Sugestão para escutar enquanto lê (Youtube): Oração aos Orixás – José Siqueira
https://www.youtube.com/watch?v=w9X_6Pn2RB0
“Se todos os insetos desaparecessem da Terra, dentro de cinquenta anos toda a vida desapareceria. Se todos os humanos desaparecessem da Terra, dentro de cinquenta anos toda a vida floresceria.”
(Jonas Salk, 1914/1995)
Vi a mão de minha mãe cortar o vento apontando ao longe o rio banhando a terra até onde meus olhos não podiam alcançar. Os pássaros cantavam e dançavam sob o sol escaldante enquanto eu brincava e corria me afundar nas imensas águas límpidas. No caminho ia cumprimentando as árvores que mais gostava, colocando apelidos como fazia com os bichos, mas havia tantas árvores quanto grãos de areia e nem sabia se as que cumprimentava eram as apelidadas. Sentia as pedrinhas bem pequeninas beliscando meus pés a cada passada forte dada em direção ao rio.
Perto de mim, numa trilha da floresta, ouvia os rapazes vangloriando Pedra do Sol por ter deixado na beira da praia um enorme tubarão pego no braço, enfiando tão forte um pedaço de pau boca adentro do bicho e arrancando com a mão suas entranhas. Havia tanta fartura de comida, pois nem se importaram em levar o belo tubarão para casa, arrancaram-lhe os dentes lá mesmo e amarraram bem forte na madeira de suas flechas com tiras de couro bovino. No caminho de volta pra casa colheram ervas venenosas e caminhavam passando o veneno nas pontas das flechas, como sempre faziam.
Na tribo, vi o alvoroço que foi quando os garotos chegaram carregando um objeto estranho, até então nunca visto. Era um pedaço macio, aparentando couro, mas era suave como algodão e tinha alguns buraquinhos como se tirinhas bem fininhas de algum tecido fossem se enrolando uma na outra até resultar naquele objeto. Era avermelhado e tinha quatro buracos grandes, sendo um maior embaixo, um menor em cima, e um em cada lado de tamanhos iguais. Os meninos haviam achado no caminho de volta para a tribo e vinham animado com a nova descoberta, enfiando o corpo dentro, que ficava todo tapado. Logo começou a correria com outros querendo enfiar o corpo naquele pedaço de coisa esquisita. Quando olhei para o cacique de nossa tribo, meu sorriso saiu sem perceber, enquanto a fogueira soltava fiascos de madeira acendendo a noite cacique olhava preocupado, provavelmente imaginando quem trouxe aquela peça para tão perto de nossa aldeia.
Durante todos os dias seguintes as rugas do rosto de cacique estiveram intactas, sem expressão, o que angustiou aos mais velhos da tribo, enquanto os mais novos continuavam brincando com o objeto desconhecido. Não demorou para a preocupação se materializar, após doze luas todos os rapazes começaram a pipocar. Suas peles criaram tantos caroços cheios de uma coisa amarela que se punham a sangrar enquanto eles coçavam sem parar, era feio de ver, ficavam tão quentes que era possível sentir o calor quando se aproximava deles. Logo todas as suas famílias começaram a ficar do mesmo jeito e cacique teve certeza do demônio que fora trazido com aquela peça. Fizemos uma fogueira, queimamos até o último fio e depois enterramos o local para que não sobrasse nada. Cacique também proibiu todos nós de aproximarmos dos mordidos pelo espírito ruim. Eles ficavam afastados, numa área delimitada pelos mais velhos da aldeia. A maioria de nossos guerreiros estavam possuídos, logo começaram a morrer, morte muito feia, como se a pele quisesse fugir do corpo.
Não demorou para que os demônios se personificassem, no amanhecer de um dia triste colocamos nossos ouvidos na terra para sentir um batuque tão forte que nunca ouvíramos, até o vento estava diferente, tinha cheiro esquisito. Cacique mandou todos os guerreiros se juntarem, mas haviam muitos possuídos, que o demônio não deixava guerrear. Logo o fim da vista ficou todo borrado de tanto cavalo e gente esquisita montada, todos com o peito tapado de peça que trouxe os espíritos ruins e bradando uma vara pontiaguda de metal. Estávamos muito doentes para lutar contra os espíritos ruins, mas não arredamos pé, éramos conhecidos pela bravura, erguemos o peito e avançamos.
Oh Tupã, quanta tristeza. De pele estourando, nossos guerreiros chorando, nossa honra foi degolada antes que os demônios chegassem até nós.
Oh Tupã, quanta tristeza. Ver meu pai, sinhô, com uma lança atravessada no pescoço. Quanta tristeza, quanta tristeza, chorar a minha mãe menina com buraco nas costas da explosão de vida finda.
Sentada ao lado da minha mãe menina eu vi todo o meu povo morrer, os mais fortes e que não foram possuídos, eram acorrentados. Eu gritava até acabarem as lágrimas, até a voz ir tão longe pra Tupã escutar, fui a única criança a sobreviver. Me acorrentaram junto dos moços, e chorei mais quando deixei os corpos ainda quentes dos meus pais e de meus amigos com um olhar indiferente pra mim. Caminhamos muito, e quando não aguentei um dos guerreiros me carregou no colo.
Quando paramos de caminhar vimos uma enorme construção de barro branco nunca visto, com cercados de madeiras que não entendíamos pra que, mas era bonito de ver, e vários buracos também com madeira nos seus entornos. Lá de dentro saiu um casal com peças grandes do espírito ruim, a pele era clarinha tanto quanto o barro branco e tinha mais um monte de pele bem escura e cabeça baixa. Somente os espíritos ruins riam, os que ficavam próximos entristeciam. Todos da minha tribo sabiam que estávamos defronte ao monstro para qual sempre pedíamos a Tupã nos afastar, mas Tupã deve estar com a pele pocando também ou deixou de gostar d’a gente.
Sentimos medo quando os demônios desceram da construção e vieram até nós com os tristes carregando uma coisa circular fazendo sombra pra pele doente. Apertou a gente nos braços, abriu a boca pra ver os dentes e quando chegou a mim, parou, abaixou, acariciou meus longos cabelos lisos. Eu tentava me esconder atrás da perna do guerreiro e ficava brava d’eles não guerrearem, não entendia que estavam cansados e lhe foram roubada a dignidade. O espírito ruim me puxou e apertou meu corpo, não entendia por que ele me apertava naqueles lugares enquanto a mulher com a boca tão vermelha e viva, que parecia carne sangrenta em vez de beiço, me olhava com tanto ódio que teria qualquer bicho com o beiço sangrando.
Os moços da minha tribo foram para uma oca quadrada grande de madeira muito feia e suja, vi quando eles foram jogados com chutes ainda acorrentados e percebi que espírito ruim não tem honra. Queria ficar junto da minha tribo, mas fui a única a ser separada. Gritei muito antes que me pusessem num cômodo frio, sem buraco de madeira, todo escuro e ali eu me agachei e esperei Tupã, montado no trovão, vir buscar seu chão. Mas quando tudo escureceu, quem apareceu foi o demônio carregando o fogo na mão, que saía de uma vareta branca.
Todas as noites com o dente rente eu gritava
Sou Filha da Natureza
Tire de mim essa corrente
Meu corpo é goitacá
E não crescerá sua semente!
Nunca cheguei a conhecer minha beleza, desde pequena fora usurpada, agora tantos anos sem ver o sol, ainda grito enquanto o demônio aperta minha cabeça contra o barro branco todas as noites:
Sou Filha da Natureza…
Grito enquanto minhas lágrimas mancham as mãos que me apertam
Tire de mim essa corrente…
Grito enquanto me falta o ar pelas batidas na minha barriga
Meu corpo é goitacá…
Grito enquanto sou preenchida de veneno
E não crescerá sua semente…
E quando o espírito ruim vai embora carregando a luz na mão, deixando a escuridão, meu corpo escorre no barro até meus joelhos dobrarem encharcados das sementes do pele doente, e meu desejo de ver o sol grita com as minhas unhas grandes cortando a pele da palma da mão AHHHHH com os punhos cerrados AHHHHHHHH com os seios machucados AHHHHHHHHHH com as lágrimas em cascatas AHHHHHHHHHHHHH até meus cabelos saírem nas mãos AHHHHHHHHHHHHH.
Quando o último brilho da minha pele foi ofuscado, quando restaram apenas as cicatrizes e as rugas, quando toda a minha beleza se esvaiu, fui posta ao campo para trabalho, já moça. Ao ver o sol e toda a paisagem minha vista virou apenas um borrão, havia esquecido de como era e logo depois podia ver os detalhes a distância, me encantava com cada curva do mato, com as carícias do capim no meu corpo tão maltratado. Percebi meu rosto molhar, eram as lágrimas vindo olhar também. Ainda podia reconhecer alguns dos guerreiros da minha tribo, já velhos, puxando cana junto com os burros. Eram poucos, muitos morreram.
Como meu corpo estava fraco, me colocaram para colher algodão, mas o sol era quente e havia desacostumado, minha pele estava tão sem cor que cheguei a pensar se já não estava morta também. Os primeiros dias foram duros, mas logo meu corpo se acostumou a toda aquela luz. Os pés de algodão ficavam ao lado d’onde fiquei tanto tempo trancada, o que me fazia tremer sempre ao chegar os pés de algodão mais próximos. O espírito ruim que sangra pelo beiço sempre fica a me olhar que parece o sangue subir para os olhos. Depois olha para o demônio da mesma maneira enquanto ele também me olha. Eu tentei por vários dias compreender aquele sentimento, mas não consegui entender, é tudo tão diferente, tentei falar com um dos tristes, moço por que essa gente é tão demente, mas das nossas bocas saem sons diferentes e ninguém me entende, só os da minha tribo.
No dia seguinte, enquanto colhia os algodões, o espírito que sangra pela boca desceu e veio até mim, me rodou, me olhou, e foi-se falar com o outro espírito de couro na cabeça protegendo a pele doente do sol e um chicote pra bater no meu povo quando estivermos cansados. Eu não entendia o que diziam, tampouco eles me entendiam. O espírito de couro na cabeça não parava de me olhar enquanto ela falava, todos me olhavam com raiva e eu não entendia. Oh, Tupã, quanto ódio nasce nesse povo!
Naquela noite o espírito de couro na cabeça me levou para a construção de madeira que eu passara a dormir desde então, apoiou o fogo da mão num toco ao lado e me empurrou para a parede, tirou uma faca, apertou em meu pescoço, e enquanto meu sangue jorrava eu disse minhas últimas palavras, feliz por voltar pra minha terra:
— Meu sangue cai onde é meu lar.
Vá se embora d’aqui moço, não é seu lugar.
Logo após a minha morte, foi tanta dor, tanta dor, tanta dor, meu sinhô, que os antigos guerreiros da minha tribo junto com os tristes não suportaram tanta dor, de peito exposto enfrentaram todos da construção de barro branco e conseguiram sua honra de volta. O casal de espírito ruim foi encurralado e morreram antes de medo, Pedra do Sol enfiou-lhe um pedaço de pau tão forte boca’dentro e arrancou-lhe as entranhas com a mão. Muitos dos tristes e da tribo morreram no confronto, os poucos que restaram morreram logo depois de doença diferente. Anos depois, seus corpos adubaram o solo e deles nasceram lindas flores que harmonizaram o barulho dos rios límpidos, dos pássaros livres… a paz… jaz… az… z… .:.
A gente costuma dizer com orgulho que somos guerreiros, que somos goitacás… mas não somos não. Somos o demônio, somos, fomos o mal. Nós exterminamos um povo livre, como pisamos hoje numa barata, como se insetos fossem… Nós somos a crueldade. E por qual razão fizemos? Talvez por pura inveja por no fundo sabermos que não éramos livres de verdade e eles sim. Fizemos porquê quisemos, pois somos a maldade e o mal, acha que tudo pode. Depois, séculos depois, numa pífia tentativa de expiar nossas culpas, numa redenção que nunca virá, mudamos o nome dos campos que não eram nossos, dos campos, da planície da qual nos apossamos, a ferro e fogo e varíola, mudamos para Campos dos Goytacazes, com um ipsilone, para dar uma falsa impressão de nobreza, tudo hipocrisia, pois os campos nunca serão nossos, sempre serão de quem é por direito, mas que aqui não mais correm, pois os exterminamos de forma cruel, hodienda, terrível e nunca disso fizemos a mea culpa. Mas o Fabio Bottrel, meu querido Aluysio Abreu Barbosa veio aqui e nos esfregou na cara, as lembranças que ocultamos pois nos envergonham ou deveriam envergonhar, se vergonha tivéssemos e, de alguma forma, me lavou a alma, mas não expiou a nossa culpa, pois essa carregaremos até o fim de nossa vã existência. Eu fiquei, para variar, impactado com o que li.