“O maior de todos é Rimbaud”, disse Vinicius de Moraes sobre quem revolucionou a poesia na França e no mundo, dos 16 aos 20 anos, antes de abandoná-la para se embrenhar pela África como traficante de armas. “A poesia é algo temporário e provisório: junta-se à travessia de algumas pessoas, sem nunca lhes pertencer. Sendo assim, Marcelo não é mais poeta. Hoje se questiona se um dia chegou a sê-lo”, conta Marcelo Garcia, poeta paranaense de Cascavel, hoje estudante de Economia em Curitiba, meu camarada em armas em “Viúva de Maiakóvski”.
Em seu testemunho, pesaroso aos admiradores da sua poesia, ele revela: “Comecei a escrever com aproximadamente 13 anos, muito influenciado pelos primeiros contatos com Carlos Drummond de Andrade. As minhas maiores influências foram Maiakóvski, Gullar e Raduan Nassar, embora este não escreva poemas. Essa tríade me mostrou muitas facetas do que é escrever e de como a linguagem pode ser trabalhada. Eu não deixei de escrever deliberadamente. Aos 20 anos, reconheci que havia perdido a manha: fui tomado pela rotina, por outros sonhos, outras experiências. Simplesmente acontece. Qualquer dia, talvez, eu volte. Mas tem de ser em maio”, projeta Marcelo.
Se meus pés
Se meus pés
alcançassem
o chão,
distribuindo milhares de cores
pelos canos
de papéis amassados
que compõem a música dos
anjos
e recicla os ouvidos moucos
numa tentativa
de sobressair aos ruídos
da cidade:
caminhões roncando
o tiro certo do martelo
na construção
a lixa do construtor
secando a aspereza dos
tetos
um
avião
em pleno ar
Se meus pés alcançassem
todas as minhas idas e vindas
todos meus músculos
contraídos
neste fervor de matéria
onde se encontra meu país
subdividido
sobrevivendo a esta manhã,
heroicamente sobrevivendo a esta manhã
manhã sem galos,
sem bois,
sem cheiro de manhã
manhã que é manhã
por atribuir-se a isto, adaptar-se,
caber dentro de um horário denominado manhã,
não pelo seu cheiro de café torrado,
de bolo de fubá,
dos gestos lentos
e do despertar em uniformidade
com a tela do verde engolindo
os objetos.
Se meus pés alcançassem esta manhã,
descalço, nu, completamente nu,
destituído de qualquer cinza
embutido em meu corpo,
constituído da maçã que agora mastigo
com a fome de um mendigo,
com a pressa de um avião,
com a plenitude de um sábio,
não
meus pés pouco alcançam o céu de nuvens férteis
(onde, flor-frutífera, onde te meteste?)
meus pés alcançam
sim
o estrondo de um bater
de talheres,
a explosão das flores em contato
com o vento
o calibre pronto de um revólver de estrelas
meus pés tocam os gatos e os cachorros de rua
(por mais ariscos que sejam, meus pés os tocam)
meus pés já tocam a ferida do dia
e é a noite que se aproxima,
como uma Rainha em passeio público,
das pessoas que se abaixam, por questão de respeito,
as coisas e os bichos as imitam
as coisas e os bichos dormem,
quando a noite se aproxima,
veloz,
furiosa,
dentro do dia,
como se desabrochasse do dia,
como se tentasse manter, ainda que pequena,
uma relação com a claridade
não por falta de força
que a noite não aparece abruptamente
mas por pudor,
pudor infantil,
de conquistar, a cada dia,
seu espaço
dentro das coisas
dentro das horas
dentro das plantas,
dentro dos homens
noite que se faz a partir da fabricação de horas
e barulhos
bocejos,
noite que se faz a partir de outra noite,
noite que se faz clara,
noite noite noite
eu,
eu experimento teu gosto
experimento e circulo teus gestos
eu
que observo tuas veias de sangue velho
explodirem
que capto o fracasso de teus dentes podres
tua forma de se impor
em nós,
noite
que de tanta noite
se fez uma só
noite que precede a manhã
com as vértices de alumínio puro,
transforma cor em impressão,
transforma momentos em simulacros
noite que baila
dança,
se joga,
faz da sala de estar
palco para o desespero
inocente noite,
deságua em mim
como o jorrar de sangue
de um animal
noite que constrói
o dia
e, maquinalmente, dá boas vindas
à cor
ao som
ao trem
a mim
que ando por esta noite
sem chegar
a lugar algum,
apenas transpassando os ruídos noturnos
para dar de encontro ao céu claro
da cadeia de idéias
postes telefones muros
bilhar
pernas peitos putas
armas
cervejas
noite, minha noite,
adormeça em mim.
Tanta beleza noturna e matinal. Depertei com céu em chumbo e vento, mas era dia. Uma noite mal dormida e um acordar poético com sensações escritas por outro. É domingo e eu ainda durmo a noite que se desfez. Queria regressar à ela, à noite, mas agora é só memória, marcelamente memória.
Um texto que eu gostaria de ter escrito, um poema que eu gostaria de ter poemizado, se é que existe este termo. Talvez eu faça um dia, mas teria que ser em setembro…
Aluysio, obrigado pela publicação e por ter se lembrado de mim e de nossas parcerias.
Um grande abraço dos ventos curitibanos. 🙂
Caro Marcelo,
Sem nenhum favor, no meio de tanta gente se delirando poeta, mas que tão melhor faria à poesia sobriamente deixando-a em paz, vc é um dos sujeitos mais precocemente vocacionados ao verso que conheci. Em maio, ou qualquer outro mês mais próximo deste julho de 2015, por favor, reencontre essa “manha” que certamente anda tão perdida e solitária sem vc.
Abç enfunado do nordeste de Atafona e até breve, meu camarada em armas!
Aluysio
Caros Ocinei e Sérgio,
Sim, o poema de Marcelo é daqueles capazes de deixar “bilhar/ pernas peitos putas/ armas/ cervejas” esculpidos, em Carrara e escarro, em qualquer memória permeável à sensibilidade. E, sim, Provisano, desde que o li a primeira vez, lá se vão quase 10 anos, tb fiquei com a mesma inveja branca do poema, nesse misto de admiração e frustração por não tê-lo escrito, em maio, setembro, ou qualquer outro mês do ano.
Abçs e grato a ambos pela comunhão dos sentidos!
Aluysio