7Solidões — Se iniciativas como o Cineclube Goitacá, toda quarta no Oráculo, e o Cine Jornalismo, um sábado por mês na Associação da Imprensa Campista (AIC), têm funcionado como espaços de resistência, no sentido de estimular o debate sobre arte e cultura no município — ainda que, no segundo caso, se tenham passado outras seis edições anuais (confira retificação aqui) antes de finalmente surgir alguém com conhecimento de jornalismo e cinema o suficiente para finalmente exibir (ontem) o necessário “A montanha dos sete abutres” (1951), do mestre austríaco Billy Wilder —, o que dizer do fazer cinema em Campos?
Presidente da AIC, Vitor Menezes contou com apoio do Sindipetro do qual é assessor para dirigir um longa de documentário também necessário: “Forró em Cambaíba” (2013). Nele, o jornalista prevaleceu sobre o cineasta no equilíbrio entre a denúncia de utilização dos fornos da antiga usina para queima de corpos de presos políticos mortos, durante a Ditadura Militar (1964/85), e a autofagia homicida das ações do MST em seu acampamento na mesma usina, em pleno regime democrático. Mas se a realidade não permite mais ilusões em nenhum lado da nossa sociedade, como fica nela o cinema de ficção?
Numa cidade onde até a inauguração das novas salas Kinoplex, no Shopping 28, as salas do Cine Araújo, no Shopping Boulevard, só exibiam filmes estrangeiros em versão dublada, na pressuposição de que espectador de cinema em Campos é analfabeto, há a possibilidade de aqui se fazer cinema não só falado em português pelos lábios da tela, como ainda por cima com pretensão de arte? Na tradução por escrito, sem dublagem, do alemão do filósofo Friedrich Nietzsche à língua do escritor campista José Cândido de Carvalho, a resposta é dada logo na abertura de “7Solidões”, novo filme de Carlos Alberto Bisogno: “E aqueles que foram vistos dançando foram julgados insanos por aqueles que não podiam ouvir a música”.
Exibido ao público pela primeira vez em alto-mar, na plataforma Pampo PPM-1, no dia 18, já que seu diretor, produtor, roteirista, montador, fotógrafo e mixador é mais um que divide a função de cineasta com as atividades profissionais ligadas à extração de petróleo na Bacia de Campos, “7Solidões” terá sua estreia no continente em outro espaço de resistência na arte e na cultura do município, não só no cinema, como em teatro e música: o Serviço Social da Indústria (Sesi). Capitaneado pelo incansável Fernando Rossi, na próxima quarta, dia 29, a partir das 20h, o Teatro do Sesi exibirá o filme considerado por Bisogno seu primeiro longa, não pela duração inferior a 50 minutos, mas por sua estrutura, que realmente o distingue de “Efígie” (2009), “Vertigem” (2010), “A serpente e o corvo” (2011) e do promissor “Neve negra” (2011), curtas de ficção anteriores do diretor.
Em seu mais recente trabalho, sempre marcado pela câmera contemplativa, muitas vezes lenta, tão distante de Hollywood quanto um dos seus grandes diretores contemporâneos, Terrence Malick, e dotado de um senso de fotografia brilhante, bebendo em fartos goles no gargalo do mestre brasileiro Walter Carvalho, toda a dança mostrada na tela tem como eixo um protagonista em três tempos. Na infância, interpretado por Gael Nunes (filho de Bisogno com sua assistente de fotografia e esposa, a jornalista Lívia Nunes); na juventude, por Rudá Sanchéz; e na velhice por Orávio de Campos Soares. Este, diretor consagrado há décadas no teatro campista se revela uma grata surpresa, em sua maturidade, como ator de cinema. Na narração em off do começo do filme, a voz de Orávio pergunta mais de uma vez: “Qual é a cor da nossa memória?”.
Nos tons esmaecidos da fotografia refinada, na busca de uma luz europeia sob sol tropical, a cor da pele dos três atores é do mesmo barro carreado pelo Paraíba do Sul que deságua e tinge o oceano Atlântico neste pedaço de litoral. Ao lado sul do rio, entre as ruínas de Atafona, o personagem anônimo de Rudá passeia com a amada, vivida por Maria Clara Oliveira. Em contrapartida, navegando contra o tempo da narrativa, à margem norte do Paraíba, o pequeno Gael tem o parque eólico de Gargaú como fundo da infância do protagonista junto aos pais, interpretados por Paolla Souza e Tonin Ferreira, em seu segundo bom trabalho no cinema sob mesma direção, mais uma vez contido no histrionismo, após estrelar “Neve negra”.
Mas se Orávio e Tonin aparecem bem, ambos estão em pontas extremas e opostas ao tempo que preenche no centro a maior parte do filme. E nem é preciso entender muito de cinema para perceber que não rolou química de casal entre Rudá e Maria Clara. Ainda na bela externa à beira mar de Atafona, na qual aparecem juntos pela primeira vez, os dois não conseguem sincronizar direito nem os rodopios de dança que tentam dar um no outro enquanto caminham pela areia.
Na mesma sequência, entre o mar e as ruínas das casas por ele destruídas, quando a câmera dá a sorte de enquadrar o casal junto ao acaso de um vira latas passando lento em sentido contrário, Maria Clara primeiro segura o vestido que corria o risco de levantar com o vento, para depois virar o rosto quando Rudá tenta beijá-la. Com pudores absolutamente descabidos numa atriz, em direção oposta à do cão e das cordas que sobem a Sinfonia nº 3 de Henryk Górecky, na música de fundo, ela mata o que poderia ser uma grande cena da sua personagem — e do filme.
Curiosamente, onde o casal vai demonstrar melhor entrosamento é nas cenas de sexo, com movimentos vigorosos dos corpos sob uma ducha fraca, dentro do banheiro do apartamento, enquanto vagueiam pelo corredor e sala três amigos: Bruno Alves, Carolina Muylaert e o violeiro Roberto Sávio. É então que se dá o melhor momento desse núcleo jovem, quando Bruno lê no livro “Ilusões perdidas”, de Honoré de Balzac, o solilóquio do “ser ou não ser”, de Shakespeare em “Hamlet”. Sentindo o que seu personagem lê, independente de onde, ele acentua o tom da voz à porta do banheiro fechada por dentro, enquanto ecoa seu lamento shakespeariano aos ofegantes e mudos Maria Clara e Rudá: “A agonia do amor não retribuído”.
Ao som de “Where did you sleep last night”, do Nirvana, é nessa agonia que se revela a traição passada, no quarto materno do agreste de São Francisco, numa perseguição de sina até o presente, nos corredores da UFF-Campos. Entre os dois tempos e margens do mesmo rio, o lamento de Hamlet encontra refrão na voz pungente e rascante de Kurt Cobain: “Minha garota, minha garota, não minta para mim/ Me diga onde você dormiu a noite passada”.
“A vida é um encontro de solidões”, diz Orávio, na última fala do filme. E muitas vezes os encontros, sobretudo se reencontros, só são possíveis com o perdão ao outro, ao passado, a nós mesmos. Se não livra ninguém da morte ao final, até lá esse perdoar pode ofertar redenção a toda uma vida. Nesse acerto de contas entre a mãe encarnada madura por Adriana Medeiros e o filho Rudá, alcançado pela dúvida do pai morto, se dá não só a ruptura com essa sina, como são paridas as cenas mais plásticas do filme, em pleno Cemitério do Caju, numa concepção gráfica impensada a um cinema que vive e respira em Campos.
Todavia, visivelmente preocupada com a articulação das palavras, Adriana não consegue conferir às sílabas, no cinema, a mesma naturalidade de uma das atrizes mais respeitadas no teatro de Campos. E essa dificuldade pode ser tanto da (ainda) pouca intimidade de atores de palco com a marcação completamente diferente da câmera, quanto da imposição talvez demasiada do roteirista, que igualmente (ainda) não brilha na construção de diálogos ou na direção de atores, como faz em fotografia e cenografia.
Adriana não teria culpa, por exemplo, se um roteiro preocupado demais com o pedantismo gramatical entre próclise e ênclise lhe impusesse: “Lembro-me que sua avó me dizia”. Para um filme de 2015, na boca de uma personagem do povo em tempo presente, o paralelepípedo soaria neolítico, sobretudo se lembrado que há 91 anos, desde 1924, o nosso modernista Oswald de Andrade já advertia em seu famoso poema “Pronominais”: “Dê-me um cigarro/ Diz a gramática/ Do professor e do aluno/ E do mulato sabido/ Mas o bom negro e o bom branco/ Da Nação Brasileira/ Dizem todos os dias/ Deixa disso camarada/ Me dá um cigarro”.
Entretanto, como se trata do mesmo diálogo onde Adriana também diz “Nunca irá faltar trabalho para ele”, no exato momento em que a câmera corta para o enquadramento de um lavrador conduzindo um arado puxado por boi, em meio ao canavial, tudo entalhado no mármore branco de uma lápide, encontrar com a solidão desse cinema deveria ser necessidade coletiva desta taba goitacá.
Pelo todo da obra, Mateusinho pensou em dar três estrelas, mesmas que daria em separado ao roteiro, mas que seriam cinco caso a análise fosse só à fotografia, ou duas, se o julgamento se ativesse ao conjunto das interpretações. Porém, sem nenhum dinheiro e apoio, num cinema feito de superação, sobretudo por parte do seu realizador, que talvez acumule a solidão de tantas funções por não ter a quem delegá-las, sem negar brilho estético à sua artesania, a avaliação final rejeita qualquer condescendência de província.
Publicado hoje na Folha Dois
Confira o trailer do filme:
O Cinejornalismo da AIC não teve que esperar seis anos para exibir ‘A Montanha dos 7 Abutres’. Veja:
Filmes da Temporada 2015
– Tim Lopes – Histórias de Arcanjo (Brasil, 2013)
– A Montanha dos 7 Abutres (EUA, 1951)
– O Mercado de Notícias (Brasil, 2014)
– A Primeira Página (EUA, 1974)
– Doces Poderes (Brasil, 1996)
– Boa Noite e Boa Sorte (EUA, 2005)
– Todos os homens do presidente (EUA, 1976)
– Cidadão Kane (EUA, 1941)
– O Mensageiro (EUA, 2014)
Filmes da temporada 2014
– Afirma Pereira – Páginas da Revolução (Portugal/Itália/França, 1995)
– A Árvore, o Prefeito e a Mediateca (França, 1992)
– O Pai do Gol (Brasil, 2012)
– A Doce Vida (França/Itália, 1960)
– O Americano Tranquilo (EUA, 2002)
– Profissão Repórter (Itália, 1975)
– Adorável Vagabundo (EUA, 1941)
– O Custo da Coragem – Verônica Guerin (EUA/Inglaterra/Irlanda, 2003)
Filmes da temporada 2013
– O Resgate de um campeão (EUA – 2007)
– Rede de Intrigas (EUA – 1976)
– Diário de um jornalista bêbado (EUA – 2011)
– Faces da Verdade (EUA – 2008)
– Um grito de liberdade (Inglaterra – 1987)
– Repórteres de Guerra (Canadá/África do Sul – 2010)
– A luz é para todos (EUA – 1947)
– Bem-vindo a Sarajevo (EUA/Reino Unido – 1997)
– O Solista (EUA/Reino Unido – 2009)
Filmes da temporada 2012
– O quarto Poder (EUA: 1997)
– A Montanha dos Sete Abutres (EUA: 1951)
– Blow Up – Depois daquele beijo – Aconteceu Naquela Noite (EUA: 1934)
– O Âncora – A Lenda de Ron Burgundy (EUA: 2004)
– Muito Além do Cidadão Kane (Inglaterra: 1993)
– Doces Poderes (Brasil: 1997)
– Jejum de Amor (EUA: 1940)
– O tempo é uma ilusão (EUA: 1944)
Filmes da temporada 2011
– Confidencial (EUA, 2006)
– Cidade do Silêncio (EUA/Inglaterra, 2007)
– Vídeos sobre jornalismo campista
(TCCs do Curso de Comunicação Social do UNIFLU-Fafic)
– Abaixando a Máquina (Brasil, 2008)
– Doces Poderes (Brasil, 1996)
– Quase Famosos (EUA,2000)-
– Sala de Controle (EUA/Egito, 2003)
– Crime Verdadeiro (EUA, 1999)
– Muito Além do Jardim (EUA, 1979)
Filmes da temporada 2010
– Vlado – 30 anos depois (Brasil, 2006)
– Correspondente Estrangeiro (EUA, 1940)
– O passo suspenso da cegonha (França/Grécia/Itália/Suíça, 1991)
– Intrigas de Estado (EUA, 2009)
– A Trágica Farsa (EUA, 1956)
– A Primeira Página (EUA, 1974)
– Nos Bastidores da Notícia (EUA, 1987)
– Assassinos por natureza (EUA, 1994)
– A Caçada (Bósnia-Herzegovina/Croácia/EUA, 2007)
Filmes da temporada 2009
– Boa Noite e Boa Sorte (EUA, 2005)
– Cidadão Kane (EUA, 1941)
– Todos os Homens do Presidente (EUA,1976)
– O Jornal (EUA, 1994)
– O Informante (EUA, 1999)
– Mera Coincidência (EUA, 1997)
– Sob Fogo Cerrado (EUA, 1983)
– Em Defesa da Verdade (Inglaterra, 1985)
– Capote (EUA, 2005)
Cara Mariana,
Então, para exibir o necessário “A montanha dos sete abutres”, o Cinejornalismo da AIC não teve que esperar seis anos — apenas dois.
Abç e grato pela colaboração!
Aluysio