“Poeta de horas vagas e concursos literários”, como definiria em verso meu amigo Adriano Moura, dediquei todo domingo neste “Opiniões”, entre março de 2015 e janeiro deste 2016, à divulgação de um ou mais poemas, sempre com uma apresentação em prosa.
Independente do que já tenha feito antes ou depois por aqui, confesso que aqueles domingos eram os mais prazerosos para mim na lida blogueira — com paralelo, apenas, na cobertura que este espaço virtual dedicou diuturnamente à Copa do Mundo de 2014.
Mas o fato é que veio 2016 e suas pesadas demandas de ano eleitoral, deixando pouco ou nenhum tempo para a confecção daquelas postagens dominicais que me eram tão caras — geralmente na sequência da divulgação da minha própria produção poética, de outro autor local, de um cânone da poesia brasileira e outro da poesia universal.
Foi na intenção de suprir esse hiato forçado pelo jornalismo político na literatura, que o blog resolveu convidar os escritores Fabio Bottrel, Guilherme Carvalhal, Paula Vigneron, Ocinei Trindade e Carol Poesia como colaboradores, para manter aceso o que não cabe ser extinto.
Além disso, para aproveitar no jornal impresso aquela produção virtual de quase um ano dedicado semanalmente à poesia, passei a assumir a produção da Folha Letras, na contracapa da Folha Dois, a cada primeira exta-feira do mês, em revezamento com Bottrel, com um autor da Academia Campista de Letras (ACL) e com o historiador, ambientalista, professor, crítico de cinema e escritor Aristides Soffiati, meu capitão.
Como a minha era uma produção prévia do blog que passou a ser adaptada ao jornal, não cheguei a reproduzir neste “Opiniões” o que daqui saiu para estampar a primeira Folha Letras de cada mês, até perceber que com a edição de hoje, já foram 10 as que escrevi, editei e publiquei — todas diagramadas pelo designer gráfico Eliabe de Souza, o Cássio Jr.
A única produção de tempo presente e não dedicada à poesia, foi a segunda, feita para anunciar o exitoso lançamento do livro de contos da Paula, seu primeiro, intitulado “Sete balas ao luar”.
Todas as outras nove, incluindo a de hoje, são dedicadas àquilo que o poeta e ensaísta Alexei Bueno equilibra entre duas definições: “a poesia é uma indecisão entre um som e um sentido” ou “é a arte de dizer apenas com palavras o que apenas palavras não podem dizer”.
Não por outro motivo, segue abaixo essa orgulhosa 10ª Folha Letras, seguida da sua transcrição, assim como a reprodução das nove anteriores — cujos textos originais, no blog, você, leitor, pode ter acesso clicando sobre cada página:
À deriva da última tarde do ano
Por Aluysio Abreu Barbosa
Era o último dia daquele 2013. O ano não havia sido dos melhores, mas tampouco dos piores, sobretudo pelo que deixara em definitivo para trás. Ademais, o novo calendário que se iniciaria a partir do dia seguinte traria uma Copa de Mundo de futebol no Brasil, a primeira desde a tragédia de 1950, e a chance de reconhecer nas urnas a falência do lulopetismo, alternando democraticamente o desastroso governo Dilma Rousseff.
Não fosse mais nada, estava no Rio, no enclave de pedra do Arpoador de Cazuza, entre Ipanema e a Copacabana que seria palco, a poucas horas, de um dos réveillons mais concorridos do mundo. Com o pote coletivo dos adultos perto de encher precocemente com os chopes do Informalzinho na Francisco Otaviano, que depois se mudaria dali, veio a sábia sugestão ao grupo, que as crianças adoraram, para tomarem um banho de mar todos naquele final de tarde, visando recobrar forças antes de uma noite e madrugada que prometiam.
Como seu filho já era adolescente e bom nadador, o deixou com os outros dois amigos adultos e seus respectivos filhos, ainda crianças, à beira da praia. Afastou-se deles em braçadas lentas até a parte mais solitária e profunda do Arpoador. Após nadar aluns minutos mirando às ilhas Cagarras, se virou e divisou seu grupo quase indistinto pela distância e luz já escassa, com crianças, adolescentes e adultos brincando em meio a outros banhistas, na comunhão praiana da parte mais rasa.
Relaxou o corpo com aquela visão, deixando-se boiar no leito sereno do mar, inebriado pelas carícias de Iemanjá sobre seu corpo e cabelos, “à deriva da última tarde do ano”. Antítese do João Valentão de Caymmi, só despertou dos sonhos do “sono dos peixes” quando as gotas gordas de chuva caíram sobre os olhos cerrados e escorreram pela boca semiaberta, lavando com água doce o sal dos seus lábios.
Olhou para a praia e seu grupo ainda estava lá. Virou-se de bruços sobre o mar, quebrou a coluna em ângulo de 90º e, com a experiência dos mergulhadores, deixou a gravidade levar-lhe naturalmente às profundezas. Doídos pela pressão que aumentava a cada metro de água vencido pelo movimento grave das pernas, os tímpanos ficaram atentos ao barulho próximo do motor a diesel de uma embarcação no final do horizonte.
Mais guiado pelo tato que pela visão, penetrando a água escura perto do pôr do sol, percebeu ter chegado ao fundo. Tomou um punhado da sua areia com a mão direita, verbalizou em sua mente o que tinha de dizer a quem achou que devia ouvir e voltou sem pressa à superfície. Só lá abriu os dedos para ver escorrer entre eles a areia liberta lentamente de volta ao oceano. Purificado nesse rito todo pessoal, nadou de volta à praia, em direção a mais um ano.
Como na música, emergiu do mar um homem que não precisava mais dormir pra sonhar.
réveillon
dorso sobre o dorso das ondas
calmas, d’além da arrebentação
arrepiou ao cafuné de iemanjás
à deriva da última tarde do ano
despertou do sono dos peixes
na fisga doce da chuva à boca
mas joão, com valentia de água
sonhou acordado todas as cores
arpoador trespassou sua alma
em oferenda na ponta da pedra
e seu corpo no tato de um cego
doeu ouvidos atentos ao barco
pegou a areia do fundo na mão
rio, 02/01/14
Isto merece um livro e com urgência! E preservando toda esta beleza de Arte Gráfica! Portanto, não poderá ser um livro tamanho “padrão” (A5 ou A6) mas, no formato grande, tipo “revista” ou “catálogo”. Seria uma pena perder a beleza da ilustração.
Torço para que o livro aconteça, e se for uma edição limitada vou querer o meu exemplar autografado.