Poema do domingo — Das coisas findas, muito mais que lindas

“Mas as coisas findas / muito mais que lindas / essas ficarão”. Eram os últimos versos do poema “Memória”, de Carlos Drummond de Andrade (1902/87), pintados na parede de uma varanda que o mar levou em Atfona, mas não da memória de quem viu.

O homem ainda jovem pensava naqueles versos impressos junto à foz do Paraíba do Sul, quando subiu o rio e a serra, num feriado de semana santa, até um morro nos arredores de Cambuci, onde conheceu Edil, negro esguio, elegante e gentilíssimo. Sem nunca antes tê-lo visto, ele o recebeu com uma delicadeza que não faria feio a nenhuma rainha da Inglaterra.

De fato, o visitante ocasional nunca vira tanto acolhimento e asseio como naquela cabana humilde de pau a pique. Em seu interior, panelas, frigideiras e bule areados à exaustão brilhavam à espera de qualquer convidado para uma caneca de café quente e um dedo de prosa.

No desabrir generoso dos solitários, Edil falou das coisas da vida e do mundo, prenhe de doçura e sabedoria. Morreu alguns anos depois, ao cumprir sua própria Paixão. E, findo, ficou na memória e nos versos de quem salvou naquele momento singelo de fé restituída no homem.

 

 

Cristo negro

 

 

sexta-feira santa

(p/ edil)

 

mijo espumando

pedra de índio

negro no sítio

com café na garrafa

e panela areada

à espera de alguém

sítio no morro

que já foi do índio

hoje do quase branco

que cerca o barranco

barranco da pedra

morro da santa

bife na mesa

não na panela areada

do negro do morro

que o rio contorna

no curso da mente

onde coisas pequenas

para quem sabe que acaba

duram pra sempre

 

cambuci, 11/04/98

 

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Este post tem 4 comentários

  1. ninobellieny

    Um dos melhores poemas seus!

  2. Aluysio

    Caro Ocinei,

    Lugares comuns, às vezes, são precisos, amigo Ocinei: a beleza está (tb) nos olhos de quem vê.

    Abç e grato pela generosidade!

    Aluysio

  3. Aluysio

    Caro Nino,

    Diria que é um dos mais singelos. Mas é de um poeta ainda sem domínio técnico da sua arte. O que, às vezes, pode ser bom.

    Abç e grato pela chance da reflexão!

    Aluysio

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