Poema do domingo — “Some daqui e procura teu jantar/ Na tua ralé”

Tudo que tinha a dizer sobre a vida e a obra de Robert Burns (1759/96), poeta nacional da Escócia, escrevi em 2009 no blog “Cantos”, que dividia com os professores e também poetas Adriano Moura e Fernanda Huguenin, em texto republicado dois anos depois aqui, neste “Opiniões”.  À poesia do bardo escocês, fui apresentado na segunda metade dos anos 1990, a partir de edição bilíngue da Relume Lumará, comemorativa do whisky Teacher’s, com introdução e tradução da poeta brasileira Luiza Lobo, que me foi dada de presente pelo jornalista Celso Cordeiro Filho. E o que apreendi pela leitura, mesmo mais de 200 anos após a vida de quem escreveu, me serviria de guia ainda atual ao que vi, ouvi, cheirei, tateei e provei das Terras Baixas e Altas da Escócia, numa viagem que fiz em 2007, como mochileiro por boa parte daquele belíssimo país.

Em prosa própria, pouco ou nada tenho a acrescentar ao que escrevi em 2009 e republiquei em 2011. Em relação à poesia, porém, apenas uma de Burns, é sempre muito pouco. Assim, no misto de fábula, sátira social, de costumes e religiosa, antes que os fiéis de hoje se reúnam na tradição das missas e cultos dominicais, convém dar uma espiadela nos versos de “A um piolho”, mas sem confiar muito na moral elitista das seis estrofes iniciais. Afinal, só quando o protagonista do poema desce do Lunardi — gorro em forma de balão criado em homenagem ao italiano Vicenzo Lunardi (1759/1806), que realizou cinco vôos de balão nos céus da Escócia — rumo ao pescoço da bela Jenny, se desvela o erro fatal não apenas dela, mas que a vaidade costuma aplicar sobre todos nós: “Oh, se algum Poder nos concedesse/ Vermo-nos a nós como nos vêem!/ Nos livraríamos de tantos vexames,/ E tão falsas impressões”…

Abaixo, na tradução sem “gestos e roupagens” da Luiza Lobo:

 

Vitral da Universidade de Glasgow
Vitral da Universidade de Glasgow

 

 

A UM PIOLHO

AO VER UM NO CHAPÉU DE UMA DAMA NA IGREJA

 

I

Oh! onde vais, criaturinha rastejante?

Tua impudência te protege fortemente,

Só te posso dizer que estranhamente

Andas em gaze e renda,

Embora, oh Deus! tema que hás de jantar

Num tal lugar.

 

II

Oh tu, animalito feio, malfazejo e andejante,

Detestado, desprezado por pecadores e santos!

Numa dama tão fina, como ousas

Pousar o pé!

Some daqui e procura teu jantar

Na tua ralé.

 

III

Fora! vai rastejar nas têmporas de um mendigo,

A arrastar, estirar e escarrapachar as patas

Pulando no gado, entre teus semelhantes,

Em grupos ou enxames;

Onde chifre ou osso jamais perturbarão

Tua vasta plantação.

 

IV

Agora, queda-te aí! estás fora de vista,

Firme e confortável sob os ornamentos;

Não, por minha fé, não ficarás contente

Enquanto não te alçares

Ao píncaro, ao ponto mais elevado

Do chapéu de madame.

 

V

Homessa! ousas mostrar o focinho,

Como uma groselha, cinzento e roliço:

Oh, uma pasta mercurial e pestífera,

Ou algum pó vermelho mortífero

Em tal dose te daria, que a catinga

Do teu traseiro consertaria!

 

VI

Surpresa não me faria te encontrar

Na touca de flanela de uma velha;

Ou talvez nalgum moleque maltrapilho

Em sua jaqueta;

Mas no elegante Lunardi de madame pousar?!

Como ousas? Fora!

 

VII

Oh, Jenny, não vira tua cabeça

A pavonear e exibir tua beleza!

Mal imaginas a maldita presteza

Com que este ínfimo ser rasteja!

E já de seus olhos odientos e agudas garras

Começas a te aperceber!

 

VIII

Oh, se algum Poder nos concedesse

Vermo-nos a nós como nos vêem!

Nos livraríamos de tantos vexames,

E tão falsas impressões:

Sem mais nos exibir com gestos e roupagens,

Até nas devoções!

 

1786

 

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