Manoel de Barros voou passarinho ao reino da despalavra

 

Poeta Manoel de Barros (1916/2014)

 

 

O fotógrafo

 

Difícil fotografar o silêncio.

Entretanto tentei. Eu conto:

Madrugada a minha aldeia estava morta.

Não se ouvia um barulho, ninguém passava entre as casas.

Eu estava saindo de uma festa.

Eram quase quatro da manhã.

Ia o Silêncio pela rua carregando um bêbado.

Preparei minha máquina.

O silêncio era um carregador?

Fotografei esse carregador.

Tive outras visões naquela madrugada.

Preparei minha máquina de novo.

Tinha um perfume de jasmim num beiral de um sobrado.

Fotografei o perfume.

Vi uma lesma pregada mais na existência do que na pedra.

Fotografei a existência dela.

Vi ainda azul-perdão no olho de um mendigo.

Fotografei o perdão.

Vi um paisagem velha a desabar sobre uma casa.

Fotografei o sobre.

Foi difícil fotografar o sobre.

Por fim cheguei a Nuvem de calça.

Representou pra mim que ela andava na aldeia de braços com Maiakóvski — seu criador.

Fotografei a Nuvem de calça e o poeta.

Ninguém outro poeta no mundo faria uma roupa mais justa para cobrir sua noiva.

A foto saiu legal.

 

Este foi o primeiro poema de Manoel de Barros que li, pertencente ao livro que de certa forma batizou, “Ensaios fotográficos”, de 2000. E é até hoje o que mais gosto, considerando-o entre os mais belos já produzidos por qualquer língua que, no eco a Caetano, já tenha roçado à de Luís de Camões. A de Manoel deixou de bater-lhe ao palato na manhã de hoje, aos 97 anos, em Campo Grande, capital do seu Mato Grosso do Sul. Mas como observou outro poeta, o campista Adriano Moura: “nossa sorte é que voz poética não se cala”.

De qualquer maneira, é curiosa essa sensação doída de perda, como de um amigo ou parente, esses olhos infiltrados e a garganta árida pela perda de alguém cujo conhecimento pessoal nunca excedeu a leitura dos versos. Uso a inutilidade dos meus para me despedir de quem tanto os influenciou e que agora, finalmente, atingiu apenas o “reino das imagens, o reino da despalavra”. Vá com Deus, em seu sopro no vento, poeta! Muito obrigado por tudo!

 

ladrões

 

o vento entrou pela janela

parecia ladrão o vento

trazia os cheiros roubados de outro lugar

de um tempo que já não existia

dissimulado, ele assobiava

 

flagrei o vento, que se assustou

quis reagir, bateu a porta

mas roubei para mim seus cheiros

que guardei entre duas folhas de um livro

e a chuva que caiu benzeu perdão

 

cambuci, 28/05/2000

 

Para quem já conhece a obra manoelina, mas pode sabê-la melhor, ou para quem não conhece, mas deveria, invista uma hora e 21 minutos da sua vida no excelente documentário “Só dez por cento é mentira”, com direção e roteiro do Paulo Cezar, a quem devemos essa necessária desbiografia oficial do poeta, exibida e debatida em Campos pela jornalista e produtora cultural Luciana Portinho, no Cineclube Goitacá, em 14 de maio deste ano (aqui):

 

 

Amanhã, confira a matéria sobre a vida e a obra de Manoel, na visão de poetas e literatos campistas, na Folha imprensa e online, em matéria da jornalista e também escritora Paula Vigneron.

 

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Este post tem 3 comentários

  1. Luciana Portinho

    ” O tempo só anda de ida”
    Manoel de Barros

  2. sandra.maria

    Os gênios são eternos ,não morrem jamais.

  3. sandra.maria

    Assisti o filme com comentários da Luciana Portinho,fantástico filme,fantástica figura,fantástico poeta,ser humano da melhor qualidade.
    Agradeço ao Cineclub a oportunidade de compartilhar daquele momento mágico.
    Acho que foi a única entrevista dada por ele,se não me engano.

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