O VENDEDOR DE PASSADOS — O que você faria se pudesse mudar o passado? Montar, remontar, desmontar. Unir imagens e histórias das quais você não fez parte e que, repentinamente, tornam-se suas legítimas memórias. Viver coisas ansiadas. Ter a oportunidade de modificar os caminhos, contá-los e senti-los como seus sem nunca tê-los vivenciado. O que você faria se pudesse não ser você? Esses questionamentos permeiam o longa-metragem brasileiro “O vendedor de passados”, dirigido por Lula Buarque de Hollanda (“Pierre Fatumbi Verger: o mensageiro entre dois mundos”, de 1998, e “O mistério do samba”, 2008) e baseado no livro homônimo de José Eduardo Agualusa, que estreou na última semana nos cinemas de Campos.
O filme, que traz Lázaro Ramos e Aline Moraes nos papéis principais — com boas atuações e trocas em cena —, é um momento de encontro do espectador com vontades e desejos de reformular fatos do passado. No longa-metragem, a falsa vida dos personagens se resume a dados inventados por meio de fotografias, vídeos, de acordo com a vontade de cada indivíduo. As memórias se tornam reais à medida que são contadas. Vicente é um homem que trabalha como vendedor de passados. Sua função é modificar histórias de seus clientes para auxiliá-los a alcançar o que desejam no presente. A partir de fatos idealizados e narrados pelas pessoas que atende, ele monta vidas pregressas, enquanto, paradoxalmente, tenta descobrir a história real de sua vida.
Entre seus principais clientes, estão Ernani (Anderson Müller) e Clara (Aline Moraes). O homem, que foi obeso durante grande parte de sua vida, busca juntar fatos e fotos de um passado que não lhe pertencia, até tê-lo comprado de Vicente. Com dificuldades de relacionamento, ele tenta criar, junto ao vendedor, uma imagem de seu estereótipo de mulher perfeita para ilustrá-la como ex-mulher. Em uma sutil referência ao conceito do Complexo de Édipo, criado por Sigmund Freud e originado a partir mitologia grega, Ernani, ao decidir a figura ideal para o que deveria ser a inventada ex-esposa, opta por uma mulher criada à imagem e semelhança de sua mãe – batizando-a, também, com o mesmo nome: Maria Elvira.
A outra cliente, denominada por Vicente de Clara Ortega, se recusa a revelar dados de sua vida e a dar diretrizes sobre o que almejava para seu falso passado. A mulher faz apenas um pedido: deseja ser uma assassina. O vendedor, então, cria a história da personagem a partir de seu ponto de vista, mas é surpreendido pela forma como ela a usa. Interpretada por Aline Moraes, Clara reafirma no público uma das sensações de incerteza que faz parte do cotidiano: o fato de não ser possível conhecer verdadeiramente o outro.
Em uma espécie de “Efeito Borboleta” (2004) às avessas — produção estadunidense dirigida por Eric Bress e J. Mackye Gruber que narra a vida de Evan, um jovem que herdou do pai a maldição/capacidade de retornar ao passado por meio de seus diários e, ao agir de diferentes maneiras, mudar totalmente o seu presente e o das pessoas que vivem ao seu redor —, “O vendedor de passados”, em certos momentos, remete, também, o espectador a outro longa-metragem brasileiro: “Solidões”, escrito e dirigido por Oswaldo Montenegro. Nas cenas de Vanessa Giácomo, que vive o papel de uma mulher que finge esquecer o passado para cortar vínculos com o presente. As diferentes formas de abordagem da memória — uma pelo falso esquecimento e outra por uma história montada de acordo com falsos recortes – ilustram o que, muitas vezes, todos os seres humanos buscam em sua vida: limpar, do passado, o que não convém ao presente e ao futuro.
Com fotografia e enquadramentos nada inovadores — e que, por vezes, tornam comum uma cena que poderia ser enfatizada por meio de planos mais adequados, como primeiríssimo plano ou plano detalhe, causando maior emoção e envolvimento do público —, “O vendedor de passados” é mais um filme brasileiro que reforça em quem o assiste a ideia de que o cinema do país não se resume a roteiros cômicos e, por vezes, exagerados, mas traz, também, histórias necessariamente incômodas e instigantes.
Publicado hoje na Folha Dois
Confira o trailer do filme: