Quando pela primeira vez adentrei o Cineclube Goitacá, reduto dos intelectuais campistas, senti o sorriso se mostrar no canto da boca sem minha autorização. Havia chegado cedo e vozes excitadas exaltavam pensamentos sobre a peça de teatro Em Nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo. Sentei-me ao lado de Luiz Fernando Sardinha para escutar Marcelo Sampaio, Paulo César Moura e Antonio Luiz Baldan discutir questões existenciais inerentes à sociedade de consumo expostas na dramaturgia de Paulo Pontes, autor da peça escrita em 1962. Logo tiveram a ideia de fazer alguns exercícios teatrais baseados na peça, os quais participei e foi o pontapé para a minha iniciação ao espaço até altas horas da noite com sorrisos carregados de teatro, cinema e observações psicanalíticas de uma vida que vale a pena ser vivida. Além disso, toda minha gratidão é pouca pela honra de apresentar um filme na próxima quarta-feira, dia 18 de maio, no Cineclube Goitacá e aqui estendo o convite a todos, um convite também à empatia.
Lars and The Real Girl, lançado no Brasil em 2007 com o título A Garota Ideal, escrito por Nancy Oliver, roteirista indicada ao Oscar e direção de Craig Gillespie, é um drama disfarçado de comédia e uma aula de construção de personagem. Trata-se de um jovem com graves problemas de sociabilidade ao encontrar uma missionária religiosa, Bianca, que aos poucos extingue as inadaptações sociais, transformando sua vida. Acontece que Bianca é uma boneca de plástico adaptada ao sexo, mas isso a torna menos real? Lars pensa diferente, de fato, só começou a viver após tê-la conhecido. Tal ideia é exposta no início do meu primeiro livro ARC – Academia de Roteiros Cinematográficos, lançado na Escola de Cinema Darcy Ribeiro em 2013 e adaptada a experiência do texto abaixo:
A morte marca o renascimento.
Pelo conceito usado na Roma antiga, onde morte significa deixar de estar entre os homens, Lars estava morrendo antes mesmo do corpo padecer. Privar-se do espaço e pessoas norteadoras de sua vida é privar-se da própria existência, pois extinguirá a aparência e o particular por si só não provê realidade. Bianca aparece como um guarda-volumes de todos os seus anseios e uma rota de fuga para quem deseja viver de novo.
Conseguimos sentir empatia por Bianca pelos sentimentos provocados em Lars, pois são comuns a relacionamentos, identificáveis a nós. Essa representação fê-la parecer humana, semelhança que por si contém a diferença (se fosse igual não seria semelhante) dos humanos semelhantes a Deus. Não que exista um divino, mas do conceito de divino cujos mortais conseguem expressar criando fatos imorredouros transcendentes da sua existência. Tal como Deus, alcançam a sua imortalidade. Enquanto os humanos satisfeitos com o que a natureza e vida lhes oferecem, vivem e morrem como animais. Essa ideia defendida por Heráclito, apesar de pouco difundida por filósofos pós-socráticos, teria feito muita diferença se algumas religiões não imbuíssem o ser humano com a ideia da semelhança a Deus pelo simples fato de ter nascido. O que nos preenche de uma cultura resistente e não progressista, possibilitando o homem se eximir de suas próprias ações e culpa, transformando uma nação em conformistas. Uma pessoa imersa em uma cultura resistente ao fazer uma prova e não passar, por exemplo, a causa não é por insuficiência de estudo, devendo maiores esforços para a próxima, foi porque Deus não quis, então ela se conforma. Uma pessoa imersa em uma cultura progressista assume as responsabilidades dos seus atos, analisa, tem ciência da sua falta por não ter estudado o quanto deveria e pensará numa solução para a próxima.
Bianca não podia construir fatos perpetuadores da vida que lhe representariam após sua partida, mas pôde, com ajuda de Lars, dar sentimentos, possíveis somente em detrimento do contexto onde estava inserida. Esses sentimentos assemelham-na aos humanos comuns, uma construção abstrata a dissipar com o tempo, até a morte dos cativados.
Por mais que os dedos cocem para escrever, seria uma pena estragar a parte mais impactante do filme, onde a magia do cinema acontece: o espectador ao perceber que a vida da personagem não é em vão, portanto a dele tampouco. O nome desse sentimento é empatia, mais próximo de “eu sou você” e diferente de simpatia, mais parecida com “eu quero te ajudar”. Simpatia possui compaixão, mas não envolve a paixão da empatia,que nos faz viver as circunstâncias como se estivesse em nossa pele.
Empatia é o que sentimos ao assistirmos um filme e nos comover. O conceito veio justamente da arte, onde o ator, transfigurado, permite à plateia embarcar nessa ilusão como se alguém a tivesse colocado ali, dentro da cena. No entanto, vai além da ilusão, é a emoção gerada pela imagem. Para Freud, empatia é o mecanismo por meio do qual somos capazes de tomar qualquer atitude para outra vida mental. Para Jung é uma projeção a fundir o visualizador do visualizado. Nela descobrimos nós mesmos no objeto de contemplação, diretamente ligado à experiência de vida de cada indivíduo à leitura, discussão de narrativas, pinturas etc. Todas essas experiências contribuem para o discernimento de mundo particular — o qual discernimos o objeto contemplado do todo que ele está incluído — e sentimentos pessoais aflorados de acordo com a vivência de cada um. Sem sentimentos não há empatia, ela é como um radar social nos permitindo entrar na pele do outro, ser o outro sem deixar de sermos nós mesmos.
É imprescindível criar laços de confiança e compreensão com o espectador para ele se entregar à história e se sentir inerte na essência da obra contemplada. É preciso identificar e entender o público-alvo ao qual direciona o roteiro para responder aos seus pensamentos e sentimentos com uma emoção apropriada. E nessa resposta está incluída a verossimilhança. Se numa narrativa é estabelecido que um carro pode voar a 300km/h, é melhor não vermos nenhum carro voando abaixo dessa velocidade sem uma explicação prévia.Se isso acontece nos sentimos trapaceados e perdemos a confiança em quem nos conta a história. Em um roteiro estabelecemos regras que compõem a verossimilhança do mundo criado, nelas está o vínculo com o público. Quebrar essas regras significa cortar os vínculos com a plateia.
Determinadas imagens nos provocam fortes sentimentos mesmo isoladas do contexto da obra. Mas nunca isoladas da nossa percepção de mundo, que por si só contextualiza automaticamente — embasada nas nossas experiências e vivências — as imagens contempladas. Desse modo, conseguimos identificar as emoções em rostos sorrindo, chorando, nervoso etc.
Pegue a foto de uma pobre senhora com as roupas esfarrapadas, moradora de rua, sentada à beira de uma calçada pedindo esmola como exemplo. Nosso cérebro conecta automaticamente a senhora da foto a alguma história triste ou pessoa similar que tenhamos passado pela rua. Percebemos a pobre velhinha à espera de ajuda com algumas moedas, e isso nos indica a possibilidade de fome, frio, dentre outras coisas. A gama de sentimentos ao contemplarmos a figura deriva do contexto da narrativa criada mentalmente, amparada pelas nossas experiências de vida similares, bem como o entendimento do que se passa com a pessoa na fotografia. A intensidade dos sentimentos depende da intensidade de nossas vivências.
Algumas imagens têm a capacidade de levar a sentimentos extremos pelo simples fato da perspectiva, isso acontece ao ver algum filme cujo personagem está prestes a cair de uma grande altura e a câmera nos permite visualizar do ponto de vista do personagem, como em Um Corpo que Cai de Hitchcock.Se adicionarmos uma qualidade essas imagens concretizam um drama por si só, como o homem à beira do precipício ser cego ou a pessoa em cima dos trilhos de um trem prestes a passar em alta velocidade é um bebê.
Empatia ocorre quando suspendemos nosso único foco de atenção e adotamos um duplo foco de atenção, essa habilidade permite identificar o sentimento ou pensamento de outra pessoa. E dessa habilidade surge a capacidade de fazer o outro se sentir valioso, pois a resposta fará com que ele sinta seus anseios escutados, reconhecidos e respeitados. Empatia permite fazer bons amigos.Suspender o único foco de atenção significa deixarmos de pensar somente em nossos próprios interesses e analisarmos os sentimentos e emoções de outra pessoa, ao mesmo tempo que fazemos isso com os nossos.
Enfim, gostaria muito de te encontrar quarta-feira às 19h no Cineclube Goitacá para conversarmos mais!
Entrada franca.