Crítica de cinema — Para sempre Atafona

Caixa de luzes

 

 

Para sempre Alice

 

 

Mateusinho 4Para sempre Alice — Meu pai dizia que nunca se deve usar a primeira pessoa em texto jornalístico. Tanto pior quando se trata de uma crítica, cujo distanciamento é ainda mais recomendável à análise do todo. E aqui desrespeito o sábio ensinamento em busca da sua compaixão, leitor, pois é inglória a tarefa de tentar analisar “Para sempre Alice”, depois que o fizeram, neste mesmo espaço, a Paula Vigneron (aqui) e o Gustavo Alejandro Oviedo (aqui). E, assumida a primeira pessoa, para quem nela de fato me conhece, sabe que não sou de fazer favor, sobretudo em se tratando de escrita e cinema.

Entre a “arte de perder” entalhada pela primeira crítica e a “alegria da tristeza” no oxímoro poetado do segundo, qual caminho distinto escolher para falar da história da brilhante professora Alice Howland, doutora em linguística e dedicada mãe de família que descobre, aos 50 anos, sofrer precocemente de uma variante bastante agressiva do Mal de Alzheimer? E se essa personagem for interpretada pela ainda bela Julianne Moore, no papel que lhe rendeu com toda justiça o Oscar, o Globo de ouro, o Screen Actors Guild, o Bafta, o Spirit Award, o SAG, o Hollywood Awards, o London Film Critic’s Circle, o National Board of Review e o Critic’s Choice de melhor atriz?

Para qualquer um que já tenha encarado de frente a possibilidade real de deixar de existir, inevitável a eletricidade correndo à pele, a respiração funda e os olhos marejados na identificação doída com a cena onde Alice, insone com a suspeita ainda não confirmada do Alzheimer, acorda o marido, o médico John Howland (um contido Alec Baldwin), para comungar no meio da madrugada seu pavor pela perda da identidade, composta nas memórias de uma mente sensível e privilegiada, à beira se erodindo do Nada. E para quem é mãe (ou pai), a fisga puxa pelas entranhas na cena na qual o casal revela aos três filhos adultos — Anna (Kate Bosworth), Tom (Hunter Parrish) e Lydia Howland (Kristen Stewart) — o diagnóstico já confirmado de Alzheimer de Alice, além da possibilidade que os três possam também desenvolver a doença, pela hereditariedade involuntária de uma mulher no “revés de um parto”, com o perdão do furto a Chico Buarque de Holanda.

Para quem nunca encarou a perspectiva concreta do fim da própria vida, nem gerou outra, basta ser humano e mortal para se solidarizar, como todos que em intenção a ajudam a recolher os papéis do seu discurso caídos ao chão, na cena onde Alice, já afetada pelo Alzheimer, fabrica forças para palestrar ainda com eloquência e arrebatar um público igualmente afetado, direta ou indiretamente, pela doença. E esta é outra grande virtude do filme: mostrar, sem apelos lacrimogêneos, como a família de um paciente de enfermidade incurável e terminal adoece toda junto.

Na vida que imita a arte para ser por ela imitada, foi o caso de Wash Westmoreland, que dirigiu e roteirizou “Para sempre Alice”, conjuntamente com seu marido, Richard Glatzer, falecido precocemente no último dia 10, aos 63 anos, vítima de esclerose lateral amórfica (ELA), doença que afeta os neurônios responsáveis pelos movimentos do corpo e causa a perda do controle muscular. Ele foi diagnosticado com ELA um pouco antes de começar o projeto do filme, que dirigiu enquanto a doença se agravava rapidamente.

Na ficção, desde sua primeira crise mais séria, enquanto corria, até o avanço inexorável da doença, onde os momentos de ausência das memórias mais elementares se tornam cada vez mais frequentes, a câmera do casal Glatzer e Westmoreland  foca em Alice, deixando todo o fundo turvo, sob vertigem, na tentativa dos diretores de transferir ao espectador a perspectiva agônica da personagem, enquanto esta tenta em vão responder para si mesma quem ela própria é.

Da zona litorânea de Nova York, onde Alice caminha em busca de lembranças engolidas a cada onda, à foz do Paraíba do Sul que corta e forma esta planície, o Atlântico é o mesmo. Navegando por suas águas, se você ler esta crítica de cinema depois ou antes da matéria de capa desta edição de Folha Dois (aqui), não há mentira em dizer que Alice é Atafona, fêmea dotada de beleza, brilho e charme, cujas memórias ainda vivas se mantêm na mente dos que a amaram e foram nela amados, mesmo depois que a ação da natureza as carregou ao anonimato do oceano.

 

Mateusinho viu

 

Publicado hoje na Folha Dois

 

Confira o trailer do filme:

 

 

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