Sujeito viajado e dono de uma cultura geral muito boa para alguém que confessamente não lê livros, meu irmão Christiano certo dia me enchia o saco com a preponderância que ele enxergava em D. Manuel I (1469/1521), O Venturoso, nas navegações portuguesas, sobre seu primo e antecessor no trono lusitano, D. João II (1455/1495), O Príncipe Perfeito. Argumentei que foi no reinado deste que Bartolomeu Dias (1450/1500) dobrou o Cabo das Tormentas, depois disso chamado Da Boa Esperança, transformando o sul da África em porta de conjugado escancarada entre os oceanos Atlântico e Índico.
Tampouco bastou argumentar que no período de D. João II as navegações eram comandadas por navegadores, não por fidalgos (filhos d’algo ou d’alguém), como passaram a ser após D. Manoel assumir a coroa portuguesa e promover as pazes com seus nobres, que passariam a liderar as expedições seguintes, como seria o caso daquela confiada ao fidalgo Pedro Álvares Cabral. Nesta, na posição subalterna amargada durante todo o período manuelino, por ser “apenas” navegador, não um “filho d’algo”, Bartolomeu Dias faria amizade com os índios no litoral da Bahia, após arpoar um tubarão e dá-lo de presente ao povo nativo da recém-achada Terra de Vera Cruz, como narrou com riqueza de detalhes Pero Vaz de Caminha, escrivão da certidão de nascimento do Brasil — única na história das pátrias.
Bartolomeu se despediria do nosso litoral para encontrar morte das mais trágicas na história da aventura humana, no mesmo cabo em que pavimentou sobre as águas o domínio do Ocidente sobre o mundo, no meio milênio seguinte, mas sem nunca chegar ele mesmo às Índias — Moisés jazido marinho e virgem de Canaã.
Como Christiano insistia no ponto de vista endossado na sua visita ao Mosteiro dos Jerónimos, em Belém, onde está o túmulo de D. Manuel, mas não ao Mosteiro de Santa Maria da Vitória, na cidade de Batalha, ao meio do caminho entre Lisboa e Coimbra, no qual repousa D. João II, apeei da infrutífera argumentação em prosa. Em seu lugar, passei a recitar ao meu irmão, não sem emoção, a estrofe final do poema “O Monstrengo”, que acabei decorando involuntariamente após tanta ouvi-lo num CD, na interpretação marcante de Paulo Autran.
Na verdade, trata-se do quarto poema de “Mar Portuguez”, segunda parte do livro “Mensagem”, vencedor do prêmio Antero de Quental e único de Fernando Pessoa (1888/1935) publicado no seu tempo de vida, em 1934, um ano antes da sua morte. Quando eu mesmo estive em Portugal, em 2004, numa livraria do Chiado, em Lisboa, cheguei a ter nas mãos trêmulas uma edição da “Mensagem” autografada pelo próprio Pessoa. Foi uma emoção tão grande quanto, no já citado Jerónimos, ver o seu túmulo e o de Camões (1524/80), ao lado de Vasco da Gama (1460/1524), de D. Manuel e da urna até hoje vazia de D. Sebastião (1554/88), O Desejado, cuja crença mística no retorno seria uma das principais causas da Guerra de Canudos (1896/97) — no sertão da mesma Bahia cujo litoral fôra descoberto quase 400 anos antes por Bartolomeu —, e à qual o autor de “Mensagem” dedicou toda a terceira e última parte do seu poema.
Especificamente em relação a “O Monstrengo”, desde que o li pela primeira vez seus versos, na impressão reforçada ao tímpano pela voz poderosa de Paulo Autran, sempre quando encaro um desafio cuja consciência racional adverte me exceder as capacidades, ecoo a última estrofe dentro do crânio como mantra e tento me segurar a esse leme no qual sou maior do que eu, o leme de um povo que quer um mar: o leme De El-Rey D. João Segundo!
IV. O Monstrengo
O mostrengo que está no fim do mar
Na noite de breu ergueu-se a voar;
À roda da nau voou três vezes,
Voou três vezes a chiar,
E disse: “Quem é que ousou entrar
Nas minhas cavernas que não desvendo,
Meus tectos negros do fim do mundo?”
E o homem do leme disse, tremendo:
“El-Rei D. João Segundo!”
“De quem são as velas onde me roço?
De quem as quilhas que vejo e ouço?”
Disse o mostrengo, e rodou três vezes,
Três vezes rodou imundo e grosso.
“Quem vem poder o que só eu posso,
Que moro onde nunca ninguém me visse
E escorro os medos do mar sem fundo?”
E o homem do leme tremeu, e disse:
“El-Rei D. João Segundo!”
Três vezes do leme as mãos ergueu,
Três vezes ao leme as reprendeu,
E disse no fim de tremer três vezes:
“Aqui ao leme sou mais do que eu:
Sou um povo que quer o mar que é teu;
E mais que o mostrengo, que me a alma teme
E roda nas trevas do fim do mundo,
Manda a vontade, que me ata ao leme,
De El-Rei D. João Segundo!”
Confira o poema, verso a verso, na interpretação definitiva de Paulo Autran:
Navegar sempre é preciso, já viver…
Interessante é que Paulo Autran também fala “monstrengo”.
Chamou-me a atenção pelo título dado à crônica. Fui ao dicionário: não sabia que havia essa variante. Há.
A história é saborosa desde as contendas literárias entre os irmãos, contada por um deles, ao final dela, com as ondas do poema batendo nos recifes da mente.O estilo ao se contar algo é imprescindível para que tudo não seja menor do que aquilo que se descreve. E Aluysio narrou, não com a voz de um Autran, mas, com a mesma genuína emoção.Palavras precisam disso para serem. E ecoarem em nós nas horas mais necessárias.
Ocinei,
Necessário ou com precisão? Navegar ou viver?
Abç e grato pela chance de troca!
Aluysio
Gildo,
Legal! Camões, que escreveu nossa língua, chamou de “Adamastor” esse “Monstrengo”.
Abç e grato pela chance de papear Pessoa no domingo!
Aluysio
Nino,
Não há contenda em que Christiano não seja melhor.
Abç e grato por sua generosidade!
Aluysio