Pobres e ricos. Norte e Sul. Lulistas e antipetistas. Comunas e reaças. Laicos e cristãos. Esfihas e coxinhas. Homos e héteros. Misândricas e misóginos. Negros e brancos. Ou “quase negros”, ou “quase brancos”, como cantou o mestiço Caetano?
Quando vejo até gente inteligente, que admiro, entrar nesse Fla-Flu juvenil em que o Brasil se fragmenta em convulsões desde a Copa de 2014, na qual fomos humilhados (aqui) por 7 a 1, na semifinal diante à campeã Alemanha, passando depois por uma eleição presidencial figadal de parte à parte, que parece ainda não ter terminado, recorro à sabedoria sutil dos versos do mestre grego Konstaninos Kaváfis (1863/1933).
Grego nascido na egípcia Alexandria e, após a morte do pai, educado em Londres, antes de voltar à cidade natal que não abandonaria até a morte, Kaváfis foi talvez o maior poeta do Modernismo grego. E, em alguns dos seus versos com jeito de prosa, cantou o amor carnal por outros homens, como poucos poetas cantaram antes e depois qualquer amor carnado em homem ou mulher.
Como “nosso” Fernando Pessoa (1888/1935), por circunstâncias curiosamente semelhantes, Kaváfis foi tão marcado pela educação formal em inglês, que usaria o idioma em seu cotidiano pelo resto da vida. Todavia, ainda mais que o grande modernista português, seu semelhante grego foi um dos maiores inovadores da língua materna. À distância segura do Egito, afastado dos embates acalorados na Grécia entre o coloquial que o Modernismo tentava impor a uma tradição linguística herdada desde Homero (séc. VIII a.C.) , pai de todos os poetas, depois reforçada por toda a milenar tradição bizantina.
Ao mesmo tempo em que o grego moderno encontrou fundamento técnico nos versos de Kaváfis, estes tinham alicerce temático na tradição clássica, na história e na mitologia grega, alexandrina e romana, elementos renascidos à luz dos sécs. 19 e 20, ainda sujos de placenta. Como católico ortodoxo grego (religião mais próxima ao cristianismo original), levava sempre o crucifixo bizantino junto ao peito e, praticante de sua fé, fazia diariamente suas orações. Em Kaváfis, o amor carnal pelo homem jamais o afastou do amor a Deus, por intersecção do Homem.
Neste Brasil varonil cor de anil, como são os céus e mares da Grécia, recomenda-se a leitura atenta do poema abaixo, na tradução da Ísis Borges da Fonseca, assim como uma prece com a mesma fé de Kaváfis por esse “Haiti” que é tão aqui, nos versos do Caetano, quanto num cartaz de banheiro na Uenf. No lugar de buscar intersecção em cada semelhante desta nossa vasta diversidade humana, quem se dedica tão radicalmente a combater seu contrário, pelo simples espelhamento, pode acabar descobrindo na eventual “vitória” uma vida desprovida de sentido, ou reflexo, ao final da sua própria.
Afinal, na dúvida de quem são mesmo esses tais “bárbaros”, a certeza de que, sem eles, não há nós…
ESPERANDO OS BÁRBAROS
— Que esperamos reunidos na ágora?
É que os bárbaros chegarão hoje.
— Por que no Senado uma tal inação?
Por que os Senadores estão sem legislar?
Porque os bárbaros chegarão hoje.
Que leis farão agora os Senadores?
Os bárbaros quando chegarem legislarão.
— Por que nosso imperador tão cedo se levantou,
e, diante da porta mais alta da cidade, está sentado
em seu trono, solene, cingindo a coroa?
Porque os bárbaros chegarão hoje.
E o imperador espera receber
o chefe deles. Além disso, preparou
para dar-lhe um pergaminho, onde
lhe registrou muitos títulos e dignidades.
Por que nossos dois cônsules e nossos pretores saíram
hoje com suas togas vermelhas, bordadas?
Por que puseram braceletes com tantas ametistas,
e anéis com esplêndidas, brilhantes esmeraldas?
Por que empunham hoje preciosos bastões
de prata e de ouro excelentemente incrustados?
Porque os bárbaros chegarão hoje;
e tais coisas deslumbram os bárbaros.
— Por que nossos hábeis oradores não vêm como sempre
proferir seus discursos, falar sobre suas preocupações?
Porque os bárbaros chegarão hoje;
e eles se aborrecem com eloquência e arengas.
— Por que de repente começou esta inquietude
e por que a confusão? (como se tornaram graves as fisionomias!)
Por que rápido se esvaziam as ruas e as praças.
e todos voltam para casa muito apreensivos?
Porque anoiteceu e os bárbaros não vieram.
E alguns chegaram das fronteiras,
e disseram que já não há bárbaros.
— E agora que será de nós sem bárbaros?
Esses homens eram uma solução.
Alexandria, 1904
Por que o inferno e os bárbaros são os outros? São ou não são? São os outros? Sempre os outros? E eu sou? Um bárbaro do inferno que sopra velas e acende fogueiras vagas. Talvez eu outro e bárbaro que não compareço.
Ps: texto maravilhoso o teu. Bárbaro.
Amigo Ocinei,
Antes tarde do que nunca, grato por tua generosidade sempre bárbara, sem classicismos ou nenhuma convenção greco-latina.
Abç fraterno!
Aluysio