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Mais conhecido na tradução latina como Ulisses, Odisseu foi um dos príncipes gregos reunidos para singrar o dorso das ondas e tirar vidas de outros homens no resgate da mulher mais linda que já existiu, Helena, princesa de Esparta, seduzida e raptada por Páris, príncipe de Tróia. Na verdade, o violento conflito que dali se seguiu, num período estimado entre 1.150 e 1.300 antes de Cristo (a.C.), foi talvez o primeiro choque em escala global de uma peleja que se repetiria muitas vezes depois, entre Ocidente e Oriente, ainda inconclusa em nossos dias, com as intervenções militares ocidentais no Iraque, no Afeganistão e em todas as demais deflagrações que espocam ininterruptas no Oriente Médio.

Sobrevivendo por cerca meio milênio depois do conflito, através da tradição oral, os cantos relativos à Guerra de Tróia seriam reunidos por Homero, no séc. VII a.C., poeta que a tradição descreve como cego e pobre, com os quais seriam fundados a literatura e a própria civilização ocidental. Dos 24 cantos sobre o cerco grego, por 10 anos, à cidade de Tróia, ou Ílio, foi composta a “Ilíada”. Do igual número de cantos que narram as desventuras sofridas por Odisseu, após o fim da guerra, até finalmente conseguir regressar para junto da mulher (Penélope) e do filho (Telêmaco) na sua ilha de Ítaca, foi gerada a “Odisséia”, termo que a partir dali passou a ser popularmente empregado ao cumprimento das tarefas humanas mais árduas.

No último ano e meio, sofri duas perdas pessoais irreparáveis, não sem grande sofrimento próprio e de dois dos homens que mais amei, diante ao flagelo da mesma doença. A primeira, do meu ex-sogro, falecido a 9 de abril, vítima das complicações de um câncer na bexiga, o médico Pedro Otávio Enes Barreto, a quem não tinha ou tenho em conta inferior ao meu irmão, Christiano.

Numa sequência que não desejaria nem ao meu pior inimigo, acaso o tivesse, dois meses depois, meu pai, o jornalista Aluysio Cardoso Barbosa, descobriu dois nódulos no pulmão que também se revelariam cancerígenos, cujas consequências conduziriam ao mesmo desfecho, no último dia 15 de agosto, a despeito de todos os esforços que fui capaz de arrebanhar do fundo da minha alma para tentar caminhar ao seu lado na direção contrária.

Em tempos de menos perdas, havia escrito que Aquiles, protagonista da “Ilíada”, “era o herói impossível, não só pela incomparável habilidade de guerreiro, como por sua busca de glória e conceitos de honra inalcançáveis aos seus semelhantes. Este, aliás, era o dilema: diante de Aquiles, não era possível se sentir semelhante. Ele era aquele tipo de homem que todos fingem admirar, mas na verdade invejam e até odeiam, pelo reflexo nítido e impiedoso que revela por contraposição toda a mediocridade alheia”.

Em contrapartida, no mesmo texto, ressalvei sobre o herói da “Odisséia”: “Diferente de Aquiles, Odisseu não foi à Tróia em busca de glória, mas de riqueza para sua casa. Ao ver o conflito se arrastar por 10 anos, separando-o indefinidamente da mulher e do filho, ele o definiu com um artifício talvez pouco honrado, mas eficaz, ocultando um punhado de guerreiros no ‘presente’ (o cavalo de Tróia) aceito pela cidade sitiada. Herói possível, o rei de Ítaca só queria voltar para casa”.

Até a morte de Pedrinho e, sobretudo, a do meu pai, acreditava sinceramente que se sua causa fosse justa e verdadeira, se em sua defesa você fosse capaz de superar todos os seus limites, estando sinceramente disposto a por ela entregar sua própria vida, ninguém ou nada seria capaz de derrotá-lo. Da maneira mais dolorosa possível, descobri que estava errado! Por mais esfuziante que seja, o sonho de Aquiles é um sonho. Nesta vida, única da qual temos certeza, o que há é realidade nua e crua de Odisseu, à qual temos que nos adaptar, nos submeter, vergando a espinha para seguir o que nos restar nesta breve aventura de existência.

Assim que meu pai morreu, sem muito raciocínio, em ato meramente reflexo, fui para a redação da Folha, onde escrevi o artigo sobre sua vida e ajudei na preparação da edição do dia seguinte, que noticiaria sua morte. Hoje, olhando retrospectivamente aquele momento capital, divisando nele, de maneira nítida, uma dessas encruzilhadas que definirá tudo que seremos (ou não) a partir do rumo que tomarmos, tenho a convicção de que ali salvei não só minha sanidade, mas talvez a própria vida que não fui capaz de entregar pela de quem tanto queria salvar.

Depois? Sem muito tempo para luto, depois foi a eleição, sempre conturbada em Campos, pelos motivos que todos conhecem, cujas complicações dessa vez foram também transferidas a São João da Barra, pelos motivos que todos passaram a conhecer. Além da minha função como diretor de redação, retomei as atividades do meu blog, o “Opiniões”, que chegou a ser o segundo mais acessado durante o período, atrás apenas do Blog do Bastos, mais lido na blogosfera goitacá, e assumi, junto dos também jornalistas Aloysio Balbi e o mesmo Alexandre Bastos, a coluna de opinião da Folha, escrita pelo velho Barbosa desde que realizara o sonho de fundar seu próprio jornal e com ele revolucionar o jornalismo na região. Afinal, no que dependesse de mim e meu pares, o “Ponto Final” jamais encontraria o seu.

Mesmo antes de qualquer tragédia pessoal, estava disposto a não repetir qualquer desvio de parcialidade porventura cometido na cobertura da Folha nas eleições municipais de 2004, 2006 e, sobretudo, de 2008. Certo que a imparcialidade, como gostam de ressaltar os profetas do óbvio, na vã esperança de camuflar a falta de vergonha na cara pelos próprios pecados, é uma quimera. Mas, naquilo que meu pai e 25 anos de prática me ensinaram sobre jornalismo, o pecado maior em seu exercício é não buscar, sempre, esse sonho, cuja projeção à luz do sol real só se faz no trabalho coletivo, à mercê de todas as múltiplas parcialidades dos indivíduos que o compõem.

Mesmo com o ataque sofrido pela Folha Online a partir da tarde do dia da eleição, impossibilitando até a madrugada seguinte a atualização do jornal virtual e todos os blogs nele hospedados, creio que a velha edição impressa dos dias 7 e 8 de outubro bastou para provar que alguns sonhos, mesmo o da imparcialidade, são por vezes realizáveis, ou pelo menos, próximos disso o bastante para chegarmos a sentir seu cheiro e gosto.

Independente das vitórias e derrotas colhidas nas urnas, bem como das suas confirmações (ou não) nos tribunais da Justiça Eleitoral, penso não ser ufanismo constatar que triunfaram nessa festa da democracia, outra invenção grega, a Folha, seus leitores e sua redação. Nesta, sem nenhum favor, destacaria o generoso quinhão particular que coube neste latifúndio coletivo aos jornalistas Luiz Costa, Alexandre Bastos, Suzy Monteiro, Rodrigo Gonçalves, Cilênio Tavares, Dora Paula Paes e Mariana Ricci. A eles e a todos os demais, por tudo, no nome que divido com meu pai, obrigado!

Há pouco mais de um ano, em setembro de 2011, quando saíamos do porto da ilha de Ítaca, no Mar Jônico, enquanto o sol nascia num canto do horizonte, sem que a lua ainda tivesse morrido no lado oposto, utilizei o último verso do poema “Ítaca” (aqui), do grande modernista grego Konstantinos Kaváfis (1863/1933), que tantas vezes cruzou conosco naquela viagem, transformando-o numa pergunta ao meu pai, enquanto estávamos apoiados na amurada à popa do navio, observando o rastro de espuma riscado sobre o dorso das ondas: “E agora? Já compreendeu o que significam as Ítacas?”. Com seus olhos verdes infiltrados como as águas azul turquesa que singrávamos, raridade em sua emoção sempre contida, Aluysio balançou a cabeça afirmativamente, no misto de lentidão e gravidade que só ele sabia compor.

No eco dos cantos que nos legaram a literatura e a civilização, com um pai em busca de um filho, que por sua vez também parte para buscar seu pai, a constatação que me cabe, três mil anos depois, é a de que Barbosa sempre soube a resposta que eu, só agora, talvez também tenha aprendido.

Terminei o artigo do dia de sua morte dizendo que é do outro lado do oceano que meu pai me espera. Com sua devida licença, leitor, finda minha odisséia, pelo menos por ora, é para lá que eu agora vou.


Artigo publicado hoje, na edição impressa da Folha da Manhã.

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Este post tem 7 comentários

  1. Luzia Cordeiro Gomes

    PARABÉNS PELO SENSACIONAL ARTIGO, DIGNO DE SER LIDO E RELIDO!

  2. maria

    Aluysio grande presente de domingo,A declaração de amor de um filho para o pai,mesmo que triste, mesmo que seja feito apos uma separação é comovente,porque vem recheado de emoção.Principalmente quando pessoas sensíveis são os personagens principais.
    A sua ida ao jornal nada mais foi que buscar o elo que te ligava ao teu pai,com certeza,ótimos jornalistas que são.Alem disso o trabalho quando feito com amor e dignidade nos envolve de tal forma que o tempo passa e nem percebemos.E nada melhor que o tempo para amenizar o sofrimento.
    A busca pela mulher amada ,sua felicidade, em detrimento das responsabilidades assumidas anteriormente,diferentes tipos de amor,cada qual sabe o que melhor lhe convém .
    Que Deus te ajude,não gostaria de estar na tua pele.Mas tudo isso passará com certeza.

  3. maria

    Lindo texto,e isto não é novidade alguma,já que em Campos, a meu ver, não tem melhor substituto para teu pai que não seja você.

  4. Fatima Melo

    ALYSIO, BELISSIMO E MUITO PROFUNDO ESSE TEXTO QUE VC COMPARA AS ODISSEIAS VIVIDAS E POR MUITOS AINDA SÃO REVIVIDAS E SERÃO……….
    ABRAÇO
    HELENA

  5. Fatima Melo

    CORRIGINDO ALUYSIO.

  6. Maria

    Vamos ficar sem seus textos e poesias?

  7. Edi Cardoso Edi Cardoso

    Tempo, tempo, tempo. o melhor remédio para cicatrizar feridas.

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