Quando Muhammad Ali morreu, na noite de 3 de junho, alguma coisa em mim se quebrou. Talvez porque Ali fosse a maior referência ainda viva do meu pai sobre mim. Não por outro motivo, escrevi sobre ele (aqui), no artigo do domingo seguinte. E depois aqui, na terça sequente, para anunciar a exibição e debate do documentário “Quando éramos reis”, de Leon Gast, sobre a disputa de título entre Ali e George Foreman, em Kinshasa, capital do Zaire, hoje República Demorática do Congo, pulsando no coração da África e no Cineclube Goitacá.
Após o filme, na última quarta (aqui), em meio ao debate, confesso que o mais comovente, para mim, foi perceber o poeta e jornalista Ocinei Trindade em meio às lágrimas, pelo que acabara de assistir. Longe de um entusiasta, como eu, do mundo das lutas, o pranto alheio (e comum) confirmou aquilo que o comediante judeu Billy Crystal disse (para quem entende inglês, aqui) no belo discurso funerário sobre o mitológico campeão de boxe, seu “big brother” muçulmano: “Ele tinha a capacidade de extrair, sempre, o melhor de todos nós”.
Lembro que, no correr do debate, Ocinei comentou que o título do filme era equivocado: “Com B. B. King, James Brown, George Foreman e Muhammad Ali, o nome desse filme não deveria ser ‘Quando éramos reis’, mas ‘Quando éramos deuses’”. Como entre os antigos gregos que criaram o pugilato e uma tal Civilização Ocidental, aqueles deuses descidos em 1974, na África que pariu o homem, eram mais divinos, justamente por humanos.
Nos versos escritos hoje (aqui) pelo poeta, a intersecção que há entre homens e deuses:
Quando Muhammad Ali me fez chorar
Não era só um filme, era uma vida.
Não era uma despedida, era um encontro.
Não era só uma luta, era missão.
Não era só uns milhões de dólares, era tudo.
Não era só um espetáculo, eram ossos e músculos.
Havia sangue e suor escorrendo pelo meu corpo.
Existe ainda alguém desafiando deuses e heróis?
Senti um aperto no peito, desses que corrói.
Destruir gigantes no Olimpo não é fácil.
Imagina só o Titã que sabe na alma onde dói.
Toda a beleza que sua realeza invoca.
Não sei bem o que provoca aqui dentro.
Só sei que estou dentro de um ringue de lutas.
É uma estranheza assim meio filha da puta
que não quer me parir, não quer sair, nem partir.
Desconfio que Muhammad Ali é um puro pretexto.
Serve para me levar aos lugares sombrios onde nunca vou.
Ajuda-me a imaginar o rei ou o homem que eu sempre sou:
Vencido, desiludido, impedido, sentido.
Amargurado, angustiado, atribulado, atrelado ao show.
Quando o outro importa mais que eu, onde me ponho?
Um mundo cercado de mediocridade e casebres medonhos.
Não sei bem onde se esconderam aqueles antigos e alegres sonhos.
É uma multidão a repetir palavras, frases e sons enfadonhos
Um homem tristonho e vazio não merece muito além de rima feia.
Chicoteia a minha pele que não para de ressecar e murchar.
Será que a velhice não passa de uma outra combatida ilusão?
Percebo mais perto a morte rondando o jardim sem flores.
Pressinto, decerto, a vida mais ávida por idiotices e dissabores.
É a melancolia, sim, instalada entre o umbigo e a garganta.
Não sei se adianta muito eu chorar ou lágrimas disfarçar.
Só sei que ali diante de Ali, eu me senti ainda mais diminuído.
Fui engolido por todos os fanáticos estúpidos maometanos.
Fui devorado por todos os cristãos imbecis e profanos.
Fui esmagado por judeus intolerantes, gananciosos e insanos.
Antes de estar ali com Ali, encontrei Jesus no templo.
Não muito tempo ali permaneci, mas sei que o vi e ele a mim.
Estava disfarçado em mortalha e capuz escondido atrás da palavra.
Pediu para que eu orasse e não me comportasse como hipócritas exibidos.
Obedeci, mas depois, talvez, percebi que não o atendi tão bem assim, remido.
Eu menti para os meus seguidores e seus fingidores.
Omiti a verdade de mim mesmo provavelmente, receio.
Clamei ao Tempo uma pausa, uma outra ilusão, mas ela não veio.
Talvez precisasse de uma mão sem luvas para me esbofetear.
O soco de Ali para me nocautear além do Oceano e eu afogar certeiro.
Creio que todo aquele gozo foi deveras insuficiente para toda a gente.
Deveria eu ter sido bem mais pecador e, quem sabe, ainda mais indecente.
Poderia me desnudar inteiro, sóbrio ou ébrio, pelas ruas de Kinshasa.
Não fiz tudo, nem tudo chorei, nem toquei Maomé, nem Jesus, nem Ali.
Voltei sozinho e tocado por eles para a casa onde moram palavras cheias de si.
Campos, 17.06.2016
Caramba, Aluysio! Que coisa forte este seu texto, o poema, tudo! Com a mais absoluta certeza, o velho Aluysio está sorrindo e apreciando o seu amadurecimento poético e a sua sensibilidade. Meus sinceros parabéns!
Caro Savio,
Grato por sua generosidade de sempre e pela menção a Aluysio Barbosa, o Bom, que me legou em vida a paixão por Ali. Mas, só para deixar claro, o poema é do jornalista Ocinei Trindade.
Abç fraterno!
Aluysio
Eu me declaro, meu querido Aluysinho, desde já, suspeito para falar de Ali e concorcordo com Ocinei quanto ao título, apaixonado que sou por mitologia, em especial a Grega, mas Ali, o Impávido, realmente marcou a todos que como nós tivemos a sorte de acompanhar sua trajetória, a trajetória de um Deus…