Kingsman: Serviço secreto — Com 23 episódios lançados desde a estreia de “O Satânico Dr. No” (1962) e um novo em produção, a cinessérie “007”, baseada nos escritos do britânico Ian Fleming, tornou-se uma verdadeira instituição do cinema americano. Sucesso bissexto de crítica e frequente de público, já tendo arrecadado quase US$ 6 bilhões em bilheteria, popularizou as tramas de espionagem e inspirou uma infinidade de iniciativas no cinema e na TV. Franquias de ontem e hoje pagam algum tipo de tributo James Bond e mesmo aqueles que apostam em uma abordagem mais realista, mostrando o trabalho de um espião como um jogo de paranóia e paciência — a exemplo dos excelentes “O Espião que Sabia Demais” (2011), de Tomas Alfredson, e “O Homem Mais Procurado” (2014), de Anton Corbijn — o fazem sob pretexto ou expectativa de quebrar a mítica do agente secreto que derruba megalomaníacos e comunistas entre taças de martini e sexo utilitário.
Tal longevidade e apelo pop, contudo, acabaram aprisionando a cinessérie a um punhado de convenções e fórmulas, e desembocando, por fim, na autoparódia que marcou especialmente a passagem de Roger Moore pela franquia, mas que também não poupou Sean Connery, como deixam claro “007 contra Goldfinger” (1964), com suas mulheres douradas e raios lazer mortais, e “007: Nunca Mais Outra Vez” (1983), bizarro remake não canônico de “007 contra Chantagem Atômica” (1965). Essa vocação para o pastiche não tardou a ser percebida pelo mercado, que começou a explorá-la com comédias como “Agente Secreto Desafia Moscou” (1964) e imitações como “Com Licença para Matar” (1965). Um razoável catálogo de títulos chegou às telas ao longo das décadas seguintes, tornando o chiste quase um subgênero, que volta, agora, aos cinemas com “Kingsman: Serviço Secreto” (2014).
Baseado na história em quadrinhos “The Secret Service”, escrita pelo escocês Mark Millar e desenhada pelo inglês Dave Gibbons, a qual não li, mas que uma rápida pesquisa mostra ter cedido apenas as linhas gerais à versão cinematográfica, “Kingsman” é dirigido pelo também britânico Matthew Vaughn, que escreve o roteiro a quatro mãos com a conterrânea Jane Goldman, sua parceira nos textos desde “Stardust: O Mistério da Estrela” (2007). A história acompanha a agência de espionagem super secreta e independente de governos que empresta nome ao longa-metragem: uma espécie de nova Távola Redonda, que funciona sob a fachada de uma tradicional alfaiataria londrina. Ao contrário do MI-6 de “007”, que numera seus agentes, a Kingsman recorre à mitologia arthuriana e batiza seus operativos com nomes dos cavaleiros de Camelot. Ao invés de espadas e armaduras, porém, estes homens e mulheres de maneiras impecáveis e habilidades mortais envergam guarda-chuvas tecnológicos e ternos à prova de balas feitos sob medida.
A morte de um Kingsman em estágio probatório durante uma ação malsucedida no Oriente Médio dá início ao enredo, que segue um culpado Galahad (Colin Firth) tentando compensar a perda do companheiro ao, anos mais tarde, dar a Eggsy (Taron Egerton), filho deste, a chance de ser alguém na vida entrando para a agência. Criado nos subúrbios de Londres pela mãe, companheira de um violento médio criminoso, Eggsy, todavia, é o oposto do que se espera dos membros da agência, recrutados entre os filhos das mais ricas famílias europeias. Paralelamente, o milionário Richmond Valentine (Samuel L. Jackson) e sua assistente Gazelle (Sofia Boutella) colocam em movimento um plano para acabar com o aquecimento global, mesmo que isto custe milhares de vidas.
A resolução dos problemas propostos é simples e joga com as expectativas que acompanham as paródias dos filmes de espião, abraçando-as quando podem acrescentar humor à história e dispensando-as sem cerimônia para criar surpresa em uma trama que, de outra forma, seria extremamente previsível — o que acaba tornando o plot twist que encerra o segundo ato tão eficiente ao subverter os pressupostos em torno das soluções típicas do gênero, transformando-os em piada e choque. E por falar em riso, “Kingsman” se diferencia de iniciativas recentes, como as franquias “Austin Powers” e “Jhonny English”, por abraçar não o nonsense, o histérico e as gags fáceis, mas a ação estilizada, as metareferências e um texto dinâmico, com piadas bem escritas.
A ideia do filho fracassado, que herda a vida secreta do pai ausente e se torna parte de algo através dela — mote também de “O Procurado” (2008), outra adaptação de quadrinhos de Millar — funciona dentro do contexto, assim como a violência explicita que Vaughn já havia mostrado no superestimado “Kick Ass: Quebrando Tudo” (2010), embora em “Kingsman” surja de forma mais contida, servindo como alerta do quanto um filme protagonizado por um agente com licença para matar pode omitir em nome de uma platéia mais farta, sem perder o ar cartunesco que permeia a produção.
Em tela, Firth é um perfeito gentleman, como era de se esperar. “A conduta define o homem”, diz a certa altura. Admirável é justamente sua escalação como um improvável herói de ação, o que parece cada vez mais comum em blockbusters desde o sucesso de Liam Neeson em Busca Implacável (2008). Egerton, por outro lado, convence mais como o malandro ladrão de carros de sotaque cockney do que como um soldado prodígio sem foco. Mas o terno lhe cai bem e o ator segura sem grandes deslizes o terceiro ato. Michel Caine faz figuração de luxo como Arthur, líder da Kingsman, e Mark Strong assume o papel de Merlin, o encarregado de treinar os agentes.
Do lado dos vilões, Mark Hamill faz uma ponta como um colaborador descartável, que antecipa sua volta aos cinemas e à franquia que o tornou famoso, com “Star Wars: Episódio VII – O Despertar da Força” (2015), enquanto Gazelle é herdeira direta de duas grandes tradições bondianas: os vilões mutilados e treinados no uso de armas exóticas. Julius No possuía mãos robóticas e Odd Job eliminava os desafetos de Auric Goldfinger com seu chapéu cortante. A ela faltam os pés, substituídos por próteses equipadas com lâminas letais. Já Samuel L. Jackson, com suas roupas coloridas e bonés do New York Yankees, acaba como uma versão meio patética do típico industrial com planos mirabolantes, figura abundante nos filmes de 007, fazendo graça mais pela língua presa.
O todo é absurdo, sem dúvida, mas divertido na mesma proporção, com piadas bem encaixadas e ação que jamais se torna confusa, embora apele a uma edição experimental e à estética em primeira pessoa tão conhecida dos gamers. E quem se dispuser a procurar, achará, entre as mais e menos óbvias, referências não só a Bond, mas a diversos outros ícones da espionagem, como Jason Bourne, Jack Bauer e Agente 86, entre outros. Entretenimento garantido.
Publicado hoje na Folha Dois
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