Heróis cearenses, Homero de Hollywood — Era tudo verdade

Orson Welles foi buscar sua Odisseia numa vila de pescadores do Ceará
Orson Welles foi buscar sua Odisseia numa vila de pescadores do Ceará

 

Desde Pero Vaz de Caminha, escriba da esquadra portuguesa de Pedro Álvares de Cabral, o olhar estrangeiro sobre o Brasil nos testemunha antes mesmo de nos tornarmos Brasil. Neste meio milênio de lá para cá, raras vezes esta nação hoje dividida aos olhos do mundo pela Copa, teve a chance de se enxergar Narciso pela retina alheia, quanto no documentário “É tudo verdade”, do mestre estadunidense Orson Welles (1915/85), que o Cineclube Goitacá exibe hoje, a partir das 19h30, na sala 507 do edifício Medical Center, no cruzamento da rua Conselheiro Otaviano com av. 13 de Maio, com entrada livre.

Com “Cidadão Kane”, de 1941,  Orson Welles revolucionou o cinema
Com “Cidadão Kane”, de 1941, Orson Welles revolucionou o cinema

Aos 25 anos, Welles já era um gênio da sétima arte. Nesta idade, havia dirigido, co-escrito, produzido e atuado como protagonista de “Cidadão Kane”, de 1941, seu primeiro filme, com o qual revolucionou toda a estética do cinema. Antes de completar 26, ele desembarcou no aeroporto Santos Dumont, em 8 de fevereiro de 1942, para produzir um documentário sobre o carnaval do Rio, que se iniciaria dali a apenas seis dias. E filmar a folia carioca era missão diplomática das mais sérias: estreitar os laços de amizade entre EUA e Brasil, do norte ao sul das Américas, enquanto os demais continentes do mundo ardiam na II Guerra Mundial (1939/45).

Nunca concluído, devido ao descontentamento com os rumos das filmagens por parte do estúdio RKO, em Hollywood, e do governo brasileiro do ditador Getúlio Vargas (1882/1954), “É tudo verdade” chegou a ser considerado perdido durante décadas. Parte das cenas foi descoberta só em 1985, ano da morte de Welles, esquecida num arquivo da RKO.

Finalmente editado em 1993, gerou a versão na qual o filme deixou de ser apenas uma lenda. Como nunca chegou a ser exibido em circuito comercial de cinema, a chance de assisti-lo hoje, no telão da sala multimídia da Oráculo, onde o Cineclube Goitacá funciona toda quarta-feira, será ainda mais especial.

Na verdade, o documentário de Welles foi dividido em três partes. A primeira “My Friend Bonito” (“Meu Amigo Bonito”), já havia sido filmado no México, em 1941, pelo diretor Norman Foster, seu parceiro no projeto encomendado pelo governo dos EUA, dentro da política de “Boa Vizinhança” adotada com a América Latina, durante a II Guerra.

Welles filmando o carnaval carioca de 1942
Welles filmando o carnaval carioca de 1942

Welles estava ocupado, dirigindo seu segundo longa de ficção, “Soberba” (1942), além de atuar como ator em “Jornada do Pavor” (1943), também dirigido por Foster. Assim que concluiu as filmagens de ambos, com a promessa de que poderia editar “Soberba” no Brasil, Welles veio com a missão de filmar o carnaval em tecnicolor, no que seria a segunda parte do documentário: “The Story of Samba” (“A História do Samba”).

A terceira e última parte de “É Tudo Verdade”, intitulada “Four Men on a Raft” (“Quatro Homens numa Jangada”) foi uma acréscimo pessoal do próprio Welles. Ainda nos EUA, ele soubera por uma matéria na revista Life da história real de quatro pescadores cearenses, que deixaram sua vila nos arredores de Fortaleza, navegando mais de 2,5 mil quilômetros de mar aberto, durante 61 dias, numa frágil jangada a vela, até chegarem ao Rio de Janeiro, então capital da República, para levar suas reivindicações trabalhistas ao presidente Getúlio Vargas.

Welles desembarca de avião em Fortaleza, em busca da história dos seus jangadeiros
Welles desembarca de avião em Fortaleza, em busca da história dos seus jangadeiros

Se Welles já vinha desagradando tanto ao governo brasileiro, quanto a RKO em Hollywood, ao buscar as origens do carnaval no samba e nas cerimônias de umbanda e candomblé dos morros cariocas, em meio à miséria das favelas, o descontentamento aumentou quando ele se dispôs a narrar a odisseia dos quatro pescadores dispostos a enfrentar o oceano Atlântico em busca de direitos trabalhistas. Só que, ao tentar reencenar sua chegada na Baía de Guanabara, uma onda virou a jangada. Os  quatro foram ao mar, mas apenas Jerônimo André de Souza, Raimundo Correia Lima (o Tatá), e Manuel Pereira da Silva (o Manuel Preto) retornaram à superfície. Líder dos jangadeiros, Manoel Olímpio Meira, o Jacaré, não subiu à tona e seu corpo nunca foi encontrado.

A partir dali, Welles, que presenciou toda a tragédia, tomou a missão de terminar aquele filme como pessoal, acima daquela que seu governo e seu estúdio lhe destinaram. Mesmo com a verba cortada pelo RKO, contando apenas com US$ 10 mil e uma equipe reduzida, ele embarcou num avião para Fortaleza e de lá se mudou para a aldeia dos pescadores, na Praia do Peixe, hoje Praia de Iracema. Tratado pelos locais como “Napoleão do Cinema” e “Galegão Legal”, ele filmou durante dois meses a história dos jangadeiros, tomando contato direto com sua dura realidade.

Francisca Moreira da Silva, com 13 anos, foi a estrela descoberta pelo filme de Welles
Francisca Moreira da Silva, com 13 anos, foi a estrela descoberta pelo filme de Welles

No documentário, Jerônimo, Tatá e Manuel Preto são eles mesmos. A morte de Jacaré nos mares do Rio, é representada por outro pescador, no mar do Ceará, que no filme deixa viúva a personagem interpretada por Francisca Moreira da Silva, de 13 anos, feita atriz sem nunca ter visto antes um filme. É a partir desta tragédia que, na licença poética do documentário, os pescadores tomam a mesma jangada São Pedro para singrar o dorso das ondas, de Fortaleza ao Rio, com escalas em Recife e Salvador, em busca dos seus direitos.

Pressionado pelo governo brasileiro e após uma mudança na direção do estúdio, a RKO demitiu Welles e tomou todo o material que ele havia filmado no Brasil. “Soberba”, o filme que deixara pronto em Hollywood, ao contrário do que lhe fora prometido, foi editado à sua revelia. Com o corte de 45 minutos do original e acréscimo de um final feliz, seu lançamento foi um fracasso, manchando a reputação do diretor, assim como seu documentário brasileiro nunca concluído. Ele ainda tentou levantar fundos, durante quatro anos, trabalhando como ator, para comprar os direitos de “É Tudo Verdade”, mas não teve êxito.

Em “A Terra Treme”, de 1948, Visconti também usa pescadores para interpretar sua realidade
Em “A Terra Treme”, de 1948, Visconti também usa pescadores para interpretar sua realidade

Se “Cidadão Kane” foi um marco na história do cinema, ao criar conceitos e técnicas de filmagem até então inexistentes, “É Tudo Verdade” também está à frente do seu tempo, mesmo de outros gênios do cinema, mas que tentariam só depois algumas coisas feitas por Welles no Brasil, sem nunca terem podido assistir ao seu documentário. Ao usar as famílias dos pescadores locais para interpretarem a si próprias, em 1942, o diretor estadunidense se antecipa a todo o Neorrealismo italiano, sobretudo Luchino Visconti (1906/76), que faria exatamente o mesmo em seu “A Terra Treme”, de 1948.

Também impossível assistir a marca dos pés deixada pelos jangadeiros em sua marcha sobre as dunas de areia, sem lembrar as tomadas muito semelhantes, feitas pelo inglês David Lean (1908/91), em seu clássico “Lawrence da Arábia”, de 1962. O uso dos closes nos rostos dos personagens, para realçar suas emoções, embora não fosse exatamente uma novidade, só teria o mesmo uso superlativo em outro mestre italiano, Sergio Leone (1929/89), que em 1942 era ainda um adolescente.

Os jangadeiros imortalizados por Welles
Os jangadeiros imortalizados por Welles

Outro talento precoce de Hollywood, e sem educação acadêmica de cinema, quando o diretor contemporâneo Quentin Tarantino quer um desses mesmos closes nas filmagens, ele grita no set: “Give me a Sergio Leone!” (“Dê-me um Sergio Leone!”). Se tivesse podido assistir a “É Tudo Verdade”, nos tempos de sua formação cinematográfica, como atendente de uma vídeo-locadora em Los Angeles, talvez Tarantino bradasse: “Give me a Orson Welles!” (“Dê-me um Orson Welles!”).

Por fim, o Welles de “É Tudo Verdade”, antecipa o próprio Welles que uma década mais tarde, em 1952, transporia ao cinema “Othello”, uma das maiores tragédias do dramaturgo inglês William Shakespeare (1564/1616). Os brilhantes planos sequência que abrem o filme feito na década seguinte, com o cortejo veneziano do funeral de Othello e Desdemona, são muito, mas muito semelhantes, ao que o diretor havia feito antes, nas areias cearenses, no féretro do jangadeiro morto, para conferir rito de terra ao descanso marinho de Jacaré.

É neste momento, em “É tudo verdade”, que se revela aos olhos mais atentos o gênio de um estrangeiro refletido nas retinas da nossa gente. Diante à emoção calada naqueles a quem a ficção permitiu um sepultamento negado pela vida, a mesma cruz que balança ao vento ondula também nas meninas dos olhos da menina do povo feita atriz e viúva. Raras vezes as odisseias das gentes brasileiras tiveram um Homero à altura.

 

De roupas civis e às gargalhadas, Roosevelt e Getúlio chegam de jipe ao local onde os EUA instalariam sua base militar em Natal, durante a II Guerra Mundial
De roupas civis e às gargalhadas, Roosevelt e Getúlio chegam de jipe ao local onde os EUA instalariam sua base militar em Natal, durante a II Guerra Mundial

 

 

Tudo aconteceu muito rápido. Em dezembro de 1941, o ataque japonês em Pearl Harbor lançou os EUA na II Guerra Mundial (1939/45), fazendo seu presidente, Franklin Delano Roosevelt (1882/1945), rever a política externa para a América Latina. No lugar do “Big Stick” (grande porrete) adotado no início do séc. 20, pelo então presidente Theodor Roosevelt (1858/1919), seu primo mais liberal, Franklin, inaugurou a “Good Neighbor Policy” (política da boa vizinhança). A ideia era neutralizar qualquer influência dos países do Eixo (além do Japão, Alemanha e Itália) junto aos governos latino-americanos.

Em relação ao Brasil, a situação preocupava mais, pois além de vários ministros do presidente Getúlio Vargas (1882/1954), na ditadura do Estado Novo (1937/1945), serem abertamente simpáticos ao fascismo italiano e ao nazismo alemão, a cidade de Natal, capital do Rio Grande do Norte, era estrategicamente fundamental nas operações de guerra. Dada a limitada autonomia de vôo dos aviões da época, e o fato da Alemanha de Adolf Hitler (1889/1945) ter conquistado toda a Europa continental, a posição geográfica de Natal, ponto mais oriental da América do Sul, fazia dela o único lugar possível para que os aviões bombardeiros pudessem cruzar o oceano Atlântico e atacar a África do Norte, importante palco do teatro de guerra.

Ciente de que qualquer conflito se vence também com a propaganda, Roosevelt (o Franklin) aproveitou a disseminação mundial do cinema de Hollywood, para convocar seus maiores diretores na tentativa de seduzir os latino-americanos. É nessa época, por exemplo, que o cineasta e produtor Walt Disney (1901/66) vem ao Brasil com sua equipe, ainda em 1941, e cria o papagaio malandro Zé Carioca, estrela dos filmes de animação “Alô, amigos” (1942) e “Você já foi à Bahia?” (1944).

Na mesma leva, Orson Welles desembarcaria no Rio em 1942, ainda a tempo de filmar o carnaval daquele ano, mesmo em que os EUA instalariam sua base militar em Natal. Em troca, Getúlio ganhou de Roosevelt a Companhia Siderúrgica Nacional (CSN), em Volta Redonda, que serviria de base à industrialização do Brasil. Nesse jogo de interesses, Orson sabia muito bem que nem tudo é verdade.

 

Publicado hoje na edição impressa da Folha.

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