Sempre que alguém me pergunta qual trabalho mais tenho prazer de fazer em jornal, não tenho dúvida ao afirmar: cobertura de Copa do Mundo. Como simples espectador, acompanho Copas desde a de 1982 na Espanha. Como jornalista, passei a cobri-las, sempre pela TV e para a Folha, desde a realizada em 1990, na Itália.
Em 82, aos 10 anos, quando tudo nos parece maior, o encantamento do menino não foi superior ao do seu mundo adulto por aquele selecionado nacional, o melhor que já vi: o Brasil de Zico, Falcão, Sócrates, Júnior, Leandro, Luisinho, Telê e cia. Infelizmente, numa fatalidade que definiria o próprio futebol a partir dali, os deuses da bola nos brindariam com a “Tragédia do Sarriá” — nome de um estádio de Barcelona que não existe mais, como deixaria de existir o futebol-arte como estilo de jogo do Brasil. Nas quartas-de-final, com três gols do oportunista atacante Paolo Rossi, a Seleção Brasileira acabaria eliminada por 3 a 2 pela Itália, que soube impor seu tradicional estilo “Catenaccio” (na tradução: “porta fechada”) e ganhou o impulso necessário para vencer, não sem justiça, aquele Mundial.
Lógico, sempre ficará sem resposta a indagação do que poderia ter sido aquela partida, e o futebol do Brasil e do mundo depois dela, se o juiz israelense Abraham Klein tivesse marcado o pênalti claro de Claudio Gentile sobre Zico, cuja camisa foi rasgada pelo implacável marcador italiano. Mas é como versejou o poeta português Fernando Pessoa, pela pena do seu heterônimo Álvaro de Campos: “Ah, quem escreverá a história do que poderia ter sido?/ Será essa, se alguém a escrever,/ A verdadeira história da humanidade”.
Na história “inverídica” do que foi, em 1990, quando a Itália sediou a Copa, quem colheu da sua semeadura pragmática de oito anos antes foi a consistente Alemanha (ainda só Ocidental) de Lothar Matthäus e Jürgen Klinsmann. Mas, aos 18 anos, a experiência de acompanhar profissionalmente uma Copa, de maneira detida e fria, para depois poder descrever cada jogo em texto, numa análise pormenorizada de cada atuação individual, enquanto quase todos que se conhece estão bebendo para festejar ou afogar as mágoas, foi uma experiência bastante enriquecedora; o oxímoro de uma paixão sóbria.
Dentro desta sobriedade, se tivesse que escolher o melhor jogo nestas oito Copas, duas como torcedor, seis como cronista, ficaria em dúvida sobre dois 3 a 2 válidos por quartas-de-final: o Inglaterra 3 x 2 Camarões (2 a 2 no tempo normal), em 1990, na qual os africanos liderados pelo veterano atacante Roger Milla perderam na prorrogação, após colocarem na roda de bobo os inventores do futebol; e o Brasil 3 x 2 Holanda, nos EUA, definido naquela bomba de Branco, na cobrança de uma falta que ele na verdade cometera, com direito a corta-luz de bunda de Romário, que pavimentaria nosso caminho ao Tetra em 1994.
Quanto à melhor atuação individual, também não teria como escolher entre as apresentadas em outras duas quartas-de-final. A primeira, de Diego Maradona, se deu no Argentina 2 x 1 Inglaterra de 1986, no México, quando depois de abrir o marcador com a “mão de Deus”, “El Pibe de Oro” depois driblaria meio time inglês para marcar seu segundo, considerado com toda justiça o gol mais bonito na história das Copas. Vinte anos depois, a outra exibição paralela seria anotada por Zinédine Zidane, no França 1 x 0 Brasil de 2006, na Alemanha, quando além de cobrar com perfeição a falta para o atacante Thierry Henry abrir (e definir) o placar, Zizou quebrou a espinha soberba dos brasileiros, humilhados aos olhos do mundo com dribles e lençóis desconcertantes.
Sobriamente, neste “ser-se ao meio-dia,/ que é quando a sombra foge/ e não medra a magia”, como advertia o entusiasta do futebol e poeta João Cabral de Melo Neto, impossível se prever o que acontecerá depois que a bola começar a rolar oficialmente nos gramados brasileiros, daqui a apenas quatro dias, na Copa deste ano da Graça de 2014. Se tivesse que apontar favoritos, diria que as melhores seleções, tecnicamente, são a da Espanha e da Alemanha. Mas acho que neste grupo também devem ser incluídos a Argentina e o Brasil.
Bem verdade que a atual campeã Espanha tem uma chave classificatória difícil, diante da força sempre respeitável da Holanda, sua vice em 2010, e um Chile em ascensão na promessa de surpresa. Ademais, o time que ganhou tudo desde a Eurocopa de 2008, está envelhecido. Entre seus maestros Xavi Hernández e Andrés Iniesta, o primeiro, há algum tempo, tem aparentado decadência. Ademais, os espanhóis torcem pela recuperação do brasileiro naturalizado Diego Costa, vindo de contusão, para tentar resolver sua antiga carência de homens de área.
Problemas de contusão também rondam a Alemanha. Já preocupada uma lesão do seu maior craque, o volante Bastian Schweinsteiger, outro titular da equipe, o meia Marco Reus, foi obrigado a sair de campo no amistoso da última sexta, na goleada de 6 a 1 contra a Armênia, com uma contusão no tornozelo esquerdo. Além do que, a base dessa seleção, preparada desde a Copa que sediaram em 2006, precisa resolver sua aparente contradição: uma geração com talento acima da média, mas ainda sem mostrar a mesma determinação que sempre marcou os alemães no futebol, como em tudo mais na vida.
Livres até agora do fantasma das contusões, os argentinos e brasileiros têm suas próprias contradições a resolver. Nossos hermanos têm, talvez, a melhor linha de ataque do mundo, com Ángel di María, Gonzalo Higuaín, Lionel Messi e Sergio Agüero, mas uma defesa fraca. Se o problema não é novo, tampouco é recente o principal dilema do seu jogador mais importante: Messi, finalmente, conseguirá ser pela Argentina o que é no Barcelona?
Quanto ao Brasil, se é igual a dependência que a equipe tem da sua principal estrela, a contradição é ironicamente inversa: Neymar seguirá jogando mais pela Seleção Brasileira do que consegue fazer no Barcelona? A julgar por sua atuação brilhante nos 4 a 0 contra o Panamá, a resposta seria sim. Levado em consideração, no entanto, o amistoso seguinte e derradeiro, diante da Sérvia, quando o individualismo do jovem atacante esteve fora do tom, como seu amigo Thiaguinho ao cantar o hino nacional antes do jogo, poderemos ter problemas.
Quer Júlio César volte a exibir sua melhor forma, ou não; Thiago Silva e David Luiz endossem em campo o valor da zaga mais cara do mundo, ou não; Daniel Alves e Marcelo confirmem a vocação ao apoio, sem deixar buracos na defesa, ou não; Luiz Gustavo e Paulinho sejam capazes de marcar e manter a qualidade do passe, ou não; Oscar perca a posição de titular para Willian, ou não; Hulk consiga ir além da aplicação tática, ou não; Fred ache seus gols de centroavante, como soube encontrar contra a Sérvia, ou não; só nos pés de Neymar o Brasil poderá reencontrar a arte que já teve um dia. Ganhe a Copa ou não.
Publicado hoje na edição impressa da Folha.