Para começar a semana rindo (da cara dos canalhas e boçais)

Apesar dos canalhas que tomaram o país de assalto, bem como dos boçais que ainda se prestam a tentar defendê-los, para rir bastante da cara de todos eles e começar bem esta semana de ingresso ao mês do Natal, o blog pede licença para reproduzir abaixo a arte impagável do Antonio Lucena. Em diálogo franco com o filme “E.T. — o Extraterrestre” (1982), clássico de Steven Spielberg, a criativa montagem confere o alívio da constatação: essa gente tem a cara daquilo que é!

 

é natal

 

Poemas do domingo — O coração de Augusto dos Anjos e Álvaro de Campos

Rua Pero de Góis, Parque Tamandaré, na madrugada de 27/11/15 (foto de Aluysio Abreu Barbosa)
“Cintilações de lâmpadas suspensas” na rua Pero de Góis, Parque Tamandaré, na madrugada de 27/11/15 (foto de Aluysio Abreu Barbosa)

 

 

Foi no Egito Antigo (3.150 a.C./ 31 a.C.) que atribuíram o centro das emoções humanas ao coração. Hoje sabemos que essa função pertence ao cérebro, mais precisamente à região central do tálamo. Famosos por sua medicina avançada na Antiguidade, os egípcios notaram que nosso pulso acelerava quando sentimos paixão, raiva, medo, angústia, ou qualquer outro tipo de emoção mais forte. E eles já sabiam que a pulsação era ditada pelas batidas do coração. Assim, a conclusão equivocada, apesar de lógica.

O fato é que, mesmo vivendo sob a luz das ciências modernas e a difusão dos seus conceitos, pelo menos desde o final do séc. 19, o músculo cardíaco manteve intocada no imaginário popular sua condição de centro emocional do homem. E essa condição de ideograma, na qual o simples desenho do coração é imediatamente associado às emoções, sobretudo ao amor, permaneceu também nos versos de dois poetas cujas vidas e obras foram profundamente marcadas pelo avanço científico da modernidade, ambos nascidos e criados na fantástica ebulição da virada do séc. 19 ao 20: o brasileiro Augusto dos Anjos (1884/1914) e o português Fernando Pessoa (1888/1935).

Seja para um pré-modernista como Augusto, ou mesmo o mais modernista dos heterônimos de Pessoa, como foi o caso de Álvaro de Campos, o coração que “tem catedrais imensas”, revelado pelo brasileiro logo na abertura do seu soneto, é o mesmo que rouba a luz entre os vitrais dessas “catedrais” para se refazer, em vidro e cores, no verso que fecha ruidosamente o poema do lusitano. “Esta velha angústia,/ Esta angústia que trago há séculos em mim” pode, sim, transbordar a vasilha e até quebrar “a imagem dos meus próprios sonhos”, enquanto estala ao verso final do outro, nas batidas uníssonas dentro do peito de dois grandes poetas, ecoadas nas vozes não menores dos atores Othon Bastos e Paulo Autran (1922/2007):

 

 

O paraibano Augusto dos Anjos
O paraibano Augusto dos Anjos por Ramon Muniz

 

 

 

 

Vandalismo

 

Meu coração tem catedrais imensas,

Templos de priscas e longínquas datas,

Onde um nume de amor, em serenatas,

Canta a aleluia virginal das crenças.

 

Na ogiva fúlgida e nas colunatas

Vertem lustrais irradiações intensas

Cintilações de lâmpadas suspensas

E as ametistas e os florões e as pratas.

 

Como os velhos Templários medievais

Entrei um dia nessas catedrais

E nesses templos claros e risonhos …

 

E erguendo os gládios e brandindo as hastas,

No desespero dos iconoclastas

Quebrei a imagem dos meus próprios sonhos!

 

 

O lisboeta Fernando Pessoa por Almada Negreiros
O lisboeta Fernando Pessoa por Almada Negreiros

 

 

 

 

Esta velha angústia

 

Esta velha angústia,

Esta angústia que trago há séculos em mim,

Transbordou da vasilha,

Em lágrimas, em grandes imaginações,

Em sonhos em estilo de pesadelo sem terror,

Em grandes emoções súbitas sem sentido nenhum.

 

Transbordou.

Mal sei como conduzir-me na vida

Com este mal-estar a fazer-me pregas na alma!

Se ao menos endoidecesse deveras!

Mas não: é este estar entre,

Este quase,

Este poder ser que…,

Isto.

 

Um internado num manicômio é, ao menos, alguém,

Eu sou um internado num manicômio sem manicômio.

Estou doido a frio,

Estou lúcido e louco,

Estou alheio a tudo e igual a todos:

Estou dormindo desperto com sonhos que são loucura

Porque não são sonhos.

Estou assim…

 

Pobre velha casa da minha infância perdida!

Quem te diria que eu me desacolhesse tanto!

Que é do teu menino? Está maluco.

Que é de quem dormia sossegado sob o teu teto provinciano?

Está maluco.

Quem de quem fui? Está maluco. Hoje é quem eu sou.

 

Se ao menos eu tivesse uma religião qualquer!

Por exemplo, por aquele manipanso

Que havia em casa, lá nessa, trazido de África.

Era feiíssimo, era grotesco,

Mas havia nele a divindade de tudo em que se crê.

Se eu pudesse crer num manipanso qualquer —

Júpiter, Jeová, a Humanidade —

Qualquer serviria,

Pois o que é tudo senão o que pensamos de tudo?

 

Estala, coração de vidro pintado!

 

Em tempo de crise, quer ganhar R$ 2,5 milhões com a Wikipedia?

Em tempo e crise, quer ganhar R$ 2,5 milhões por uma consultoria montada com a Wikipedia? Bem, para isso você tem que ser filho, de fato, do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) — o “Pai dos pobres” na herança pretensa ao também ex-presidente (e ditador) Getúlio Vargas (1882/1954). Foi o que revelou aqui, no final da noite de ontem, o Blog do Fausto Macedo, sempre à frente na cobertura nacional da podridão revelada pela operação Lava-Jato, e também na dianteira da cobertura das falcatruas trazidas a furo pela operação Zelotes, incluindo a bolada recebida pela empresa de Luís Cláudio Lula da Silva, filho de Lula Pai.

Segundo a Polícia Federal (PF), a suspeita é de participação direta no esquema de compra de medidas provisórias para favorecer montadoras de veículos com inventivos fiscais. Os pagamentos da Marcondes & Mautoni à LTF, empresa do filho de Lula, só teriam cessado após ter sido deflagrada a primeira fase da operação Zelotes, cuja divulgação na mídia alguns palpiteiros infelizes chegaram a cobrar, na tentativa desesperada de abafar a Lava-Jato para defender seus réus no desvio de bilhões do dinheiro público. Todavia, sobre a Zelotes, o relatório da PF cita supostas investidas dos envolvidos “junto à presidência da República”, que teriam enviado documentos ao então presidente Lula, tratando dos pleitos das montadoras para a prorrogação de incentivos fiscais.

Segure o estômago antes de ler abaixo a reportagem do Fausto com a Andreza Matais:

 

Luís Cláudio Lula da Silva, filho do ex-presidente Lula, o “filho do Brasil” na tela de cinema (foto de Paulo Pinto - Estadão)
Luís Cláudio Lula da Silva, filho do ex-presidente Lula, o “filho do Brasil” na tela de cinema (foto de Paulo Pinto – Estadão)

 

 

Por Andreza Matais e Fausto Macedo

 

O trabalho de consultoria que rendeu R$ 2,5 milhões a Luís Cláudio Lula da Silva, filho mais novo do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, foi baseado em “meras reproduções de conteúdo disponível na rede mundial de computadores, em especial no site do Wikipedia”, informa relatório da Polícia Federal.

Para os investigadores, a cópia de “conteúdo disponível na rede social” reforça as suspeitas de que a empresa está envolvida no suposto esquema de compra de medidas provisórias para favorecer montadoras de veículos com inventivos fiscais. O caso, investigado na Operação Zelotes, foi revelado pelo “Estado”. “Os estudos apresentados pareciam ser de rasa profundidade e complexidade, em total falta de sintonia com os milionários valores pagos”, diz o documento.

A PF já indiciou 19 pessoas supostamente envolvidas no esquema. Luís Claudio não consta da relação dos indiciados, segundo a PF, porque foi descoberto durante busca e apreensão, na última fase da Zelotes, um contrato sem o nome da LFT, empresa de Luís Cláudio que prestou a consultoria, bem similar aos que ele assinou com a Marcondes & Mautoni, que pagou os R$ 2,5 milhões. Se for confirmado outro vínculo com a empresa, o valor dos negócios da com a Marcondes pode chegar a R$ 4 milhões.

Conforme o relatório, o mesmo valor é “suscitado pelo lobista Alexandre Paes dos Santos, um dos investigados, como sendo o que tinha sido acertado como pagamento para os ‘colaboradores’ de Mauro Marcondes”, dono da Marcondes & Mautoni no lobby para viabilizar as MPs. Segundo a PF, os pagamentos para a empresa de Luís Claudio só cessaram com a deflagração da primeira fase da Zelotes.

Foi a localização desse novo contrato que levou a PF a decidir por instaurar uma nova investigação específica sobre os negócios envolvendo o filho de Lula. “Essa hipótese, bem como o real propósito desses pagamentos, não foi confirmada até o presente momento, razão pela qual será dada continuidade à investigação em outro inquérito policial em que será analisado todo o material coletado com vista à pela elucidação dos fatos apurados”, afirma a PF.

O relatório da Polícia Federal cita ainda supostas investidas dos envolvidos “junto à Presidência da República”, que teriam enviado documentos ao então Presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, tratando dos pleitos das montadoras para a prorrogação de incentivos fiscais.

O ex-ministro Gilberto Carvalho também é citado no relatório da PF. Ele não foi indiciado, mas será investigado em nova frente. “Constatamos que as relações mantidas entre a empresa do lobista Mauro Marcondes e o Gilberto Carvalho são deveras estreitas, o que reforça o envolvimento deste nas tratativas para a edição da medida provisória para beneficiamento do setor automotivo, utilizando-se de servidor público que ocupava a “antessala” do então Presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, responsável direto pela edição de Medidas Provisórias.”

O relatório reitera que Marcondes “recorre ao ‘amigo’ Gilberto Carvalho para que chegue documento às mãos do então Presidente Lula, mas para isso pede que o cumprimento dessa incumbência seja “daquela forma informal” e “low profile” que só o Gilberto Carvalho consegue fazer, sem “formalidades” e no momento oportuno.”

Ainda sobre a LFT Marketing Esportivo, o relatório da PF considerou que os “vultosos” pagamentos ao filho do ex-presidente foram um “ponto fora da curva”, por se tratar de uma empresa “que nunca tinha aparecido como prestadora de serviços da empresa de lobby”, não possui nenhum funcionário cadastrado nos seus quadros e tampouco informa pagamento de salário ou recolhimento de contribuições previdenciárias de empregados.

Luís Claudio e Mauro Marcondes já foram ouvidos pela PF a respeito dos contratos. “Contudo, a nosso ver, as versões por eles apresentadas se mostraram por demais contraditórias e com conteúdo pouco aferível”, afirmam os investigadores.

O relatório da PF menciona que o fato de o “Estado” ter revelado o esquema antes da deflagração da Operação Zelotes pela PF fez com que Luís Claudio fosse até a sede da LFT retirar a documentação referente aos serviços prestados a Marcondes para levá-las ao escritório Teixeira, Martins Advogados, pertencente ao “seu padrinho Roberto Teixeira, para uma “validação” dos contratos, como se o momento mais apropriado para uma análise jurídica desses vultosos contratos que envolviam a cifra de R$ 2.500.000,00 fosse realmente após sua a celebração e, mais, após recebimentos dos valores contratados. É como se os pagamentos não fossem uma confirmação tácita do contratante de que os contratos já tinham sido “validados””.

A defesa de Luís Cláudio sustenta que seu cliente prestou serviço na área de marketing esportivo para a Marcondes & Mautoni por meio da LFT e que tais serviços foram “comprovados”.

“Ao final dos trabalhos, foram entregues relatórios sobre cada um dos projetos elaborados. A LFT recebeu pagamentos da Marcondes & Mautoni entre junho de 2014 e março de 2015, à medida que os trabalhos contratados foram executados. Todos os valores foram declarados à Receita Federal e houve a emissão de notas fiscais, com os devidos impostos recolhidos”, explica nota subscrita pelo advogado Cristiano Zanin Martins.

Procurado, o advogado de Mauro e Cristina não se pronunciou. O ex-ministro Gilberto Carvalho não foi localizado ontem. Ele tem negado que atuou para favorecer montadoras.

 

Soffiati assume a Folha Letras toda última sexta-feira do mês

Criada no sentido de divulgar e estimular a Literatura, a Folha Letras foi criada em 2008, circulando de lá para cá todas as sextas-feiras, sempre nas contracapas da Folha Dois. Em março de 2013, surgiu a primeira parceria da página, com a Academia Campista de Letras (ACL), que assumiu no rodízio entre seus imortais a Folha Letras da terceira sexta-feira de cada mês.

Pois a partir de hoje, um dos acadêmicos da ACL e colaborador vivo mais antigo da Folha da Manhã, assumiu a última Folha Letras do mês, como fará em todas as próximas: o historiador, professor, ambientalista, escritor e crítico de cinema Arthur Aristides Soffiati. Quem também passará a bater ponto de maneira fixa no espaço serei eu, a partir da próximo dia 4, quando passarei a assumir toda a primeira sexta-feira do mês, visando aproveitar as postagens sobre poesia feitas todo o domingo neste “Opiniões”.

Abaixo, a estreia hoje de Soffiati, meu capitão, como colaborador fixo agora também da Folha Letras:

 

 

Soffiati
Aristides Soffiati no traço de Marco Antonio Rodrigues

Três livros recentes de contos

Por Arthur Soffiati

Sem necessidade de enriquecer currículo e de preparar aula, posso me dar ao luxo de ler o que quero. Sempre pensei que, na condição de professor de história, o cotidiano da sala de aula exigiria de mim cultura geral, mas me enganei. Nem sequer a literatura da minha disciplina era exigida. Esse foi um dos meus desencantos com o magistério.

Sempre gostei de poesia e de prosa de ficção. Atualmente, posso voltar a elas sem preocupação com a burocracia do magistério. Li muito em 2014-15. Destaco hoje três livros de contos: “Cantos profanos”, de Evando Nascimento (São Paulo: Biblioteca Azul, 2014), “Histórias curtas”, de Rubem Fonseca (Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2015) e “Amar é crime”, de Marcelino Freire (Rio de Janeiro/São Paulo: Record, 2015).

Evando Nascimento agrupa seus contos em três partes. Na primeira, figuram “Tentação dos santos”, focalizando a divisão entre os apelos do sexo e a moral cristã. Algo na linha de “Lolita”, de Nabokov, porém mais explícito. O personagem procura justificar a pedofilia lançando a culpa numa menina de 14 anos que julga demoníaca. Em “Babel revisitada”, o autor faz alusãoSoff 1 às torres gêmeas e enfoca a arrogância humana. Reflete também sobre construção-destruição da Modernidade. Em “Táxi”, coloca um passageiro narrando conversa mantida com um taxista formado em administração, mas incapaz de escrever bem. A narrativa se torna convincente por partir do passageiro, que sabe escrever. Em “Altamente confidencial”, a narração por um carteiro resulta em bom texto porque o carteiro gosta de ler. Sempre questiono uma narrativa a partir do narrador. É preciso escolher a pessoa que narra, se primeira ou terceira. “Terra à vista” é um conto de ficção científica em que o autor não se sai bem. Transportar-se para o futuro é mais perigoso que para o passado, embora ambos os tempos requeiram pesquisa.

Na segunda parte, o conto “Demo” se empenha em demonstrar que “A Natureza é fundamentalmente má e a Civilização é seu mais acabado produto”. “É hoje!” trata-se de um canto antimoderno, antitecnológico e anti-pós-moderno. Nele, o autor repudia todo rótulo. “Muito prazer” enfoca de um antropófago moderno. Na terceira parte, a narrativa “Curta (metragem)” não é propriamente um conto, mas um conjunto de comentários sobre cidade, patrimônio cultural, inteligência da vida, direito dos índios. É um escrito com posicionamentos do autor, que parece ser ateu, e faz a defesa do ambiente. Ele faz agradecimentos a Sérgio Sant’Anna, que parece inspirar seus contos, e dele recebe bênçãos. Mas livro o deixou-me a desejar algo mais sólido, eu que escrevo apenas como leitor.

Soff 3O livro de Rubem Fonseca foi considerado pela crítica muito inferior a seus trabalhos anteriores. No fundo, é o mesmo Fonseca com seus temas prediletos. Bons sentimentos em pessoas com práticas cruéis é uma marca registrada de seus livros. Em “A grande arte” (1983), o detetive Mandrake, diante de um homicídio, preocupa-se com um peixe que morre no aquário. Em “Vastas emoções e pensamentos imperfeitos” (1988), o personagem central prefere a companhia de animais peçonhentos à de bandidos. Num conto de “O cobrador” (1979), um assassino profissional sobe o rio Amazonas à procura da vítima que deverá eliminar enquanto observa o desmatamento da floresta e mentalmente critica o governo. Por toda sua produção literária, parece que Rubem Fonseca é mesmo um misantropo moderado.

Os contos de Fonseca descambam para o humor negro e para o surreal. Num deles, um rapaz rico e antirracista pensa em matar racistas, mas se contém. Pensa em pichar muros, mas sempre recua diante da lei. Finalmente, para demonstrar que não tem preconceito racial, casa-se com uma negra e uma índia, tema que foi melhor explorado por Benedicto Monteiro em “A terceira margem”, livro que teve pouca divulgação e que hoje caiu no esquecimento. Nele, a discussão sobre os problemas ambientais da Amazônia mesclam-se com a vida sexual promíscua de um homem simples. Mas não há, em Monteiro, qualquer intenção de panfleto, mesmo caricata, como em Fonseca, que tenta demonstrar que o combate ao preconceito racial acaba também sendo crime.

Narrados na primeira pessoa, os contos de Rubem Fonseca exploram a loucura, o crime castigado com crime, o sexo praticado com uma árvore (segundo o diagnóstico médico, “dendrolatria patológica de terceiro grau”). No conto “Jardim de flores”, um assassino sexual é sensível à beleza das flores. Em “Viver”, o narrador morre, mas continua a narrar. Em “A noviça”, o narrador, sempre na primeira pessoa, declara que “Mulher só gosta de homem triste se ele for muito rico”. Em “Atração”, ele proclama que “Todo marido é um bestalhão. O sujeito que se casa tem que ser um bestalhão”. Em “Hóstias”, o narrador declara: “Eu estava viciado em hóstias, achava um verdadeiro néctar. Às vezes eu a deixava derreter na boca, outras vezes eu a mastigava. Ia à missa só para isso, para comer hóstias”.

Soff 2No geral, os contos não chocam mais. Rubem Fonseca se mostra muito previsível neste livro. Trata-se do velho Rubem, com contos fracos e alguns bons. Sopesando bem, vejo esse cansaço também em Dalton Trevisan. São autores nonagenários que conquistaram o direito de se repetir, de não mais inovar. Já se tornaram celebridades.

Quanto a Marcelino Freire, autor do aclamado romance “Nossos ossos”, seu livro de contos não me convenceu, sobretudo depois de se ler os contos densos de os contos densos de “O amor das sombras”, de Ronaldo Correia de Brito, de quem falarei oportunamente. Todos os contos do livro são escritos com excesso de rimas perfeitas ou toantes, tipo “tinha/zorbinha/tanguinha”, “mundo/imundo”, “anjo/marmanjo”, “fungos fungando”. Ocasionalmente, dígrafos consonantais soantes. Também pontuação anômala, para criar impressão de vanguarda, como “De. Um. Pouco. De. Carinho”. Malabarismos como estes só se justificam com moderação ou talento. Nem todo escritor é James Joyce.

Alguns contos se salvam, a exemplo de “Mariângela” (drama de uma gorda); “Luta armada” (avô que mata a neta por ter combatido em muitas revoluções); “União civil” (“Escrever é organizar os sentimentos perdidos”; conto em que também o autor reflete sobre a arte do conto: “Ele fica lá, congelado, esperando que algo o acorde…”) e “Após a morte”. O livro originalmente foi publicado pelo coletivo artístico Edith em 2011. Agora, aparece com Marcelino Freire como autor.

 

 

Folha Letras da edição de hoje da Folha da Manhã
Folha Letras da edição de hoje da Folha da Manhã

 

Equivalente mais próximo ao kirchnerismo no Brasil não é o lulopetismo, mas o garotismo

Na democracia irrefreável das redes sociais, o perfil no Facebook (aqui) do advogado, publicitário e crítico de cinema Gustavo Alejandro Oviedo, argentino caído em Campos, tem servido de referência sobre a reviravolta política na Argentina, com a aparente derrocada do kichnerismo na eleição presidencial do país do último domingo (22), indicando dias difíceis à frente para movimentos populistas como o chavismo bolivariano na Venezuela, o evomoralismo na Bolívia e o lulopetismo, no Brasil.

A pedido do blog, Oviedo escreveu sobre as analogias possíveis do que ocorreu em seu país com o futuro da América do Sul. Confira abaixo o que pensa quem considera o kichnerismo mais próximo ao garotismo, reduzido à esfera de Campos, do que ao lulopetismo, cada vez mais reduzido à esfera criminal, com as prisões do pecuarista José Carlos Bumlai, amigo íntimo do ex-presidente Lula (PT), e do ex-líder governista no Senado Federal, Delcídio do Amaral (PT-MS), respectivamente nas últimas terça (24) e quarta(25):

 

 

Argentina decadência

 

 

Gustavo Alejandro Oviedo, advogado, publicitário e crítico de cinema
Gustavo Alejandro Oviedo, advogado, publicitário e crítico de cinema

A Queda do Reino Kirchnerista

Por Gustavo Alejandro Oviedo

 

O resultado das eleições argentinas, que deram a vitória ao prefeito da cidade de Buenos Aires, Mauricio Macri, foi uma agradabilíssima surpresa para aqueles que, como eu, achavam que o kirchnerismo ia conseguir se impor por mais quatro anos. Tinha motivos para ficar desiludido: os institutos de pesquisa prognosticavam, para o primeiro turno, uma vantagem de quase dez pontos em favor do situacionista Daniel Scioli, governador da província de Buenos Aires (não confundir a cidade com a província), que o colocava a beira da triunfo já na primeira volta.

É interessante saber como Scioli acabou representando o kirchnerismo para suceder Cristina Kirchner, pois o episódio é uma boa amostra da hipocrisia, do autoritarismo e do oportunismo ideológico que representa esta ala do movimento peronista.  Em 2011, por iniciativa do kirchnerismo, é aprovada no congresso a lei das Paso (Primarias Abiertas Simultáneas y Obligatorias) que obriga a todos os partidos políticos a celebrarem, numa mesma data, suas eleições internas, e também obriga aos cidadãos escolherem um partido e seus candidatos. Você leu certo: num determinado domingo, os argentinos devem comparecer às urnas para elegerem os políticos de um partido que irão preencher as vagas de candidato para a próxima eleição. Desta forma, as Paso resultam ser nada menos que a maior enquete de intenção de voto do mundo, pois o resultado informa o posicionamento dos partidos e seus percentuais, sendo que o universo pesquisado atinge 100% dos eleitores.

Pois bem, após instituir as Paso, a presidente Kirchner decide que seu partido não participará delas, no que se refere à escolha de candidato a presidente. Determina que este será Daniel Scioli, e ordena ao outro pré-candidato,  o seu ministro Florencio Randazzo, que desista de concorrer.

Scioli é uma figura que em muitos aspectos lembra o personagem de Peter Sellers no filme “Muito Além do Jardim”. Um sujeito medíocre e insosso que surfou na onda das oportunidades que a vida política lhe ofereceu, sem nunca ter emitido uma opinião interessante ou original sobre nada. Não lhe foi mal: foi deputado, vice-presidente, governador e, não fossem três pontos percentuais, quase presidente.

Mas antes de Scioli  ser o candidato de Cristina, ele era visto dentro do núcleo kirchnerista como um “outsider” no movimento. Um parceiro desagradável. Um cara que, embora peronista, não compartilhava os ideais progressistas de centro esquerda. De fato, o programa “6,7,8” que se emite pela TV pública e que funciona como o porta-voz da Casa Rosada, até pouco tempo atrás atacava Scioli, chamando-o de “candidato do FMI” junto com o agora presidente eleito Macri. Bastou Cristina determinar que ele era o escolhido para que toda a corte mudasse automaticamente de opinião.

Reviravoltas ideológicas deste tipo não são novidades no kirchnerismo: o cardeal Bergoglio era uma figura detestada pelo matrimonio Kirchner (a presidente negou todos os pedidos de reunião que o prelado solicitava) até o instante em que foi ungido como o Papa Francisco. Bergoglio, aos olhos da militância “K”, passou de cúmplice da ditadura a ser motivo de orgulho para os argentinos.

Mas o kirchnerismo não será apenas lembrado pelos seus princípios inconsistentes. A prepotência, a mentira e a corrupção também formam parte da sua essência, assim como um discurso progressista vazio que, enquanto fala de conceitos como “justiça social”, “independência econômica” e “luta contra as corporações”, aproveita para mentir sobre os índices de inflação, roubar descaradamente e atropelar os poderes judiciais e legislativos.

Há uma desconexão tão profunda entre o relato oficial e a realidade que provoca reações insólitas por parte dos funcionários do governo. Numa entrevista recente, o ministro de economia Axel Kiciloff justificou a falta de dados oficiais sobre a pobreza na Argentina porque, segundo ele, contabilizar quantos pobres existem no país seria “estigmatizá-los”.

Não é possível estabelecer similaridades entre o kirchnerismo e o PT. Apesar de todos seus escândalos, os governos Lula e Dilma estão a anos luz do nível de infâmia que representaram os últimos doze anos de governo K. Sei que isto não é mérito exclusivo do PT: no Brasil o equilíbrio entre os poderes do governo é muito mais forte em comparação com o hiper presidencialismo argentino, onde o chefe do Executivo consegue se colocar por cima de seus colegas dos poderes Legislativo e Judiciário.

Para exemplificar, diga-se que na Argentina é inimaginável a existência de um processo como o da Lava-Jato, onde magistrados, promotores e agentes da Polícia Federal investigam com independência as irregularidades de uma administração que ainda não acabou. Em fevereiro deste ano, o promotor argentino Nisman, um dia antes de depor no Congresso acerca de suas investigações sobre as relações entre o Irã e funcionários do governo local, foi encontrado suicidado dentro de seu apartamento de Puerto Madero.

O kircherismo se coloca num ponto da escala entre o bolivarianismo venezuelano e a esquerda moderada — mais pra lá do que pra cá. É uma combinação do clássico populismo peronista, que entende que os pobres devem ser reféns políticos permanentes do assistencialismo, misturado com um discurso progressista que enamora alguns artistas e intelectuais (mas que na prática é absolutamente ineficaz) somada à convicção de que democracia é a ditadura da maioria. O equivalente mais próximo ao kirchnerismo no Brasil não é o lulopetismo, mas o garotismo.

Não sei como virá a ser o governo de Macri, mas pensar que será diferente do atual já é motivo para me deixar feliz. Na última terça, após o resultado do segundo turno no domingo, a presidente Kirchner chamou o vencedor para uma reunião na residência oficial. Parecia ser o começo de uma transição civilizada. Mas Cristina determinou que Macri aparecesse sozinho, e que o encontro fosse a portas fechadas. Por determinação da presidente, não houve fotos da reunião e também não permitiu que Macri utilizasse a sala de imprensa para falar com os jornalistas.

Foi uma conversa de 20 minutos onde ela avisou para o seu sucessor que os seus ministros só estarão à disposição do novo presidente a partir do dia 10 de dezembro, ou seja, após o fim do mandato de Cristina. Na prática, significa que não haverá transição alguma.

Depois dela, o caos. Esse é o legado de Cristina Kirchner para o seu amado povo.

 

Santa Casa: sem surpresa, TJ anula decisões da 1ª Vara de Campos

Mais uma vez o desemargador Fernando Cerqueira Chagas deu uma decisão favorável ao governo Rosinha no caso da Santa Casa (reprodução)
Mais uma vez o desemargador Fernando Cerqueira Chagas deu uma decisão favorável ao governo Rosinha no caso da Santa Casa (reprodução)

Mais uma vez o Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro (TJ-RJ) deu provimento a um recurso do governo Rosinha Garotinho (PR) contra uma decisão da 1ª Vara Cível de Campos, no caso da Santa Casa de Misericórdia. Só que, desta vez, a decisão é mais abrangente do que tornar sem efeito a decisão do juiz titular da 1ª Vara Cível de Campos, Ralph Manhães, que no último dia 6 determinou (aqui) o bloqueio de R$ 3 milhões da Prefeitura por dívidas com a Santa Casa. O TJ rechaçou o argumento de conexão usado pelo promotor Leandro Manhães para enviar suas ações diretamente à 1ª Vara Cível, tornando nulas todas as decisões deste juízo sobre o caso, nas ações posteriores do Ministério Público Estadual (MPE) à sua ação civil pública que sustentou a intervenção judicial no maior hospital conveniado do município.

Sem surpresa, a decisão de hoje partiu do mesmo desembargador Fernando Cerqueira Chagas, da 11ª Câmara Cível do TJ-RJ. Em 29 de outubro, ele já havia concedido (aqui) efeito suspensivo à decisão (aqui) do juiz Elias Pedro Sader Neto, também pela 1ª Vara Cível de Campos, que considerou ilegal a portaria municipal 272/2015, a partir da qual o governo Rosinha Garotinho (PR) promoveu (aqui) sua própria intervenção na Santa Casa, entre os dias 20 e 22 de outubro.

Agora, todas as ações cautelares propostas pelo promotor Leandro, após sua ação civil pública da intervenção judicial no hospital, terão que ir a sorteio entre as cinco Vara Cíveis da comarca. Em relação às dívidas da Prefeitura com a Santa Casa, após chegar a negar sua existência, quando ocupou o hospital em 20 de outubro ao lado do promotor estadual Marcelo Lessa, nove dias depois a própria prefeita Rosinha voltou atrás e admitiu (aqui) ter débitos em aberto com o hospital, por serviços nele prestados pelo Sistema Único de Saúde (SUS), cujos recursos federais são repassados pelo ministério da Saúde à Prefeitura de Campos.

 

Poema do domingo — Para alongar o caminho do verso de um sírio pagão

Adonis
(Capa do livro de Adonis pela Cia. das Letras)

Tentar resumir toda a complexidade política, religiosa e histórica por trás da guerra civil na Síria, bem como seus reflexos diretos tanto na morte por afogamento do menino refugiado Aylan Kurdi, em 2 de setembro, quanto no massacre de 130 pessoas, a tiros de fuzil e explosões, na última sexta-feira 13, em Paris, é pretensão demais para este prólogo em prosa à poesia. Mas a escolha sobre a vida e a obra do poeta sírio nascido Ali Ahmad Said, que se tornou conhecido no mundo literário como Adonis, é uma tentativa modesta nessa direção.

Só recentemente conheci o autor, considerado o maior nome da poesia árabe moderna, e parte da sua obra. Quando ele esteve presente na Festa Literária Internacional de Paraty (Flip), em 2012, uma amiga muito querida, que também estava por lá, me trouxe de presente o livro “Adonis — [poemas]”, coletânea editada pela Companhia das Letras, elaborada e traduzida pelo também poeta Michel Sleiman, professor de língua e literatura árabe na Universidade de São Paulo (USP), com impecável apresentação de Milton Hatoum, outro escritor, tradutor e professor.

E, como o assunto é poesia, talvez não seja irrelevante lembrar que a Flip de 2012 começou no final de junho, exatamente o mesmo mês e ano em que o oceano Atlântico levou o bar de Neivaldo Paes Soares (1957/2015), instalado na antiga casa de barco da família Aquino, no Pontal de Atafona. Na, literalmente, última noite do bar ainda de pé, já açoitado por Iemanjá em sua face norte, foi com essa amiga que eu e Neivaldo bebemos e proseamos até madrugada alta, iluminados pela luz bruxuleante das lamparinas e lampiões.

Tales de Mileto
Tales de Mileto (624/558 a.C.)

Um ano antes, em junho de 2011, quando da morte de Suad Moussallem, esposa do médico e amigo Makhoul Moussallem, testemunhei aqui a ressalva satírica aos ocidentais feita pelos indivíduos do Oriente Médio esclarecidos em relação à Grécia Antiga, à qual por sua vez se deve a invenção da filosofia, do teatro, da democracia, da individualidade humana e da tal Civilização Ocidental: “Eles pensam que os gregos são deles”. De fato, assim como a filosofia e, no seu rastro, todas as ciências modernas, tiveram início histórico com Tales de Mileto (624/558 a.C.), colônia grega na Ásia Menor, onde hoje fica a Turquia, perto de Bodrum, praia na qual, 26 séculos depois, deu o corpo inerte e pálido do menino Aylan.

Se de Tales se dizia, desde a Antiguidade, ser filho de uma fenícia (libanesa), igualmente fenícia em sua origem, antes de ser agregada à mitologia pagã dos antigos gregos, é a fábula de Adonis, nascido de uma árvore para se tornar um símbolo de mistério da natureza. Na definição de Hatoum: “um deus da vegetação e da fertilidade, ligado ao ciclo de nascimentos, mortes e renascimentos”. A escolha do pseudônimo do poeta sírio, longe do acaso, tem a intenção de reintroduzir essa dimensão mítica e pagã pré-islâmica no mundo muçulmano, parido nas revelações do profeta Mohammad (Maomé), no séc VII d.C., que fundamentariam o árabe como língua literária na poesia do Corão, livro sagrado do Islã.

Charles Baudelaire
Charles Baudelaire (1821/67)

Educado no liceu francês de Tartus, cidade portuária síria, foi a partir de sua audácia, desde adolescente, que Adonis conquistou sua bolsa de estudo. Aos 13 anos, ele declamou sem convite seus poemas ao presidente da Síria, um dos três que o país teria só naquele ano de 1943, em plena II Guerra Mundial (1939/45). Formaria-se depois em filosofia na Universidade de Damasco, capital da Síria, em 1954, onde tomou contato com poetas ocidentais, como os franceses Charles Baudelaire (1821/67), Arthur Rimbaud (1854/91), Stéphane Mallarmé (1842/98) e René Char (1907/88), além do belga Henri Michaux (1899/1984) e do tcheco de língua alemã Rainer Maria Rilke (1875/1926).

Arthur Rimbaud
Arthur Rimbaud (1854/91)

O contato com a poesia pré-modernista e modernista do Ocidente fez com que Adonis fosse um dos principais introdutores, na Civilização Islâmica, desse movimento referencial nas artes e no pensamento humano, ao qual o nazifascismo do italiano Benito Mussolini (1843/1945) e do austríaco-alemão Adolf Hitler (1889/1945) não deixou de ser uma tentativa antropológica de reação. Ao rigor marcial proposto pelos dois ditadores europeus, traduzido em sua Síria e todo mundo islâmico pelo misto de nacionalismo e socialismo do Baath, o poeta se insurgiu assim que prestou serviço militar, dois anos dos quais passou 11 meses preso por “subversão”.

Mallarmé
Stéphane Mallarmé (1842/98)

Por seu verso e sua vida libertárias, as contestações do socialismo nacionalista e do fundamentalismo religioso se tornaram insuportáveis na Síria, forçando o poeta a se mudar em 1956 para Beirute, capital do Líbano e considerada a mais ocidental das grandes cidades de cultura árabe, e depois para Paris. Adonis passou a morar definitivamente na capital francesa a partir de 1985 e, ironicamente, só não foi uma vítima dos terroristas do Estado Islâmico (EI), na sexta-feira 13 de 2015, simplesmente porque deu a sorte de não estar em nenhum dos locais atacados. Muito antes disso, quando ainda morava no Líbano, fundou as revista “Chiir” (1957/64) e depois a “Mawáqif” (“Posições”).

Em “Chiir”, Adonis se preocupou em estreitar o contato da cultura árabe com a ocidental, traduzindo grandes poetas do Modernismo, como os estadunidenses Robert Frost (1874/1963) e T.S. Elliot (1888/1965), à língua na qual o arcanjo Gabriel sussurrou as revelações de Alá ao ouvido do profeta. A partir dessa semeadura, tratou da colheita  na segunda revista, com o objetivo de revelar e/ou consolidar os novos poetas em língua árabe, a partir do conturbado ano de 1968, onde a contestação aberta ao status quo ditou as revoluções estudantis que tomaram as ruas da França, dos EUA, da antiga Tchecoslováquia e do Brasil, contra governos de direita e esquerda.

Nas palavras da crítica literária libanesa Khalida Said, a revolução promovida por Adonis no final dos anos 1960, em sua revista:

 

— “Mawáqif” extrapolou questões literárias e abordou  temas que até então eram tabus, sobretudo ligados ao nacionalismo e à identidade, à inspiração divina, ao texto religioso, à situação da mulher, da universidade, da educação, às relações entre o Ocidente e o Oriente, à violência, à criação artística e à nova escrita. Assim, operava uma revisão da questão da modernidade e de seus conceitos na poesia e na arte, ou ainda na crítica e no pensamento histórico, filosófico, religioso, social e político.

 

Ao fugir do engajamento proposto pelos nacionalistas, desagradou o socialismo laico do Baath, ao mesmo tempo em que promovia uma ruptura formal e temática com a rica literatura clássica do Islã, para o desagrado dos conservadores religiosos. Guardadas as proporções devidas, Adonis conseguiu contrariar o mesmo dogmatismo de pensamento hoje representado no Brasil pelo PT e demais viúvas do Muro de Berlim (1961/89), de um lado, e do fundamentalismo evangélico e das viúvas da Ditadura Militar (1964/85), no outro. Contra ambos, valeu e continua valendo a resposta do poeta em seu corajoso e ainda não datado “Manifesto para o 5 de junho de 1967”, publicado neste mesmo ano em revistas árabes e, em 1968, na francesa “Esprit”:

 

— Para englobar uma dimensão mais profunda e mais vasta: a do homem em sua verdadeira essência. Não é poeta aquele que não situa no coração de sua intuição poética a transformação do mundo.

 

Abu-Nuwas
Abu-Nuwas (756/814)

Importante também destacar que a modernidade que Adonis introduziu não só na literatura, mas na própria estrutura do pensamento de quem o faz em árabe, revolucionando a tradição que os imbecis do EI querem manter intocada sob a mira de fuzis, se deu com um profundo conhecimento daquilo que se propôs a reformular. Em busca de renovação, o poeta a encontrou na tradição, na necessidade de releitura dos seus pares da Idade Média, mais longa da História do homem e na qual o Islã foi a luz do mundo a partir da Falsafa (“Filosofia” em árabe), do diálogo profícuo com o saber greco-romano da Antiguidade — aquele mesmo iniciado com Tales de Mileto, filho de uma libanesa. No seu livro “Introdução à poesia árabe”, de 1971, o sírio explicou a ponte que fez entre os mestres medievos do Islã com os pré-modernistas e modernistas do Ocidente:

 

Abu Tammam
Abu Tammam (788/845)

— Foi a leitura de Baudelaire que mudou minha compreensão de Abu-Nuwas e revelou sua particular qualidade poética e modernidade; a obra de Mallarmé me esclareceu os mistérios da linguagem poética de Abu-Tamman e a dimensão moderna dessa linguagem. A leitura de Rimbaud me conduziu à descoberta da poesia dos escritores místicos em todo seu esplendor e singularidade, e a nova crítica francesa me indicou a novidade da visão crítica de al-Jurjani.

 

O sírio Abu Tammam (788/845), assim como os persas Abu-Nuwas (756/814) e al-Jurjani (1339/1414), são certamente menos conhecidos no Ocidente que seus pares franceses, mas não menos talentosos ou inovadores, na ruptura com a lírica tradicional de seus tempos. E é na certeza disso que Adonis produz sua própria poesia, na qual a tradição literária, como na prosa do modernista estadunidense Ernest Hemingway (1899/1961), traz em si a demanda da experiência individual.

Com base no poeta francês Alain Jouffroy, como sugere Hatoum em sua introdução no livro que me foi presenteado, Adonis é “capaz de questionar frontalmente todos os dogmas e destruir radicalmente um sentido definitivo à vida e à morte, mas sem resignação, sem se limitar à constatação fácil demais do niilismo”.

Calçado na diversidade, sem se submeter a dogmas de ordem divina ou laica, tampouco à vertigem da ausência de sentido da tal pós-modernidade, cessemos de deitar tanta prosa para que se erga, neste domingo carioca antes do show do Pearl Jam no Maraca, o poema do sírio pagão, a rasgar uma nesga de luz entre as sombras do socialismo nacionalista do ditador sírio Bashar al-Assad e seus iguais em oposição no fundamentalismo religioso dos facínoras do EI.

Que os homens consigam alongar o caminho do verso, enquanto aprendem e ensinam a ver o mundo ao redor:

 

 

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Catacumbas da Catedral de Lima, no Peru (foto de Aluysio Abreu Barbosa)

 

 

Canções para a morte

 

1.

A morte quando passa por mim é como se

o silêncio a abafasse

é como se dormisse quando eu dormisse.

 

2.

Ó mãos da morte, alonguem meu caminho

meu coração é presa do desconhecido,

 

alonguem meu caminho

quem sabe descubro a essência do impossível

e vejo o mundo ao meu redor.

 

Artigo do domingo — Mariana: tragédia humana, ambiental, política e da mídia

(Charge do Amarildo)
(Charge do Amarildo)

 

 

Aldir Sales
Jornalista Adir Sales, em Ouro Preto

Por Aldir Sales

 

Após 17 dias da maior tragédia ambiental da história de Minas Gerais e uma das maiores do Brasil, ainda é impossível calcular o tamanho real dos prejuízos depois do rompimento da barragem de Fundão, repleta de rejeitos de minério de ferro pertencentes à mineradora Samarco, em Mariana, na região central do estado mineiro. Oficialmente, sete pessoas morreram, cinco corpos aguardam identificação; outras 12 estão desaparecidas e 637, desabrigadas. Sem contar o dano ambiental irreversível que a onda de rejeitos tem causado no Rio Doce, exterminando a fauna e deixando milhares de habitantes sem água em cidades importantes como Governador Valadares, Colatina e Linhares. Além da total irresponsabilidade da empresa, que lucrou R$ 7,5 bilhões somente em 2014, o desastre de Mariana pode ser dividido em quatro partes. Essa também foi uma tragédia humana, ambiental, política e da mídia. Uma tragédia que vem escancarando uma série de outros desastres em que o nosso país está mergulhado.

A mídia tem uma grande importância após um desastre como esse. É a partir da pressão popular e dos meios de comunicação que as engrenagens da justiça se movem. Com a popularização da internet e das redes sociais, o jornalismo tradicional tem sido contestado. E com razão. Não dá mais para mentir ou maquiar certas informações, pois elas são, cada vez mais, de domínio público e não das corporações. É inadmissível que alguns veículos ainda tentem minimizar as responsabilidades de uma tragédia sem precedentes como essa por causa de interesses comerciais. Dessa forma, não dá para engolir que “a lama da barragem de uma mineradora causou destruição em Minas Gerais”. Não! Lama é apenas água com terra. O que está escorrendo pelo Rio Doce e destruiu a vida de centenas de famílias é rejeito de minério de ferro. É lixo de mineração. E essa mineradora tem nome, é a Samarco, que é controlada pela Vale e BHP, duas das maiores empresas do ramo em todo o mundo.

A Vale lucrou R$ 62,8 bilhões apenas em 2015. A empresa continua investindo em propaganda em vários meios de comunicação, o que coloca em dúvida certas posturas da mídia nessa cobertura. E a internet tem tido papel fundamental como fonte alternativa nesse caso, colocando em xeque os meios de informação tradicionais.

Voltando à tragédia humana, não dá para acreditar em uma palavra da Samarco. Ela tem mentido, omitido e negado informações fundamentais desde o primeiro momento. Para entender melhor, o local onde tudo aconteceu faz parte de um complexo de três barragens de rejeitos. A maior de todas, a de Germano, e outras duas: Fundão e, logo abaixo, a represa de Santarém. Inicialmente, a Samarco anunciou que apenas Fundão se rompeu. No entanto, horas mais tarde, no mesmo dia, a mineradora veio a público dizer que a de Santarém também teria cedido. A Samarco tem impedido o acesso da imprensa e até mesmo dos órgãos de fiscalização ao local com o discurso da “falta de segurança”. Mas por qual motivo? A resposta apareceu quando o Corpo de Bombeiros sobrevoou a área com um drone e constatou que existe uma trinca de aproximadamente três metros em Germano e a barragem de Santarém ainda continua de pé. Somente após a divulgação das imagens, a empresa admitiu o risco real do colapso das estruturas restantes. E se algo pior tivesse acontecido durante esse silêncio?

O distrito de Bento Rodrigues foi tomado por um mar de lixo de minério e nem todos os moradores conseguiram se salvar. Muitos passaram a noite no alto de um morro, dentro de uma mata. A Samarco garantiu que a lama de rejeitos atingiria apenas Bento, no entanto, outros distritos e a cidade vizinha de Barra Longa foram surpreendidos e tomados pela enxurrada. No mínimo, uma incompetência colossal. Como uma mineradora do porte da Samarco, que lida com uma atividade de altíssimo risco e fatura bilhões, não possui um plano de ação em casos de emergência e ainda tem a cara de pau de fazer a população, a imprensa e o governo de bobos?

Do ponto de vista ambiental, ainda nem temos como ter a real noção dos estragos, pois a lama de rejeitos continua avançando pelo Rio Doce. Lixo e produtos tóxicos que estão matando um dos ecossistemas mais importantes da Região Sudeste. Apenas duas semanas depois foi que a Samarco começou a agir para não deixar os rejeitos chegarem ao oceano e, mesmo assim, por causa de uma ordem judicial. Por fim, essa também é uma tragédia política, pois é a comprovação de como nosso sistema é falido. De acordo com levantamento do jornal Estado de Minas, a Vale doou R$ 30,4 milhões a candidatos na campanha eleitoral de 2014, desde a presidência da República aos cargos de deputado estadual. Todos que deveriam estar fiscalizando as ações da empresa antes e depois do que aconteceu em Mariana.

Felizmente, existe um movimento forte de responsabilização da empresa, principalmente em Mariana e Ouro Preto. Também há uma vertente que defende a manutenção da empresa e dos empregos que ela gera na região, mas sem deixar de punir. Desde as vaias ao anúncio do nome da Samarco, em um fórum sobre literatura, até as passeatas em protesto pelas ruas da cidade, Mariana dá uma lição de como ajudar as vítimas sem esquecer das responsabilidades. Mas é preciso que a cobrança continue para que essa tragédia não seja ainda mais ampliada.

 

Publicado hoje na Folha da Manhã