ultrajada, disse que nunca na sua vida de colunista um pobre saiu em sua coluna. Ele, categórico, disse: Ah, Mary Fu, na vida sempre tem uma primeira vez para tudo. Ela nunca mais lhe dirigiu a palavra.
Houve um tempo em que Mary Fuego pensou na morte. A vida de ataques pessoais ao high society lhe rendeu alguns cobres e eletrodomésticos, além de um carro usado, e o financiamento do apartamentinho pelo extinto BNH. Evitava chegar a esta conclusão, pois odiava a ideia de que todo mundo sabia que ela era mortal, e pior: pobre mortal. Dizem que sua fé era inabalável, independentemente para qual deus rezasse. Alguns mais aprofundados diziam que a quantidade de gatos na residência era para absorver toda sorte de pragas e ódios que lançavam sobre ela os colunáveis. Há quem diga que felinos são bons para-raios. Sabe-se lá. Dizem tantas coisas a respeito dela e de todo mundo. A língua é peçonha quase sempre, e altamente inflamável.
Não se sabe como exatamente, Mary Fuego foi marcada para morrer na fogueira. Há alguns dias, a companhia elétrica cortou sua luz, pois há dois meses não pagava a conta. Naqueles dias, a bebida era consumida em doses maiores. À noite, em sua cama, acendeu uma vela na cabeceira sobre o criado mudo. Ali, ficou a beber a garrafa de cachaça sem copo, preferindo o gargalo, iluminada pela pequena chama. Embriagou-se tanto que, sem paciência, despejava o álcool pela boca aberta que se espalhava pelo rosto, pescoço e colo. Banhou-se de cachaça, e zonza, meio que adormeceu. Os gatos ficaram aos seus pés. Já Amador, o gato amarelo de olhos amarelados preferiu a guarda da cama. Mary Fu adormeceu com a língua à mostra.
Sabe-se lá o que se passa na mente de um felino assombrado. Amador pulou da guarda até o criado-mudo, empurrou a vela acesa em direção ao rosto da colunista. A chama atingiu primeiro sua língua e rapidamente, se espalhou pela face e toda a cabeça. Um horror. Os gatos, desesperados, gritaram. Algum vizinho ouviu e pediu socorro. Começava ali a morte de Mary Fu.Uma cena triste e muito violenta, além de emblemática. Durou dias sua agonia sobre o leito do hospital público. Amador quis sua morte. Conseguiu. Ninguém foi ao seu enterro, dispensaram o velório. Com o rosto desfigurado era mais difícil dar “o último adeus”. Houve quem lamentasse esse fim, mas também houve muitas comemorações no melhor do sadismo. Piadas de humor negro não faltaram. Alguns (poucos) rezaram por ela e intecerderam para que se arrependesse de seus muitos pecados, e que o Criador a perdoasse e lhe desse uma nova chance, uma vida melhor e mais simples e sábia em outro plano espiritual.
Em meio à fogueira de tantas vaidades, ninguém cogitou uma última inquisição, a não ser o gato Amante. Com a casa vazia, nenhum dos outros gatos por ali ficou. Partiram daquela para melhor.
Como a vida e sabia… O fim dela foi o que ela sempre plantou !
A ironia do destino, lhe bateu a porta e tal qual lhe aplicou a chama ardente que ela sempre ascendeu !
Bom dia Aluysio !
Gostaria que me enviasse seu email para lhe passar um fato real de uma situacao jamais imaginada… Historia essa do dono da cidade ! Se vc preferir pode ser uma reuniao tambem…
Aguardo seu retorno…
Caro Alexsandro,
Meu e-mail é aluysioabreu@gmail.com
Abç e grato pela colaboração!
Aluysio
Texto primoroso, com a mesma ironia…
Uma bela homenagem.
Deve ter sido uma morte horrível,i.é.toda morte é terrível, mas esta …
Ao estilo “machadiano”, em verdade, Mary Fuego parece retratar a sua vida, numa espécie de diário post mortem. O destino não é tão ingrato assim. Nós é que vemos tudo com uma simples relação de causa e efeito. Na verdade a língua ferina de Mary era o próprio efeito de uma “causa” que ela fez questão de sempre cultivar. Ninguém almeja a infelicidade; outros dirão que ninguém é bobo. Na maioria das vezes, o ataque é um pedido de socorro. Quanto mais cruel é o ataque, mais desesperador é o grito de socorro. O pecado de Mary Fuego, talvez , tenha sido não enxergar que a boia estava ali ao seu lado, tal qual a história de uma alpinista que, descendo a montanha, em meio a um defeito no seu equipamento, de tanto clamar por socorro, esqueceu que estava a poucos metros do chão…