Artigo do domingo — Futebol e nacionalidades

 

 

Era a noite de 25 de outubro de 1995. Jogo duro entre Grêmio e o argentino River Plate, no Olímpico, em Porto Alegre, menos próximo ao Guaíba do que o, por óbvio, Beira Rio do Internacional. Com a vista do Paraíba do Sul pela janela do apartamento, pai e filho assistiam ao jogo pela TV, juntos e com mais ninguém.

A tradição de há séculos, na verdade, tinha se formado no ano anterior, onde os dois assistiram a quase todos os jogos da Copa de 1994, nos EUA. Então, aos 22 anos, o filho vira o Brasil campeão do mundo pela primeira vez. Por sua vez, o pai dava fim a um hiato de 24 anos, desde que acompanhara pela TV o Tri no México, após ouvir pelo rádio o Bi de 1958 e 1962.

Mas o jogo que agora assistiam era válido pelas quartas de final Supercopa da Libertadores, entre clubes, não mais entre seleções nacionais. Pelo menos era o que o filho pensava durante quase todo aquele primeiro tempo, caminhando com a vitória parcial de 1 a 0 do Grêmio treinado pelo então promissor Luiz Felipe Scolari, num gol do centroavante Jardel, aos 43 minutos. Já nos descontos da etapa inicial, aos 46, numa falta a favor do River, à média distância, do lado esquerdo, a bola foi ajeitada com carinho pelo uruguaio Enzo Francescoli, camisa 10 e craque do time argentino.

Exímio cobrador, El Príncipe — como o meia atacante era conhecido por seu estilo clássico e elegante — bateu de direita para meter a bola no seu ângulo esquerdo. Enquanto o goleiro gremista Danrlei ainda procurava saber o que tinha acontecido, após pousar no chão do seu voo ao nada, o filho pulou do sofá e vibrou com a belíssima cobrança de falta, como se o gol fôra do seu próprio time. O pai, contrariado pela manifestação inesperada, protestou com veemência: “Porra, você está torcendo por time argentino contra time brasileiro?”

Por respeito e ainda sem racionalizar sua própria reação com o golaço de Francescoli, o filho nada respondeu. Calou e assistiu com o pai ao Grêmio marcar mais um gol, com Carlos Miguel, aos 14 do segundo tempo, para vencer por 2 a 1 aquele partida de vinda, da série de duas contra o River.

Passado menos de um mês, reunidos no mesmo quarto, diante da mesma TV, com o mesmo Paraíba correndo à vista da janela, as atenções de pai e filho confluíam agora ao Monumental de Nuñez, próximo ao rio da Prata que corta Buenos Aires, numa noite fria de 1º de novembro daquele mesmo ano da Graça de 1995. Foi quando, no jogo de ida, Francescoli marcou dois gols, incluindo o último, da vitória do River de 3 a 2 sobre o Grêmio, levando à disputa de pênaltis vencida pelo time argentino por 4 a 2.

Sem vibrar dessa vez com nenhum dos gols do craque uruguaio, o filho armazenou cada emoção para depois do jogo, sozinho em seu próprio quatro, tentar colocar em palavras o que sentira. Na manhã seguinte, entregou ao pai o papel com os versos:

 

el príncipe

(p/ enzo francescoli)

 

torcer contra time brasileiro

pelo uruguaio

como nome italiano

que joga no time argentino

por se gostar mais de futebol

do que de nacionalidades

embora seja o pai bairrista

e não goste muito

 

campos, 01/11/95

 

O pai leu e sorriu para dentro de si, como costumava fazer. Até que morresse, sem chegar a tempo da recém-encerrada Copa do Mundo, ele o filho não deixariam de ver um jogo importante juntos. E, pelo menos por conta de futebol, nunca voltaram a se desentender. Nem mesmo nos Fla-Flus.

Num documentário sobre sua obra como compositor e fanatismo enquanto boleiro, Chico Buarque afirmou: “Eu gosto mais de futebol do que do Fluminense”. Com pai e filho mais uma vez assistindo juntos, o segundo não deixou a bola passar e emendou de prima: “Pois eu gosto MUITO mais de futebol do que do Flamengo ou da Seleção Brasileira”. O pai tricolor, que hoje faria 78 anos, endossou em corta-luz a tabela.

 

Publicado hoje na edição impressa da Folha

 

 

 

 

O que se pode projetar após uma Copa de trabalho? Pausa!!!… Rs

pausa

 

Foi um mês e meio de muito trabalho, com seis finais de semana seguidos sem folga. Mas valeu a pena. Na cobertura jornalística da sétima Copa do Mundo, a ironia veio com a reedição da mesma final e campeã da primeira, com a Alemanha vencendo a Argentina, como havia sido naquele Mundial de 1990, na Itália. A tragédia, como todos sabem e ainda arde à cara de quem nela tem vergonha, ficou por conta dos 7 a 1 diante da mesma Alemanha, nas semifinais de uma Copa concebida e realizada como projeto político em ano eleitoral, à custa do dinheiro público gasto num Mundial mais caro que a soma dos dois anteriores.

À parte isso, na certeza de que o jornalismo, como futebol, é trabalho coletivo desde antes dos tempos do Nelson Rodrigues (1912/80) — tão em voga nesta “pátria em chuteiras” definida por ele com intenção bem diferente —, todos os que trabalharam juntos nas coberturas das seis Copas anteriores pela Folha, ficam representados no agradecimento presente e pessoal ao Rodrigo Gonçalves, a Joseli Mathias, ao Eliabe de Souza, ao Arnaldo Neto, a Júlia Maria Assis, ao Nicholas Sampaio, ao Valmir Oliveira, a Channa Vieira, ao Silésio Corrêa, ao Alexandre Bastos, ao Cilênio Tavares, a Suzy Monteiro e ao Christiano Abreu Barbosa. Sem eles, bem como os demais na redação e/ou nos blogs da Folha a dar o suporte na meia cancha, o trabalho apresentado no jornal em sua versão impressa e online, nesses 30 dias de Copa, não seria possível. Tampouco os resultados na liderança fora do campo, conferidos por você, leitor, mais uma vez alcançados aqui.

Assim, na certeza de que só pode projetar o futuro com alguma chance de êxito quem é capaz de observar criticamente o presente e o passado (nem que seja o recente), o blogueiro se despede com uma postagem feita há pouco menos de três anos. Embora, naquela época, a diferença do Brasil para quem trabalhava com maior seriedade para voltar a ser o melhor do mundo no futebol, fosse de apenas um gol no placar final, nomes como Bastian Schweinsteiger, André Schürrle e Mario Götze já eram destacados.

Hoje, quando o que era futuro próximo virou passado recente, todos devem ter assistido a Schürrle marcar os dois últimos gols na goleada alemã contra o Brasil em 2014. Ademais, não é segredo que foi de seus pés que depois sairia o passe ao gol do título, na final diante dos argentinos, marcado por Götze, vindo do banco na prorrogação para confirmar a promessa de 2014 apontada neste blog, desde 2011, ao lado do brasileiro Neymar — que infelizmente não pôde se confirmar.

Quanto ao maestro Schweinsteiger, coube a ele liderar seus companheiros também fora de campo, na simpatia e na integração demonstradas no Brasil para conquistar meio mundo, o que seus antepassados não conseguiram em duas Guerras Mundiais, com arrogância, segregação e a força das armas. Emblematicamente, seria esse alemão louro, de olhos azuis e futebol clássico a provar que RAÇA independe da cor da pele, cabelos ou olhos de quem joga (ou tampouco apupa das arquibancadas), ao tomar a frio os pontos na cara aberta por um soco do ex-genro de Maradona, antes de voltar a campo para encarar e vencer na bola a Argentina, numa final de Copa do Mundo, dentro do Maracanã.

Enquanto isso, do primeiro ao último apito, nossos Macunaímas pretensos tentaram usar a Copa para uivar seus próprios “complexos de vira lata”, com a neurastenia ressentida de um Pinscher. Poderiam ter se exposto menos ao ridículo se entendessem algo de futebol além das suas propriedades sempre instáveis como “ópio do povo”, ou tivessem ouvido o assobio soprado aqui, desde 10 de agosto de 2011, após aquele amistoso de Stuttgart, no qual o Brasil perdeu por “apenas” 3 a 2:

“Com seu conhecido ufanismo no futebol cada vez mais dissociado da realidade, o brasileiro que ainda insiste na absurda tese de que só nossos jogadores (e talvez os argentinos) sabem tratar a bola com arte, hoje deveria ter visto Schweinsteiger jogar. Bastaria para engolir qualquer empáfia, junto com todas as consoantes do nome do craque alemão”.

Assim, enquanto este dublê de cronista esportivo e blogueiro vai gozar do descanso que julga merecer, confira abaixo o print e a íntegra daquela postagem, escrita muito antes das diferenças no futebol terem derivado, entre outras coisas, nos xingamentos à presidente brasileira Dilma Rousseff (aqui, aqui, aqui e aqui) e nos aplausos à chanceler alemã Angela Merkel (aqui), nascidos das mesmas arquibancadas do país da Copa:

 

Basti 2011

 

Mesmo com Neymar, Schweinsteiger rege a vitória da Alemanha

Por Aluysio, em 10-08-2011 – 18h14

 

Como previsto abaixo pelo blog, prevaleceu a classe do volante Bastian Schweinsteiger, que conduziu a vitória alemã por 3 a 2 diante do Brasil. No confronto contra as maiores forças do futebol mundial, após ter perdido também para Argentina e França, além de ter empatado com a Holanda, continua virgem em vitórias o time de Mano Menezes, neste seu período de um ano à frente da Seleção.

Após o começo de jogo arrasador dos germânicos, quando sufocaram o Brasil em seu campo de defesa, a Seleção até que conseguiu nivelar as ações no primeiro tempo. No segundo, o equilíbrio permanecia até que o juiz assinalasse um discutível pênalti de Lúcio sobre Schürrle. Schweinsteiger, que não tinha nada com isso, bateu com categoria para abrir o placar e ter seu nome gritado em coro pela torcida. Depois, quem depositava as esperanças de empate em Neymar, teve que ver outro habilidoso jovem de 19 anos, mas de nome Mario Götze, ampliar a vantagem alemã.

Em outro pênalti discutível, de Lahm sobre Daniel Alves, Robinho demonstrou coragem ao pegar a bola e converter, espantando o azar das quatro cobranças desperdiçadas pelo Brasil na Copa América. Novamente sem nada com isso, Schweinsteiger pressionou e roubou a bola de André Santos, dentro da área brasileira, cruzando com precisão para Schürrle marcar 3 a 1. Mesmo debilitado pela gripe que quase o tirou do jogo, Neymar descontou a diferença, no finalzinho, com um chute de fora da área.

Mano, que projetava resgatar o futebol-arte na Seleção, com vistas à Copa do Brasil de 2014, hoje demonstrou um claro recuo, ao entrar em campo com o volante Fernandinho no lugar de Ganso, que realmente não atravessa boa fase, mas é o único meio-campista convocado cuja criatividade merece destaque. Antes conhecida como um dos maiores expoentes mundiais do futebol-força, o fato é que desde a Copa de 2006, passando pelas exibições de gala diante da Inglaterra e da Argentina em 2010, a Alemanha tem demonstrado estar bem mais próxima ao objetivo do Brasil.

Com seu conhecido ufanismo no futebol cada vez mais dissociado da realidade, o brasileiro que ainda insiste na absurda tese de que só nossos jogadores (e talvez os argentinos) sabem tratar a bola com arte, hoje deveria ter visto Schweinsteiger jogar. Bastaria para engolir qualquer empáfia, junto com todas as consoantes do nome do craque alemão.