Com um pouco mais de intimidade com o Facebook, sobretudo naquilo que é produzido fora da taba goitacá em tempos de crise tupiniquim, é possível encontrar e mergulhar em textos mais densos, bem abaixo do meio palmo de profundidade sobre o qual costuma flutuar a democracia irrefreável das redes sociais. No muito de lixo produzido sobre aprovação do impeachment da presidente Dilma Rousseff (PT) pela Câmara Federal no último domingo (17/04), garimpei dois textos que julgo irretocáveis.
O primeiro, aqui, é do jornalista Pedro Doria. O segundo, aqui, do diretor de operações da Conspiração Filmes, Ricardo Rangel. Mesmo que você, diferente de mim, não concorde com eles, exceção à reeleição defendida pelo segundo, tenha a certeza de que vale muito a pena conferir ambos:
Chamar de Golpe é um desrespeito
Por Pedro Doria
Domingo foi um dia terrível.
Com Fernando Collor, nos permitimos acreditar que um impeachment era motivo de festa. Não é. Collor foi atípico. O normal é essa ressaca que vivemos.
Impeachment é uma ruptura. Collor vinha do nada. O PT tem história. Representa uma longa tradição brasileira que deu quatro presidentes: Getúlio, Jango, Lula e Dilma. Tanto Lula quanto Dilma também foram marcos. Um operário brilhante. Uma mulher.
Mas o Mensalão aconteceu.
O Petrolão.
As pedaladas para fingir que o país estava bem durante a eleição. O governar tratando mal o Congresso. A crise econômica. O desemprego. A lenta migração de brasileiros da Classe C de volta à pobreza. (Já começa a aparecer nas estatísticas.)
Impeachment é uma ruptura.
Mas está sendo feito por um Congresso eleito. Igualzinho a presidente. O último lance, se ocorrer, será concretizado por um Senado presidido pelo presidente do Supremo. (Ou pela presidente do Supremo, se ocorrer no segundo semestre.)
Uma sessão para destituir a presidente da República ocorre perante os presidentes do Legislativo e do Judiciário.
Nenhuma lei terá sido quebrada. E tudo está previsto pela Constituição.
Pedaladas não são crimes de responsabilidade? Quem decide se são ou não são os senadores. A Constituição lhes outorga esta responsabilidade. Não é coisa única do Brasil. Impeachment é assim em democracias presidencialistas. O Senado decide se crime foi cometido. E, se ele decidir, está decidido.
O julgamento não é jurídico. É político.
É o único caso previsto na Constituição para um julgamento assim.
É claro que é uma ruptura.
É claro que Eduardo Cunha.
É claro que Michel Temer.
É claro que Jair Bolsonaro.
É claro que Renan Calheiros.
Tudo é claro. E essas pessoas têm mandatos legitimados pelo voto popular. Votos que têm, cada um, peso igual aos votos de Dilma.
Inclusive Michel Temer. Cada um de seus votos é idêntico a cada um dos votos de Dilma.
O jogo está sendo jogado dentro das regras.
Não gosta das regras? Pressione para mudá-las. Precisam mesmo de mudança. Sente nojo da política? Justíssimo. Bem-vindo ao Brasil, ele é assim faz algum tempo. Os deputados sequer sabem concordância? Lula tampouco sabia e, do ponto de vista da gestão, foi um presidente de alta competência. Bolsonaro é um fascista? É. Eduardo Cunha é corrupto? O acúmulo de evidências fazem parecer que sim. Ainda não foi condenado em última instância. Os deputados que nós escolhemos o escolheram. O STF não o julga? Não julga os outros parlamentares envolvidos na Lava Jato? Cobre do STF. Neste caso, Legislativo e Executivo nada têm a ver com a morosidade do Judiciário.
Tenha nojo à vontade do que ocorreu no domingo.
Pessoalmente, não tenho nojo. Mas carrego comigo uma baita tristeza. Uma sensação de fracasso retumbante, de desânimo, de olhar para tudo em que acreditei quando bem mais jovem e ter o Brasil como o Brasil é esfregado na minha cara.
Mas foi tudo legal, realizado pelo Legislativo, sob supervisão do Judiciário.
Chamar de Golpe é um desrespeito com todos os brasileiros que tiveram de enfrentar 1930, 1937, 1964.
A culpa é nossa
Por Ricardo Rangel
Sou a favor do parlamentarismo, do voto distrital misto, da cláusula de barreira, da criminalização do caixa dois e do estabelecimento de um teto para as contribuições de empresa (não sou a favor de sua proibição). Sou contra o voto obrigatório e contra o financiamento público das campanhas eleitorais. Não sou contra a reeleição, mas precisamos de mecanismos para coibir o uso da máquina governamental.
Não acredito, entretanto, que qualquer das medidas acima vá melhorar significativamente a qualidade de nossos políticos ou de nossa sociedade. Como vimos na votação do impeachment, nosso sistema político é melhor do que imaginamos e melhor do que merecemos: o Congresso Nacional é um retrato fiel da sociedade brasileira. Vi muita gente chocada com o baixo nível de nossos parlamentares, mas a mim o que choca é que tantos só tenham se dado conta disso agora.
Conheço gente de tudo o que é tipo, a grande maioria inteligente e relativamente bem informada. E que rotineiramente anula o voto; que não lembra em quem votou na última eleição; que defende intervenção militar (em alguns casos, “constitucional”); que vota em Bolsonaro; que votou em Eurico Miranda; e muita, muita gente que pretende votar em Lula em 2018, a despeito do mensalão, do petrolão e da recessão; tem gente até que leva Jandira Feghali a sério. Em geral, recusa-se a se reconhecer como elite (mas é) e reclama, com razão, que os políticos brasileiros não prestam.
Vimos um partido organizar e institucionalizar a corrupção no mensalão, de maneira a pôr o Legislativo na folha de pagamento do Executivo, num atentado à democracia, mas o reelegemos assim mesmo. Vimos esse partido fazer tudo errado na economia durante quatro anos, mas nos enganamos achando que tudo ia bem, e o elegemos uma terceira vez. Vimos a cúpula desse partido ir para a cadeia pouco antes de a Lava-Jato desvendar um novo e ainda maior escândalo de corrupção ao mesmo tempo em que a recessão se mostrava grave e inevitável, mas optamos por acreditar em um amontoado de mentiras, e elegemos, pela quarta vez, o partido que nos levava à ruína.
Alguém dirá, corretamente, que o principal problema é a Educação. Estamos todos, à direita e à esquerda, de acordo que a única coisa que pode nos tirar do subdesenvolvimento é a Educação, mas mantivemos no poder um partido que, durante doze anos, nada fez pela Educação e ainda apoia professores que afirmam que o ensino é ruim por culpa dos alunos e lutam com unhas e dentes contra a implantação da meritocracia no setor.
Agora olhamos para o futuro negro, repetimos que “o Brasil não merecia isso” (ora, se não merecia) e procuramos, como tontos, em quem pôr a culpa. Não, a culpa não é do PT. Nem dos políticos, nem dos partidos, nem de Dilma, nem de Lula, nem do Obama, nem da CIA, nem do neoliberalismo, nem da globalização. Nem do FHC. A culpa é nossa.
“Não perguntes por quem dobram os sinos. Eles dobram por ti.” (John Donne)