A ESPIÃ QUE SABIA DE MENOS — A modificação de títulos originais de filmes estrangeiros no Brasil é uma tradição tão antiga quanto reprovada por críticos. Em alguns casos, até se baseia, de certo modo, no conteúdo da produção — como em “Noivo neurótico, noiva nervosa”, para “Annie Hall”, de Woody Allen, considerando as muitas associações entre quase toda a obra do diretor e a psicanálise; ou em “Os brutos também amam”, para “Shane”, de George Stevens, porque na trama um estrangeiro misterioso e durão mostra-se sutilmente atraído pela mulher casada do sítio no qual se instala, mas não se envolve com ela. Em outros, revela-se um desastre, porque, apesar de tentar indicar de que trata a narrativa, contribui para o público formar ideia equivocada a respeito dela. É o que ocorre com “A espiã que sabia de menos” (“Spy”), uma das estreias da última quinta-feira no Kinoplex Avenida e do Multiplex Boulevard Shopping.
Longa-metragem que inicialmente teria o título de Susan Cooper, “Spy” é sobre a promoção dessa personagem, interpretada por Melissa McCarthy, de agente “de gabinete” à espiã que vai a campo. Funcionária da CIA há anos, Susan abandonou o magistério e ingressou na agência com a expectativa de atuar como os heróis da espionagem. Mas, mulher e gorda, foge aos padrões deles, limitando-se, portanto, a acompanhar as missões arriscadas de seu colega Bradley Fine (Jude Law), monitorado à distância por ela, por meio de um programa de computador que permite identificar a presença de inimigos nos locais invadidos pelo investigador, com quem se comunica por ponto eletrônico e por quem nutre uma paixão recolhida. Em busca de uma ogiva nuclear em poder da bela Rayna Boyanov (Rose Barnes), arma que esta pretende vender para o terrorista Sergio de Luca (Bobby Cannavale), Fine é morto, deixando Susan culpada por falhar como sua monitora. Menos visada que outros integrantes da CIA, como o supostamente valentão Rick Ford (Jason Statham), Cooper convence sua superior Elaine Crocker (Allison Janney) a enviá-la como espiã no caso não resolvido por Bladley. E, embora conheça um registro em vídeo mostrando as habilidades de Cooper com armas e luta corporal, Elaine é incisiva quanto à missão de sua subordinada: esta deve apenas colher informações sobre a negociação da ogiva. Como Rick Ford, desligado da CIA, interfere de forma desastrada no caso, acaba fazendo com que a protagonista se envolva mais do que deveria com os vilões.
Parceiro, atrás das câmaras, da atriz Melissa McCarthy em “Missão madrinha de casamento” (“Bridesmaids”, 2011) e “As bem-armadas” (“The Heat”, 2013), nos quais ela atou como coadjuvante, Paul Feig joga, de novo, com questões de gênero, tanto no sentido cinematográfico (filme de espionagem) quanto no social (masculino/feminino).
Fã desse tipo de produção desde criança, Feig brinca com ela sem a obviedade da paródia. Trata-se mais de uma comédia de ação que de uma gozação com o estilo, questionando a atividade de espionagem como exclusivamente masculina. Daí a armadilha do título no Brasil: “Spy”, em inglês, é substantivo comum de dois gêneros; a protagonista domina bem (sabe demais e não de menos) as funções de gabinete e da rua, sendo tão hábil e tão desastrada – humana, portanto – quanto seus pares homens. Mas o faz de uma forma que certamente oscila bastante entre sutileza e grosseria. Usa não só uma referência refinada ao tema musical de 007, como, de forma atualizada, apela ao recurso manjado de mostrar onde se desenrolarão sequências a partir de planos gerais por tomadas aéreas de cidades de várias partes do mundo, com seus nomes indicados por inserção de créditos digitados sobre as imagens. Surpreende – mas não muito – ao mostrar um personagem de Jason Statham que não simplesmente desconstrói seu estereótipo de ator de filme de ação (algo já bem explorado nas cinesséries “Adrenalina” e “Os mercenários”) e não só aparece quase em toda parte, como em “Velozes e furiosos 7”, mas é um mero contador de vantagens desastrado. Destaca a cumplicidade feminina e os preconceitos dirigidos a mulheres gordas e fora dos padrões de beleza, mas também os incorporados por elas, além dos utilizados pela protagonista contra homens afetados.
Trata-se, ao que parece, de táticas arriscadas de conquistar o grande público, que se limita à superficialidade das piadas e da escatologia, e os cinéfilos, que podem ir mais fundo, buscando as referências cinematográficas e a complexidade da guerra dos sexos, sem panfletarismo feminista politicamente correto. Mas também de uma boa combinação de entretenimento e reflexão no escurinho do cinema. Se fosse possível, ganharia três Matheusinhos e meio.
Publicado hoje na Folha Dois
Confira o trailer do filme: