O fotógrafo
Difícil fotografar o silêncio.
Entretanto tentei. Eu conto:
Madrugada a minha aldeia estava morta.
Não se ouvia um barulho, ninguém passava entre as casas.
Eu estava saindo de uma festa.
Eram quase quatro da manhã.
Ia o Silêncio pela rua carregando um bêbado.
Preparei minha máquina.
O silêncio era um carregador?
Fotografei esse carregador.
Tive outras visões naquela madrugada.
Preparei minha máquina de novo.
Tinha um perfume de jasmim num beiral de um sobrado.
Fotografei o perfume.
Vi uma lesma pregada mais na existência do que na pedra.
Fotografei a existência dela.
Vi ainda azul-perdão no olho de um mendigo.
Fotografei o perdão.
Vi um paisagem velha a desabar sobre uma casa.
Fotografei o sobre.
Foi difícil fotografar o sobre.
Por fim cheguei a Nuvem de calça.
Representou pra mim que ela andava na aldeia de braços com Maiakóvski — seu criador.
Fotografei a Nuvem de calça e o poeta.
Ninguém outro poeta no mundo faria uma roupa mais justa para cobrir sua noiva.
A foto saiu legal.
Este foi o primeiro poema de Manoel de Barros que li, pertencente ao livro que de certa forma batizou, “Ensaios fotográficos”, de 2000. E é até hoje o que mais gosto, considerando-o entre os mais belos já produzidos por qualquer língua que, no eco a Caetano, já tenha roçado à de Luís de Camões. A de Manoel deixou de bater-lhe ao palato na manhã de hoje, aos 97 anos, em Campo Grande, capital do seu Mato Grosso do Sul. Mas como observou outro poeta, o campista Adriano Moura: “nossa sorte é que voz poética não se cala”.
De qualquer maneira, é curiosa essa sensação doída de perda, como de um amigo ou parente, esses olhos infiltrados e a garganta árida pela perda de alguém cujo conhecimento pessoal nunca excedeu a leitura dos versos. Uso a inutilidade dos meus para me despedir de quem tanto os influenciou e que agora, finalmente, atingiu apenas o “reino das imagens, o reino da despalavra”. Vá com Deus, em seu sopro no vento, poeta! Muito obrigado por tudo!
ladrões
o vento entrou pela janela
parecia ladrão o vento
trazia os cheiros roubados de outro lugar
de um tempo que já não existia
dissimulado, ele assobiava
flagrei o vento, que se assustou
quis reagir, bateu a porta
mas roubei para mim seus cheiros
que guardei entre duas folhas de um livro
e a chuva que caiu benzeu perdão
cambuci, 28/05/2000
Para quem já conhece a obra manoelina, mas pode sabê-la melhor, ou para quem não conhece, mas deveria, invista uma hora e 21 minutos da sua vida no excelente documentário “Só dez por cento é mentira”, com direção e roteiro do Paulo Cezar, a quem devemos essa necessária desbiografia oficial do poeta, exibida e debatida em Campos pela jornalista e produtora cultural Luciana Portinho, no Cineclube Goitacá, em 14 de maio deste ano (aqui):
Amanhã, confira a matéria sobre a vida e a obra de Manoel, na visão de poetas e literatos campistas, na Folha imprensa e online, em matéria da jornalista e também escritora Paula Vigneron.
” O tempo só anda de ida”
Manoel de Barros
Os gênios são eternos ,não morrem jamais.
Assisti o filme com comentários da Luciana Portinho,fantástico filme,fantástica figura,fantástico poeta,ser humano da melhor qualidade.
Agradeço ao Cineclub a oportunidade de compartilhar daquele momento mágico.
Acho que foi a única entrevista dada por ele,se não me engano.