“Li o ‘Eu’ na adolescência e foi como se levasse um soco na cara (…) Ao espanto sucedeu intensa curiosidade. Quis ler mais esse poeta diferente dos clássicos, dos românticos, dos parnasianos, dos simbolistas, de todos os poetas que eu conhecia (…) Augusto dos Anjos continua sendo o grande caso singular da poesia brasileira”.
(Carlos Drummond de Andrade)
Em 2002, quando do centenário de publicação de “Os Sertões”, escrevi num caderno especial publicado na Folha, após uma expedição a Canudos, no sertão da Bahia, que a obra prima de Euclides da Cunha (1866/1909) foi a primeira em nossa literatura a cessar com a importação de modelos da Europa, realinhando para o interior do Brasil as atenções desde o seu descobrimento voltadas às novidades que chegavam pelo litoral. E se a encipoada prosa euclideana plantou em terra seca as sementes do Modernismo, “fazendo brotar (Graciliano) Ramos e (Guimarães) Rosas em meio a (Glauber) Rochas”, caberia não por coincidência a um seu leitor atento e de primeira hora fazer o mesmo em nossa poesia, substituindo a partir dela o interior de um país pelo seu próprio enquanto homem.
Fruto da mesma decadência do senhor de engenho nordestino em choque com os avanços à luz da ciência prometidos pela ainda recém-nascida República positivista, que na virada dos séculos 19 ao 20 apresentara a fatura de 30 mil vidas humanas perdidas na Guerra de Canudos (1896/97), o paraibano Augusto dos Anjos (1884/1914) publicou em vida um único livro, em 1912, não ao acaso intitulado “Eu”. Classificado muitas vezes como simbolista e vivendo num tempo em que o parnasianismo dominava a poesia brasileira, Augusto tem sua condição de precursor do Modernismo defendida com afinco por gente como o poeta contemporâneo Ferreira Gullar:
— Não apenas o nível de complexidade a que Augusto conduz a expressão verbal, como também o rompimento com a concepção literária acadêmica, o situam como precursor da poesia que se fará no Brasil depois do movimento de 22 (…) Pode-se dizer que, ao longo do processo poético brasileiro até Augusto dos Anjos, quase sempre o poeta ocultou o homem. Talvez por isso mesmo, mas não só por isso, é que, na obra do poeta paraibano, o homem aparece de maneira tão escandalosa, a exibir seus intestinos, seu cuspo, sua lepra, seu sexo, sua miséria. A poesia de Augusto dos Anjos é fruto da descoberta dolorosa do mundo real, do encontro com uma realidade que a literatura, a filosofia e a religião já não podiam ocultar. Nasce do seu gênio poético, do seu temperamento especial, mas também de fatores culturais que a determinaram.
Esse pendor do poeta pelo escatológico, esse decantado “mau gosto”, assim como o cientificismo datado e muitas vezes reducionista da sua linguagem, têm contribuído para afastar leitores mais sensíveis à superfície, muito embora sua obra tenha conquistado ao longo dos anos uma popularidade incomum para poetas no Brasil, notadamente em seu Nordeste natal. Pelos mesmos motivos que a mineira Itabira fez de Drummond (1902/87) um poeta da memória, o engenho Pau D’Arco, no atual município paraibano de Sapé, onde Augusto nasceu e se criou, nunca deixaria de bater ponto em seus versos, mesmo depois de vendido em consequência da decadência financeira da família — igual em tempo, espaço e motivo a de tantas outras numa elite nordestina rural, patriarcal e ferida de morte com o avanço do capitalismo sobre o interior do país.
Em sentido contrário, Augusto foi também um homem ilustrado do seu tempo, formado em 1907 na Faculdade de Direito do Recife, onde teve o pensamento moldado na famosa “Escola do Recife”, movimento filosófico baseado no materialismo e no evolucionismo europeus, que alcançou grande força a partir de Tobias Barreto (1839/89). Influenciado pela teoria de evolução de Charles Darwin (1809/82), pela sociologia positivista de Auguste Comte (1798/1857), pelo pessimismo materialista de Arthur Schopenhauer (1788/1860), pelo liberalismo clássico de Herbert Spencer (1820/1903), pela monera primeva de Ernst Haeckel (1834/1919), o poeta passou a encarar a morte como fato material e, toda a existência, como consequência amoral de um simples, mas inexorável processo químico.
Se seu Nordeste não conhecia as conquistas científicas ou os avanços sociais e econômicos dos quais essas filosofias eram frutos, elas foram abraçadas como explicação racional ao desmoronamento do seu mundo pré-industrial. Diante da miséria localizada das famílias tradicionais falidas, dos caboclos e negros famintos pela seca, o niilismo que aprendera nos livros foi aceito como justificativa de uma tragédia universal. Diferente dos modernistas que cantariam a ciência com louvor e esperança, Augusto enxergou nela apenas a aceleração rumo ao Nada.
Diante d’Ele, questionando sua existência de Hamlet-Severino, como nunca ninguém fizera nestas terras de Vera Cruz, o poeta esculpiu paralelepípedo em verso muito antes de Chico Buarque, contou as telhas do teto sob a luz da lua minguante, chorou e bebeu a água do choro:
Tristezas de um quarto minguante
Quarto Minguante! E, embora a lua o aclare,
Este Engenho Pau d’Arco é muito triste…
Nos engenhos da várzea não existe
Talvez um outro que se lhe equipare!
Do observatório em que eu estou situado
A lua magra, quando a noite cresce,
Vista, através do vidro azul, parece
Um paralelepípedo quebrado!
O sono esmaga o encéfalo do povo.
Tenho 300 quilos no epigastro…
Dói-me a cabeça. Agora a cara do astro
Lembra a metade de uma casca de ovo.
Diabo! Não ser mais tempo de milagre!
Para que esta opressão desapareça
Vou amarrar um pano na cabeça,
Molhar a minha fronte com vinagre.
Aumentam-se-me então os grandes medos.
O hemisfério lunar se ergue e se abaixa
Num desenvolvimento de borracha,
Variando à ação mecânica dos dedos!
Vai-me crescendo a aberração do sonho.
Morde-me os nervos o desejo doudo
De dissolver-me, de enterrar-me todo
Naquele semicírculo medonho!
Mas tudo isto é ilusão de minha parte!
Quem sabe se não é porque não saio
Desde que, 6ª feira, 3 de maio,
Eu escrevi os meus Gemidos de Arte?!
A lâmpada a estirar línguas vermelhas
Lambe o ar. No bruto horror que me arrebata,
Como um degenerado psicopata
Eis-me a contar o número das telhas!
— Uma, duas, três, quatro… E aos tombos, tonta
Sinto a cabeça e a conta perco; e, em suma,
A conta recomeço, em ânsias: — Uma…
Mas novamente eis-me a perder a conta!
Sucede a uma tontura outra tontura.
— Estarei morto?! E a esta pergunta estranha
Responde a Vida — aquela grande aranha
Que anda tecendo a minha desventura!
— A luz do quarto diminuindo o brilho
Segue todas as fases de um eclipse…
Começo a ver coisas de Apocalipse
No triângulo escaleno do ladrilho!
Deito-me enfim. Ponho o chapéu num gancho.
Cinco lençóis balançam numa corda,
Mas aquilo mortalhas me recorda,
E o amontoamento dos lençóis desmancho.
Vêm-me à imaginação sonhos dementes.
Acho-me, por exemplo, numa festa…
Tomba uma torre sobre a minha testa,
Caem-me de uma só vez todos os dentes!
Então dois ossos roídos me assombraram…
— “Por ventura haverá quem queira roer-nos?!
Os vermes já não querem mais comer-nos
E os formigueiros já nos desprezaram”.
Figuras espectrais de bocas tronchas
Tornam-me o pesadelo duradouro…
Choro e quero beber a água do choro
Com as mãos dispostas à feição de conchas.
Tal uma planta aquática submersa,
Antegozando as últimas delícias
Mergulho as mãos — vis raízes adventícias —
No algodão quente de um tapete persa.
Por muito tempo rolo no tapete.
Súbito me ergo. A lua é morta. Um frio
Cai sobre o meu estômago vazio
Como se fosse um copo de sorvete!
A alta frialdade me insensibiliza;
O suor me ensopa. Meu tormento é infindo…
Minha família ainda está dormindo
E eu não posso pedir outra camisa!
Abro a janela. Elevam-se fumaças
Do engenho enorme. A luz fulge abundante
E em vez do sepulcral Quarto Minguante
Vi que era o sol batendo nas vidraças.
Pelos respiratórios tênues tubos
Dos poros vegetais, no ato da entrega
Do mato verde, a terra resfolega
Estrumada, feliz, cheia de adubos.
Côncavo, o Céu, radiante e estriado, observa
A universal criação. Broncos e feios,
Vários reptis cortam os campos, cheios
Dos tenros tinhorões e da úmida erva.
Babujada por baixos beiços brutos,
No húmus feraz, hierática, se ostenta
A monarquia da árvore opulenta
Que dá aos homens o óbolo dos frutos.
De mim diverso, rígido e de rastos
Com a solidez do tegumento sujo
Sulca, em diâmetro, o solo um caramujo
Naturalmente pelos mata-pastos.
Entretanto, passei o dia inquieto,
A ouvir, nestes bucólicos retiros,
Toda a salva fatal de 21 tiros
Que festejou os funerais de Hamleto!
Ah! Minha ruína é pior do que a de Tebas!
Quisera ser, numa última cobiça,
A fatia esponjosa de carniça
Que os corvos comem sobre as jurubebas!
Porque, longe do pão com que me nutres
Nesta hora, oh! Vida, em que a sofrer me exortas
Eu estaria como as bestas mortas
Pendurado no bico dos abutres!
Pau d’Arco, maio, 1907
Bravo!
Dramaticamente belo.
Maravilha de texto! E reler Augusto dos Anjos, é sempre esta sensação de porrada no peito.
Acho que quando cursei Psicologia, perdemos uma excelente oportunidade de estudar este Autor, idem, Euclides. No meu TCC abordei outro fascinante Autor brasileiro, Raul Pompéia, em sua obra autobiográfica, “O Ateneu”. Coloquei Raul Pompéia, no divã.
Caro Deneval,
Vindo de vc, mais que elogio, é lastro.
Abç e grato pela generosidade!
Aluysio
Cara Sandra,
Sob a superfície da “fatia esponjosa de carniça”, sim, é belo.
Abç e grato pela chance da concordância!
Aluysio
Caro Savio,
Sob medida sua definição “drummoneana” de Augusto. E, sim, ele e Euclides estão ombreados em tempo, espaço e talento a Raul Pompéia, com seus inesquecíveis Sérgio e Aristarco.
Abç e grato pela chance do diálogo!
Aluysio
Fantástico!
Remontei a longas e maravilhosas conversas com meu pai. Augusto dos Anjos era um de seus poetas preferidos, talvez escolhido, por alguma semelhança em vida.
Ele guardava o “Eu”, comprado em um “sebo” e que li quando pré-adolescente, na cabeceira. Herdei após sua morte, reli e talvez somente depois disso possa ter compreendido algumas de suas impressões sobre a própria vida:
“Ah! Minha ruína é pior do que a de Tebas!
Quisera ser, numa última cobiça,
A fatia esponjosa de carniça
Que os corvos comem sobre as jurubebas!
Porque, longe do pão com que me nutres
Nesta hora, oh! Vida, em que a sofrer me exortas
Eu estaria como as bestas mortas
Pendurado no bico dos abutres!”
Caro Vito,
Bom saber que, por intermédio do seu pai, vc tenha tomado contato com a obra de Augusto no mesmo período formativo que Drummond. Essa “fatia esponjosa de carniça” há de chocar e encantar enquanto o português for falado em algum recanto do globo.
Abç e grato por seu testemunho!
Aluysio