O VENDEDOR DE PASSADOS — Numa de suas muitas críticas à cultura do simulacro, o saudoso livre pensador Jean Baudrillard (1929-2007) propôs uma reflexão de “Perdidos de vista”, reality show francês dedicado à busca de pessoas desaparecidas, programa que faria de seus telespectadores os verdadeiros sumidos, à espera de serem arrancados do anonimato a que estão condenados do outro lado da tela. Foi assim que imaginou a história de um ilusionista, como David Copperfield (o famoso no Brasil, pela tevê, nas décadas de 1980 e 1990; não o personagem de Charles Dickens), que – capaz de fazer sumir, por prestidigitação, animais e objetos –, sem querer, desaparece com a assistente de palco, mulher que o mágico nunca mais consegue trazer de volta.
Na mesma semana da estreia cinematográfica em Campos da nova versão de “Poltergeist – O fenômeno”, que leva a protagonista mirim da trama para o outro lado do televisor, por obra de forças sobrenaturais, eis que chega também por aqui um filme nacional em que o personagem principal tem como função inventar e vender passados a certas pessoas que, sem eles, talvez não conquistassem tão fácil e rapidamente os futuros com que sonham.
É desse jeito que “O vendedor de passados” Vicente (Lázaro Ramos) consegue uma noiva para Ernâni (Anderson Muller), homem rico, mas ex-gordo, virgem de (mais) de quarenta anos, porque sem habilidade com as mulheres e criado por mãe que apanhava do pai. Em parceria com o médico Jairo (Odilon Wagner), responsável por submeter Ernâni a uma cirurgia bariátrica, Vicente se incumbe de elaborar um álbum em que o personagem de Muller ostenta fotos de um falso casamento com uma falsa ex-mulher. Fisicamente recauchutado e economicamente endinheirado, um solteirão na idade dele conseguiria sem grande embaraço uma pretendente se somasse a seu currículo a condição social de divorciado. Como que por inspiração de ideias freudianas e frankensteinianas, a ex de papel do cliente em questão é materializada, a partir da manipulação de imagens no computador, com traços físicos da genitora dele — e não poderia parecer-lhe mais adequada.
Não é bem assim que o hábil Vicente recebe o desafio lançado pela personagem de Alinne Moraes. Contrariando todos os protocolos desse vendedor de passados, ela chega ao estúdio dele sem avisar e não revela nada de seu passado (nem mesmo seu nome), a não ser cicatrizes que traz nas costas. A moça faz apenas uma exigência a esse frequentador e consumidor de produtos da Feira de Antiguidades da Praça XV do Rio de Janeiro: que faça dela a responsável por um assassinato.
Órfão que só conhece seus pais adotivos, Vicente tem por hábito recriar não só vidas alheias, mas a sua própria. Conquista mulheres que leva para seu apartamento, apelando para a comoção delas. A cada uma mostra um novo passado, em registros em VHS de reportagens de TV conduzidas pelo pai de criação falecido — matérias que fazem desse charlatão um sobrevivente recém-nascido de toda sorte de tragédias que teriam vitimado seus supostamente verdadeiros genitores (chacina, incêndio). Depois de dar à personagem de Alinne Moraes o nome de Clara — agora a assassina de um falso pai adotivo, um torturador portenho de uma das ditaduras da Argentina —, Vicente a inclui na lista das seduzidas. Mas, ao contrário das outras, ela não só não acredita numa das versões em vídeo para o passado do embusteiro, como o passa para trás (usando a história que compra a ele e transforma num livro de sucesso) e o leva a buscar, com a mãe adotiva, sua verdadeira e ignorada origem. Que, em meio a uma trama de tantas mentiras, pode muito bem não ser a mostrada a ele (e ao público) em certa altura deste longa-metragem. Como o ilusionista de Baudrillard, Vicente já não tem controle sobre sua especialidade.
Primeiro drama de Lula Buarque de Hollanda (documentarista que, no campo da ficção, dirigiu “Casseta & Planeta – A taça do mundo é nossa”), “O vendedor de passados” é uma adaptação livre de um romance homônimo do escritor angolano José Eduardo Agualusa. Com uma abertura para um número de questões inversamente proporcional à duração relativamente curta do longa (não chega a hora e meia) e um desfecho menos imprevisível para cinéfilos que para o grande público. O que não é pouco, em termos de produções da Globo Filmes e, sobretudo, em meio a tanta comédia nacional no padrão da Vênus Platinada que chega aos palcos do Trianon ou às salas de cinema de Campos (sentada numa cadeira atrás da ocupada pelo autor destas linhas, uma senhora que certamente esperava do filme algo como o que encenam seus atores em telenovelas reclamou: “Ah, que palhaçada!”).
Publicado hoje na Folha Dois
Confira o trailer do filme: