Crítica de cinema — Fetiche sem tesão

Caixa de luzes

 

 

Cinquenta tons de cinza

 

 

Mateusinho 2Cinquenta tons de cinza — Já virou lugar comum dizer que um filme nunca está à altura do livro. Muito embora haja livros excepcionais que geraram filmes estupendos, como “Os sete pilares da sabedoria”, no qual o oficial britânico T. E. Lawrence narra com impressionante riqueza de detalhes como “tomou ondas de homens nas mãos” ao liderar a Revolta Árabe contra o Império Turco na I Guerra Mundial (1914/18). Político, mas também Nobel de Literatura, Winston Churchill preconizou sobre o extenso livro: “haverá de viver enquanto o inglês for falado em algum recanto do globo”. Adaptado às telas em 1962, pelo mestre inglês David Lean, gerou um dos grandes filmes já feitos: “Lawrence da Arábia”, protagonizado por Peter O’Toole numa das maiores interpretações da história do cinema.

Muito embora o filme, assim como o livro, fale da tortura e abuso sexual a que Lawrence foi submetido quando caiu prisioneiro dos turcos, isso passa longe de ser o ponto principal da sua história. Não li “Cinquenta tons de cinza”, bestseller de E. L. James, outra escritora britânica, que vendeu mais de 100 milhões de exemplares em todo o mundo, mas não creio que mesmo seu crítico mais entusiasmado fosse capaz de tecer sobre a trilogia literária algum elogio à altura do que Churchill fez a “Sete pilares”. Se nesta obra, baseada em fatos reais, a tortura e o abuso sexual são um flagelo da guerra, eles se tornam objeto de desejo em “Cinquenta tons” e seu mergulho ficcional no universo BDSM (Bondage, Disciplina, Dominação, Submissão, Sadismo e Masoquismo). E se quase não há mulheres no livro ou no filme de Lawrence, são elas o grande segredo do sucesso de vendas do livro de James, adaptado ao cinema hollywoodiano por outra britânica, a diretora Sam Taylor-Johnson.

A história gira em torno de um casal de manjados arquétipos. Christian Grey (Jamie Doman) é jovem, empresário bem sucedido, podre de rico, cool e ostenta a indefectível (e desejada) barriga tanquinho — pouco importa se por malhação, lipo ou ambas. Por sua vez, Anastassia Steele (Dakota Johnson) também é jovem, mas sonhadora, inocente, estudante de literatura e, pasme você, virgem. A descoberta deste detalhe, raro no hedonismo pós-moderno e niilista dos nossos dias, serve para atiçar ainda mais o instinto predatório do Sr. Grey, como o personagem gosta de ser chamado.

Se para qualquer pessoa virgem a primeira relação sexual já é por si só um admirável mundo novo, o que dizer se seu primeiro parceiro se assume praticante do BDSM, cujo desejo sexual está diretamente associado à dominação física e mental extremadas de si ou do outro? E como nesta área qualquer deslize não consensual pode acabar num tribunal, sobretudo se o acusado for rico e famoso, Grey insiste o tempo inteiro para Ana assinar um contrato pré-coito, o que ela protela, enquanto também negocia e de certa maneira se impõe, fazendo ele declinar de algumas opções, digamos, mais pesadas.

Se a trilogia literária conquistou leitores no mundo todo, sua adaptação cinematográfica também colecionou protestos veementes de praticantes do BDSM espalhados pelo planeta, que acusam o livro e, sobretudo, o filme, de deturpar suas práticas sexuais. Quem, independente da variante, conhece o sexo da vida real, poderá notar a ausência de suor nos corpos dos amantes em todas as cenas mais tórridas. Sob o céu quase sempre chuvoso de Seattle, tanta assepsia, como no preservativo politicamente correto sempre usado por Grey, soa artificial, pasteurizado demais, sobretudo na cidade que pariu o som sujo (mas pungente) do rock grunge.

Quando se constata, segundo foi noticiado na mídia mundial, que uma mulher no México chegou a ser presa por atentado ao pudor, enquanto se masturbava num cinema no qual o filme era exibido, dá até vontade de endossar uma dessas generalizações que polvilham as redes sociais: “só pode ser capaz de se masturbar com ‘Cinquenta tons de cinza’ quem nunca soube o que é trepar”.

Para quem conhece um pouquinho mais de sexo e sobretudo de cinema, filmes como “O último tango em Paris” (1972), de Bernardo Bertolucci; “Império dos sentidos” (1976), de Nagisa Oshima; “9 1/2 semanas de amor” (1986), de Adrian Lyne; e “Instinto selvagem” (1992), de Paul Verhoeven, são pedidas muito mais sedutoras.

 

Mateusinho viu

 

Publicado hoje na edição impressa da Folha Dois

 

Confira o trailer do filme:

 

 

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