MAD MAX: ESTRADA DA FÚRIA – Desde que o mundo é mundo, especular sobre como seria seu fim (e o destino de depois) tem sido passatempo humano. Viva ou morta, toda religião fez suas próprias apostas no fim da humanidade, tanto quanto tentou explicar como esta um dia entrou no jogo da vida.
No cinema, retratar o mundo após seu “fim” não é exercício recente, num gênero derivado entre a ficção científica, a ação e o drama, que se convencionou chamar “pós-apocalíptico”. Na verdade, ele já dera o ar da graça desde 1936, quando foi lançado “Daqui a cem anos”, de William Cameron Menzies, com roteiro do famoso escritor futurista H. G. Wells.
Todavia, o gênero só seria fundamentado no cinema 32 anos depois, com “O planeta dos macacos” (1968), de Franklin B. Shaffner. Muito embora seu caráter pós-apocalíptico só se revele em sua marcante cena final, o sucesso de público e crítica do filme foi tanto que gerou seis continuações (1970, 71, 72, 74, 2011 e 14) e um remake (2001) no cinema, além das séries de TV e animação na década de 70 do século passado. Isso sem contar sua paródia em comédia que marcou a TV brasileira por quase uma década (1976/82), no programa semanal “Planeta dos homens”, que reuniu nomes como Jô Soares, Agildo Ribeiro, Paulo Silvino, Berta Loran, Stênio Garcia e Costinha.
No rastro desse sucesso global, o gênero pós-apocalíptico seria redefinido na Austrália, com a inclusão de elementos de western e road movie (filme de estrada) à mistura, na gênese de outra franquia bastante exitosa: “Mad Max”. O primeiro deles, de 1979, catapultou não só a carreira do roteirista e diretor George Miller, como lançou ao mundo um novo astro: Mel Gibson. Na pele do ex-patrulheiro rodoviário Max, ele tenta manter a ordem num mundo que desmorona e leva junto sua família.
Se no filme inicial, o protagonista busca (e encontra) vingança, nas sequências “Mad Max 2: A caçada continua” (1981) e “Mad Max 3: Além da Cúpula do Trovão” (85), já com a civilização tão destruída quanto sua própria vida, ele deseja apenas sobreviver. É nesta condição que o personagem (res)surge na retomada da série, em “Mad Max: Estrada da fúria”, ora em cartaz nos cinemas de Campos, no qual Gibson, já aos 59 anos, é substituído pelo ator britânico Tom Hardy.
Sozinho, ele é capturado logo ao início do filme pelos War Boy, seguidores fanáticos de Immortan Joe (Hugh Keays-Byrne), a quem sonham servir até morrer em batalha para atingir o Valhala, paraíso viking. Controlando a água da sua população miserável, ele governa com mão de ferro a Cidadela, à qual Max é levado prisioneiro e onde gente é gado.
No comando de um comboio de guerra para conseguir munição e combustível, a Imperatriz Furiosa (Charlize Theron) leva escondidas as cinco “noivas” do líder tirânico e messiânico, que as guarda trancadas dentro de um cofre: Toast (Zöe Kravitz), Splendid Angharad (Rosie Huntington-Whiteley), Capable (Riley Keough), The Dag (Abbey Lee) e Fragile (Courtney Eaton), cuja única função é conceber herdeiros machos perfeitos ao patriarca.
Encolerizado pela traição, Immortan Joe comanda seus guerreiros para recuperar suas “propriedades”. Levado como bolsa de sangue viva por Nux (Nicholas Hoult), um War Boy obcecado em atingir o Valhala, Max consegue se libertar. Após se confrontar inicialmente com as mulheres em fuga, ele acaba se unindo a elas, assim como Nux, em busca de uma liberdade improvável, mas comum.
No plano de Furiosa, ela e as “noivas” só estarão divorciadas da opressão com seu próprio retorno ao clã estritamente feminino das Vuvalinis, da qual ela foi roubada ainda criança, antes de perder o braço. Quando seu oásis idílico se revela inexistente em meio à imensidão desértica, Max aponta o (único) caminho de volta às reservas de água da Cidadela, enfrentando tudo que os perseguiu até ali.
Se o quase sessentão Gibson teve que passar o bastão nesse novo “Mad Max”, o mesmo não se deu atrás das câmeras, onde George Miller provou aos 70 anos ter amadurecido como vinho. Assim como as envelhecidas Vuvalinis, que encaram o violento caminho de retorno contra as hordas de Immortan Joe, ele surpreendeu pela vitalidade. Se já tinha inovado no final dos anos 1970, ao imprimir o caráter de road movie ao gênero pós-apocalíptico, mesmo para os espectadores de 36 anos depois, já acostumados com os efeitos especiais hoje quase ilimitados da computação gráfica, impressiona o ritmo alucinante que o veterano cineasta conseguiu ditar à sua obra.
Na velocidade dos carros e ações humanas, no barroquismo de máquinas e indumentárias, o conceito estético é de uma ópera.
Mas se é o road movie que dá a forma, é o western, outro ingrediente acrescido por Miller desde o primeiro “Mad Max”, que dá o enredo à distopia pós-apocalíptica. Fundamentado desde “Os brutos também amam” (1953), de George Stevens, a figura do herói solitário, de poucas palavras, que no início do filme surge de onde ninguém sabe, define uma parada difícil em favor de uma causa justa, e parte no final para onde ninguém desconfia, é acrescido de uma revolucionária novidade: ele agora está não mais à vanguarda, mas lado a lado com mulheres, chegando a dar seu ombro como apoio passivo para uma delas acertar o tiro que errou mais de uma vez, no embate direto contra o patriarcado.
Mais do que nivelar TPM e testosterona, a grande virtude do filme é fazer isso sem forçar nenhuma barra. As feministas gostaram. Quem prefere cinema aos gêneros, também.
Publicado hoje na Folha Dois
Confira o trailer do filme: