Fabio Bottrel — Bata forte, artista, como os anos pela vida!

 

Sugestão para escutar enquanto lê: Silêncio – Ludwig Van Beethoven

 

 

 

 

O Terapeuta, de René Magritte
O Terapeuta, de René Magritte

 

Estalava o ventilador numa noite tão quente do ar machucar o pulmão. Com um violão, a esperança na mão, no palco do Teatro de Bolso um artista dormiu, e ao dormir sonhou que era um pássaro. Bateu as asas forte, tão forte, muito forte! E subiu, subiu, subiu. Achou uma fresta num cano escuro, entrou e voou além do teto, subiu, subiu, subiu, viu, toda a cidade iluminada, a ponte verde ao lado do abandono rosa. Enquanto o vento frio soprava no seu bico, sentia o pequeno coração bater acelerado com as asas abrindo altas e donas do céu estrelado atrás de si, sentia o ar entre as penas, a vida longe de ser pequena. Do alto viu sua morada, no telhado do teatrinho, um velho ninho amassado e usurpado por predadores ao longo do tempo. Ali estavam seus filhos gritando, aproximava-se uma trupe de aves de rapina para roubar-lhes a casa. Desceu com toda a força, bateu forte as asas como batem os segundos no tempo, desceu, desceu, desceu enquanto o vento passava como passam os anos pela vida o levando há 48 anos atrás…

…Ainda era sua primeira muda de pena quando levava alguns pedaços de palha no bico para construir um aconchegante e pequeno ninho no telhado do teatrinho, escutava as vozes de Gilda Duncan, Rubens Fernandes, Nely Fernandes, Paulo Roberto, Romilda Nunes e Odilon Martins ecoarem e chegarem aos seus ouvidos através da pequena fresta do cano no teto enquanto a cidade iluminada observava a primeira peça no Teatro de Bolso, onde construiu sua casa às vozes de A Moratória, em 15 de abril de 1968. Sentia nas patinhas os tremores dos aplausos, olhava as ondinhas que o vento fazia no rio Paraíba, arrumava palha por palha alinhavando seu ninho e depois empoleirava-se no muro para ver todo o mundo ir embora, quando o último ia, voltava para sua casa, ficava a observar as estrelas até seus olhos fecharem…

De manhã bateu as asas como batem os segundos no tempo, o vento passava como passam os anos pela vida e após 7 rajadas quebrou a asa num tronco soltando 26 penas no Boulevard Francisco de Paula Carneiro. Banhou seu canto com silêncio, não haveria mais dança nesse terreno, corpos ao relento, sua árvore fora cortada. De peito estufado, que pássaro da arte não se dobra com a dor, viu seu coração ser demolido, pétala por pétala, pena por pena. Ali ficou, demorou, caminhou, voltou para a sua casa, no telhado do Teatro de Bolso, chorou. O tempo derramou três lágrimas de silêncio enquanto a pele do pássaro enrugava, em agosto de 1978, na solidão de seu ninho, pôde voltar a admirar o canto dos atores ecoando pela fresta do cano no telhado, anunciando O Pagador de Promessas de Dias Gomes, numa montagem com Orávio de Campos enquanto o mar de luzes da cidade era o holofote do seu palco. Nesse mesmo dia, um passarinho com cores tão vivas que mesmo no escuro pareciam brilhar pousou no muro do telhado e ficou a olhar, imaginar, enquanto ouvia Marisa Almeida e Roberta Nogueira cantar, dançar nas ondas sonoras do ar. O passarinho se aproximou e o pássaro da arte curvou sua cabeça na alegria de ser, um dia, a saudade de alguém. O passarinho colorido subiu ao ninho, se aconchegou, asa com asa, pena com pena, protegeram-se do frio dobrando as patinhas dentro do ninho, e de que importava o mundo se estavam juntos?

Bateram as asas como batem os segundos no tempo, o vento passava como passam os anos pela vida e no silêncio costumeiro do frio alienador o pássaro voltou para a casa e viu três ovos, que foram se romper com a trilha sonora de poesias nas vozes de Osório Peixoto, Fernando Rossi, Adriano Moura e Kapi em 27 de março de 1991. Nasceram, filhos da poesia e das cores, filhos das vozes eternas que ecoam no vazio das reles rouquidões. Com a alma dos artistas moldaram seus cantos.Cresceram, pássaros da planície imensa, da angústia imensa, da luta imensa, densa, seus cantares pediram bença à arte.

A vida era boa naquele teatrinho, brincavam de descer na fresta do cano no telhado e se empoleiravam ao lado dos refletores que iluminavam o palco. Olhavam os artistas ensaiarem com o coração a vapor, voavam entre eles como um balé encenado, sapecavam de poltrona em poltrona até saírem pela janela para continuarem as brincadeiras nas árvores da avenida 15 de novembro. À noite iam se aconchegar, os três filhotes e os pais dentro do ninho, e ver toda a cidade aplaudir os atores que antes encenavam para as cadeiras vazias.  No eco de suas almas bateram as asas como batem os segundos no tempo, o vento passava como passam os anos pela vida levando a 2014…

…Desceu, desceu, desceu! Enquanto batia forte as asas para proteger sua família, lembrava de ter visto os pássaros dissimulados nos entornos, aves de rapina com pele de cordeiro, chegaram até a sua casa pelo inverno, comendo as últimas folhas das árvores que morreram sufocadas. Ouvindo seus filhos gritando enquanto tentavam se defender, batia as asas até quebrá-las de tanta força, desceu, desceu, desceu! Com o bico afiado enfiou no olho da primeira ave que viu, mas eram muitas, e viu, seus filhotes mortos no bico da ave maior, carregados e dissolvidos na noite. Enquanto lutava, suas penas foram arrancadas uma por uma, olhou seu companheiro se debater sem vida no cimento frio do telhado enquanto as cores se tornavam apenas vermelho. Machucado, o pássaro da arte apoiou seu bico no cimento áspero ao lado do pescoço aberto de quem agora é sua saudade, e dormiu. Ao dormir sonhou que era um artista, no centro do Teatro de Bolso, em meio ao silêncio campista, segurava um poema de Eduardo Alves da Costa, com os braços abertos e o pulso sangrando recitava fragmentos da alma para a plateia de cadeiras vazias:

 

“Na primeira noite eles se aproximam

e roubam uma flor

do nosso jardim.

E não dizemos nada.

Na segunda noite, já não se escondem;

pisam as flores,

matam nosso cão,

e não dizemos nada.

Até que um dia,

o mais frágil deles

entra sozinho em nossa casa,

rouba-nos a luz, e,

conhecendo nosso medo,

arranca-nos a voz da garganta.

E já não podemos dizer nada.”

 

— Bata forte, artista, como os anos pela vida! — Gritou uma voz sem corpo no meio da escuridão. O artista não teve medo, ocupava sua casa com o coração e a alma abraçada às de outros artistas — cujo tempo já havia levado o corpo — sonhando com o dia em que ali ganhará seu pão.

— Meu bem, não se culpe tanto com o tanto de alma que és feito. Tire do seu rosto essa gordura dos três anos de solidão, tudo na vida deixa de ser, mesmo você. — Disse a atriz ao caos dentro do ator.

Ele correu para a coxia, arrumou-se rápido, era dia de peça na ocupação e sua voz não mais silenciada será escutada. De peito nu, no dia 15 de maio de 2016 o ator abriu os braços ao lado de Yve Carvalho e José Carlos Rosa enquanto encenava a peça Pontal, montada por Kapi. Com o corpo em cruz bateu forte no peito, como batem os segundos no tempo, o vento passava como passam os anos pela vida e quando o grito dos três anos perdidos bateu à porta, acordou!

 

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Este post tem 2 comentários

  1. SÉRGIO PROVISANO

    Sim, sim, como não se emocionar? Fernando Crespo Rossi, meu querido e dileto Fernandinho, se emocionou e não é para menos, Fabio Botrell… Dizer que o texto encanta, seria o mesmo que chover no molhado, é mais que encantador, é apaixonante, enreda… Dizer para o Aluysio Abreu Barbosa, o meu também querido Aluysinho, que nos enriquece com o Opiniões, trazendo essas pérolas culturais e enchendo de vida inteligente o deserto das redes sociais, também nada mais é que chover no molhado, é para este pobre comentarista, chover no molhado. Ele também é suspeito para falar, pois já elegeu o Fabio, como um Escritor Maior e adora as sugestões de trilha sonora que o Aluysinho propõe, elas se encaixam como luvas de pelica aos textos… Meu coração palpita, bate, como bate as asas do pássaro ferido, como batem os segundos do relógio da vida e da morte. A morte da Cultura que outrora houve lá num Teatro, que cabia no bolso de cada um de nós, que morre cada vez que o poder engessa o livre pensar, a Arte, pois enquanto houver Arte, haverá Vida, mas isso, os poderosos não querem, eles querem a escuridão, eles querem a ignorância e não podemos permitir que isso aconteça, não podemos deixar que isso ocorra, somos pássaros soltos e eles, “os poderosos”, podem ser muitos, mas não sabem voar…

  2. Savio

    Um texto com importantes simbolismos, provavelmente ditados pelo inconsciente do autor. Achei fantástica a alusão à ave da Arte, mas ao adentrar e emoção conduzida no fio das palavras, tremi: Percebi que no mesmo espaço, comparecia outra ave, mas de rapina.

    __Para sobreviver, vamos unir bem-te-vi, beija-flor, andorinha, aves que não temem à ave de rapina e a enfrentam e sempre vencem!

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