Guilherme Carvalhal — Silvana retorna hoje

Carvalhal 14-07-16

 

 

O sorriso revigorado matutino causou espanto. Que se passa com ele, cotidianamente carrancudo, a tromba encolhida a espantar simpatia, bom dias proferidos entre dentes, um impulso de voz mais para dentro dos pulmões que para fora?

Atravessou majestoso a esquina e em efusão saudou os conhecidos. Os passos largos e os braços balançando obliteravam a memória do sujeito entrevado, de articulações densas e enferrujadas. Parecia renascido, ou então evoluído:

— Quero as mais belas flores disponíveis — disse à jovem vendedora da banca na praça — Monte para mim um ramalhete, não qualquer um, mas o mais belo, pois o entregarei à mais linda de todas as mulheres. Não devo dizer a ninguém, mas hoje Silvana volta.

A moça o felicitou sem saber o porquê e entregou o feixe de rosas vermelhas, amarelas e brancas. Pagou e deixou o troco, em um mútuo arfar de contentamento.

Mais adiante, em uma banca de frutas, pediu ao atendente os pêssegos mais amarelos e maduros:

— Silvana retorna hoje e quero agradá-la. Essas são suas frutas preferidos e desejo que tenha a maior das satisfações quando chegar.

Munido do saco e da alegria, ele enfiou-se radiante pelos corredores do prédio até seu cubículo. Do porteiro ao vizinho de área de trabalho, todos se espantaram perante sua nova postura. Nem piou com o barulho da betoneira trabalhando no prédio ao lado, motivo constante de suas reclamações. O mal hálito da supervisora passou desapercebido, até respirável:

— Ué? — essa interjeição coletivamente ditou a tônica dessa jornada.

Uma mais afoita não se conteve e precisou perguntar qual a razão da repentina satisfação, da mudança abrupta de hábitos:

— Hoje Silvana retorna para casa, por isso o meu dia está mais completo e feliz.

Como ninguém sabia de sus vida particular, todos o parabenizaram crentes da ranhetice ser fruto de brigas conjugais e que a estabilidade reencontrada o deixava mais equilibrado e sereno. A menina do RH o analisou ao longe, repassando as aulas da faculdade onde estudou questões de motivação. “Tudo aquilo faz sentido”, concluiu.

Ao fim do expediente, saiu com uma saudação sonora, despedindo-se afetuosamente, indicando a bela noite a lhe aguardar. Parou pelo caminho e comprou um vinho no mercado, dizendo ao caixa que escolheu um chileno de safra especial especialmente para beber com Silvana, que finalmente regressava para casa.

Quando entrou em casa, Silvana estava sentada ao sofá, os pés para cima, a televisão ligada:

— Amor, é tão bom tê-la de volta após todos esses anos. A saudade me matava e espero tudo igual a quando nos conhecemos, prometo ser um homem melhor, mais simpático, mais tolerante. Juro que jamais irei cometer os mesmos erros de antes. Tudo será melhor de agora em diante, sem as mesmas discussões, sem briga nem nada. Quero amá-la pelo resto da minha vida, nada além disso.

Silvana levantou com uma aparência de susto:

— Norberto, do que você está falando? Somo casados há 12 anos e nunca brigamos. Você não é perfeito, mas é um bom marido, apesar dessa cara sempre feia. Mas eu nunca iria embora. Sou feliz contigo. Nem saí hoje, fiquei o dia inteiro à toa. Aconteceu algo com você?

Aquele semblante feliz portado durante todo o dia se perdeu. Colocou o vinho e as flores sobre a mesa, apesar da pulsão por arremessá-los longe. Era um bom marido, conforme ela disse, e não iria praticar um ato de violência. Resignou-se a tomar banho, amofinado em sua própria pequenez aguardando que as flores murchassem.

 

fb-share-icon0
Tweet 20
Pin Share20

Este post tem 2 comentários

  1. Savio

    __Oba, muito bom! Já estou divulgando. Obrigado pelo texto.

  2. SÉRGIO PROVISANO

    Slvana, a que nunca foi, e assim nunca voltou, hoje lá estava e de lá nunca saiu, mas para Norberto, Silvana tinha ido e voltado até que caiu a ficha… ela nunca se fora e nunca iria. E eu estarei aqui, à espera de outras pérolas, Guilherme, após ter me exilado compulsoriamente, mas aos poucos, eu vou voltando… Adorei! Simples assim.

Deixe um comentário