Por Aluysio Abreu Barbosa
“Nos preocupamos em marcar seus atacantes (Bebeto e Romário). E acho que fizemos isso bem. Aí vem um zagueiro, rouba a bola, dá um passe daqueles e desarma todo meu esquema defensivo. O que posso fazer?” Lamentou-se Dick Advocaat, treinador da Holanda, na coletiva após as quartas-de-final da Copa de 1994, nos EUA. Tentava explicar a derrota do seu time por de 3 a 2, no jogo mais duro do Brasil (reveja-o aqui) naquele Mundial, cujo placar foi aberto quando Aldair Santos do Nascimento interceptou um passe de Frank Rikjaard e fez um lançamento preciso de 60 metros na ponta esquerda a Bebeto, que cruzou na área para Romário marcar.
Baiano de Ilhéus, campeão brasileiro no Flamengo (1987) e italiano no Roma (2000/01), Aldair esteve na semana passada em Campos, no sítio do deputado federal Paulo Feijó, para um torneio de futevôlei, esporte no qual hoje desfila a mesma técnica que sempre o distinguiu entre os zagueiros do mundo. Com a forma física dos tempos de jogador, ele falou da carreira desde os campos de pelada no time do pai, até sua maior conquista: o Tetra de 94, primeira Copa do Mundo para a Seleção Brasileira, após um hiato de 24 anos. Indagado sobre o que guarda com mais carinho da sua carreira, ele se antecipou ao lance no verbo, na mesma classe que tinha com a bola nos campos: “somos só pessoas normais, seres humanos”.
Folha da Manhã – Natural de Ilhéus (BA), você foi cria das divisões de base do Flamengo. Você começou lá com que idade?
Aldair do Nascimento – Eu fui para o Flamengo com 16 anos. Fiz quatro anos de categoria de base, com o professor Carlinhos (aqui, ex-craque rubro-negro dos anos 50 e 60, que seria depois treinador dos profissionais no Tetra Brasileiro do clube em 1987)…
Folha – Você foi reserva de Leandro como zagueiro central (pela direita) naquele time campeão de 87, não é isso?
Aldair – Eu subi em 86. Ganhamos o Campeonato Carioca de 86.
Folha – Aí, em 87, você estava na reserva. Você e o Zé Carlos II. Na zaga titular do Tetra estavam Leandro e Edinho.
Aldair – Eu e Zé Carlos II. Nós jogamos bastante jogos, mas na final (1 a 0 contra o Internacional) quem jogou foi o Leandro e o Edinho. Eu participei, peguei um pouco da experiência dessa galera aí (Edinho disputou as Copas de 1978, 82 e 86, enquanto Leandro, a de 82).
Folha – Você ainda pegou remanescentes daquela geração do Flamengo de Zico, campeã da Libertadores da América e do Mundial Interclubes em 81. Além dele e Leandro, o volante Andrade também estava naquele time de 87. Mas o grande craque era Zico (Copas de 1978, 82 e 86). Foi o maior que você viu jogar?
Aldair – Olha, eu tive a sorte de também jogar com grandes campeões depois. Mas eu sempre coloco o Galo (pelo físico franzino, Zico era chamado de Galinho de Quintino, bairro da periferia carioca onde nasceu e cresceu) como primeiro da lista, por tudo que ele fez no futebol, pelo que ele é para o Flamengo. Então, mesmo em relação a outros grandes jogadores com os quais eu joguei, eu boto sempre o Galo à frente. Eu acho que faltou a ele aquilo que nós conquistamos em 1994 (Tetra na Copa do Mundo, com a Seleção Brasileira). Mas ele foi um jogador e uma pessoa espetacular.
Folha – Em relação ao Tetra em 94, fala-se muito de Romário (Copas de 1990 e 94). Cobri pela TV todos os jogos do Brasil naquela Copa e, particularmente, acho que você, Bebeto (Copas de 90, 94 e 98) e Mauro Silva foram igualmente fundamentais à conquista. Como avalia sua participação naquele Mundial?
Aldair – Eu estava muito bem preparado naquela Copa. Eu tinha saído, oito meses antes, de uma operação. Então tive tempo de trabalhar muito a parte física. E depois a sorte de estar num grupo forte e de machucar um Ricardo (Gomes, Copa de 1990), depois machucar o outro Ricardo (Rocha). Eu e Márcio Santos (inicialmente reservas) estávamos sempre bem, jogando contra o time titular. Seleção é isso: temos que estar todos bem preparados e aproveitar o momento. Nós aproveitamos o nosso. Aquilo que você falou de mim, o Bebeto e o Mauro Silva, mas o Romário realmente estava voando e fez uma grande diferença. O time estava bem montado, bem entrosado. É claro que uma decisão por pênaltis (após o 0 a 0 no tempo normal e na prorrogação contra a Itália) é sempre emocionante. Mas nós conseguimos levar depois de 24 anos.
Folha – Você não bateu. Se chegássemos à segunda rodada das cobranças, qual seria sua posição?
Aldair – Eu seria o sexto batedor, depois do Bebeto. Mas nem chegou no Bebeto, todos sabem o que aconteceu (o Brasil foi campeão após Roberto Baggio desperdiçar sua cobrança). Bater um pênalti naquelas condições (Baggio jogou contundido) não é fácil. Você vê que um dos maiores jogadores do futebol italiano perder o pênalti na final da Copa do Mundo. Isso acontece.
Folha – Sim, se fala muito no Romário, mas Baggio (Copas de 1990, 94 e 98) também jogou muito naquela Copa, apesar do pênalti decisivo perdido. Já nos descontos do primeiro tempo da final, me lembro uma jogada em que Massaro (Copas de 82 e 94) toca de calcanhar para Baggio, que iria partir sozinho contra Taffarel (Copas de 90, 94 e 98), e você antecipa o lance. Depois, já na prorrogação, você sai driblando Massaro dentro da área. A bola é rebatida na frente, volta e você repete o feito em cima de Baggio. Na verdade, você não perdeu uma disputa de bola naquela final (reveja o jogo aqui). De onde tirou tanta confiança?
Aldair – A gente jogava juntos há alguns anos e já se conhecia (Massaro, no Milan; Baggio, na Juventus; Aldair, no Roma). Estava com confiança ali. Tivemos a sorte também de que o Baggio não estava 100%, teve problemas no jogo antes (Itália 2 a 1 Bulgária, na semifinal) e entrou à meia boca. Mas, mesmo assim, sempre perigoso. Ele teve uma bola boa no primeiro tempo, mas nós conseguimos bem, com Mauro (Silva) à nossa frente, eu e Márcio (Santos) conseguimos controlar bem a situação. Mas o horário do jogo (começou às 12h35 na cidade de Pasadena, na Califórnia, no verão dos EUA), eu acho que estava muito mais quente que este dia de hoje, aqui. Então, era um jogo muito difícil.
Folha – Falamos de Romário, Bebeto, Baggio e Massaro. Quem foi o melhor atacante que você enfrentou dentro do campo, o mais difícil de marcar?
Aldair – Como atacante de primeira, assim, centroavante, acho que o que me colocava mais dificuldade era o Ronaldo Fenômeno (Copas de 1994, 98, 2002 e 2006). Pegamos ele na Inter (de Milão) em grande forma (1997/2002), grande aceleração, troca de ritmo. Então era muita dificuldade para marcar o Ronaldo.
Folha – E dos zagueiros com os quais você jogou? Com quem compôs a melhor dupla de zaga?
Aldair – Assim, eu tive a sorte de jogar com grandes zagueiros. Joguei um ano com o Ricardo…
Folha – Ricardo Gomes, no Benfica de Portugal.
Aldair – É, joguei um ano com o Ricardo. Joguei com o (Mauro) Galvão (Copa de 90), com o Mozer (Copa de 90), com o Júlio César (Copa de 86). Então é difícil. Aprendi com todos eles. Eu tive a sorte de começar no Flamengo, tinha o Edinho, tinha o Dario Pereira (Copa de 86, pelo Uruguai), que tinha vindo do São Paulo. Tinha o Leandro. Mas eu procurava pegar uma coisa de cada um. Mas na Copa de 82, eu via muito o Luizinho jogar, tentava fazer o que o Luizinho fazia. Então peguei muito coisa do Luizinho.
Folha – Sua referência, então, foi o Luizinho?
Aldair – Foi o Luizinho. Como zagueiro, sim.
Folha – Esses dias, ouvindo Toninho Cerezzo (Copas de 78 e 82) falar numa entrevista daquele grande Atlético Mineiro do fim dos anos 1970 e começo dos anos 80, do qual foi um dos craques: “O quarto zagueiro (pela esquerda) daquele time era o Luizinho. Meu Deus! O Luizinho era tão técnico que poderia jogar de meia esquerda”.
Aldair — Sim, ele era muito técnico.
Folha — Sim, como você, ele era muito técnico. E como, sendo tão técnicos, vocês acabaram virando zagueiros?
Aldair – (Risos) Eu, na verdade, virei zagueiro por oportunidade. Eu estava no Rio e jogava pelada no Rio de Janeiro. E um ex-jogador do Flamengo perguntou se eu queria ir para o Flamengo como zagueiro, e eu falei que queria. Mas antes disso, eu jogava nas peladas como atacante, antes de ir para o Rio, na Bahia, com o timezinho do meu pai lá em Ilhéus.
Folha – Seu pai é vivo?
Aldair – Não, é falecido. Mas eu jogava no time dele.
Folha – Era boleiro também?
Aldair – Era boleiro, boleiro também. E também era atacante. Mas eu tive essa oportunidade de ir para o Flamengo como zagueiro e a coisa deu certo.
Folha – Mas você era um zagueiro que fazia gols. Quantos fez na carreira profissional?
Aldair – Não fiz muitos, não. Marquei mais pelo Flamengo. No Roma, muito pouco. Acho que não supera os 30 gols, mais ou menos.
Folha – Você era um zagueiro que terminava o jogo de calção limpo, não dava carrinho. Dos que vi jogar, você talvez tenha sido o defensor com maior senso de antecipação, com o qual evitava o combate mais brusco. Como fazia isso? Antevia os lances?
Aldair – Então, acho que você tem que ter uma leitura boa de jogo lá atrás. Porque você jogar contra grandes atacantes, não é fácil você competir contra um Van Basten (Copa de 1990, pela Holanda) ou um Ronaldo. Então você tem que ter uma leitura muito boa de jogo, de antecipação, para cortar os caminhos. Se não fica muito difícil você marcar esses grandes jogadores. Eu tinha essa visão, essa vantagem, que me fez subir na carreira e chegar aonde cheguei.
Folha – No Brasil, as pessoas talvez não tenham a noção exata da sua condição de ídolo do Roma, clube tradicional da Itália. Mesmo tendo saído de um time de torcida tão apaixonada como o Flamengo, impressiona assistir em vídeo à devoção romanista por você, com os tiffosi giallorossi (torcida do Roma) cantando seu nome em coro (aqui) no estádio.
Aldair – Eu fiquei bastante tempo lá. Joguei 13 anos lá.
Folha – Aposentaram sua camisa no Roma, não foi?
Aldair – Por um bom tempo. Até o ano passado. Era a número 6. O clube me chamou, para ver se eu deixaria voltar essa camisa e foi o que aconteceu. Mas acho que existe um acolhimento, uma paixão imensa comigo e com a torcida do Roma. Foi muito legal. A gente teve durante dois ou três anos um time muito forte (campeão da Itália e da Supercopa da Itália na temporada 2000/01), com Batistuta (Copas de 1994, 98 e 2002 pela Argentina), com (o brasileiro) Antônio Carlos, o Montela (Copa de 2002 pela Itália) e o Cafu (Copas de 94, 98, 2002 e 2006). Não ganhamos tudo que eu acho que poderíamos ter ganhado, mas foram anos maravilhosos.
Folha – Das coisas boas às não tão boas: o que aconteceu naquela final da Copa de 98 (França 3 a 0 Brasil)?
Aldair – Em 98 aconteceu tudo aquilo que todos sabem. Primeiro, o início foi muito ruim. Porque aquela desconvocação do Romário, eu acho que o grupo rachou um pouco. Uma parte, do lado do Romário. A outra, não. Fomos pegos de surpresa, quando Romário saiu. Na minha opinião, se Romário estivesse, a Seleção iria render mais. Fica difícil falar se a gente iria ganhar o Mundial ou não, mas acho que teríamos grande chance. E depois teve a final.
Folha – Deu um apagão no time?
Aldair – Eu acho que foi o que aconteceu com o Ronaldo. Mudou muito o comportamento do time no campo. Alguns momentos, algumas horas antes do jogo, o Ronie apagou, o homem que levou a gente à final muito bem. Apesar disso, eu reclamo sempre da falta de atenção que nós tivemos na marcação, de levar dois gols de cabeça de escanteio.
Folha – Dois gols de um cara que, embora craque, não era bom cabeceador. Zidane (Copas de 1998, 2002 e 2006) nunca havia feito um gol de cabeça.
Aldair – Nunca tinha feito um gol de cabeça. Mas não me surpreendo, não. Um dia antes eu pedi para a gente treinar escanteio. O pessoal disse: “Não, cada um já sabe o que faz”. E aconteceu aquilo ali. Você vai para uma final de Copa, você leva dois gols de cabeça. Então, foi uma falta de atenção de alguém ali, que tinha que marcar o Zidane e ficou na dúvida: o Zidane ia bater escanteio, daqui a pouco estava dentro da área. Acabou que perdemos o jogo. Mas, assim, o Brasil não fez um grande Mundial, teve altos e baixos, oscilou muito.
Folha – E de todos os títulos que conquistou, todos os jogos que disputou, o que você leva para sua vida pessoal com mais carinho, com mais emoção?
Aldair – Se eu falar de título, será sempre do Mundial (94), porque ganhamos para a gente e para uma nação. Então, é uma responsabilidade muito grande. Como título, certamente aquele pela Seleção Brasileira. Mas o que a gente leva é a amizade. Você vê, hoje, estamos aqui com vários amigos, pessoas que conheci muito depois. E estamos bem juntos. É isso que a gente tem que levar. E essa foi minha vida até quando jogava. Porque muitas vezes os jogadores pensam só no momento, ali, em que estão jogando, e esquecem que somos pessoas normais, seres humanos. Temos só uma oportunidade de representar um país, um clube cheio de torcida, de grande responsabilidade. Mas somos só pessoas normais, seres humanos.
Publicado hoje (27/03) na Folha da Manhã