Colaborador quinzenal do blog às quintas-feiras, em rodízio com a Paula Vigneron, o escritor e jornalista itaperunense Guilherme Carvalhal pede para avisar que, no próxima sábado (13), ele estará na Bienal do Livro de Campos, no estande da Associação de Imprensa Campista (AIC), às 19h, no evento “Autor com cachaça”. Coicindência ou não, a primeira convidada do mesmo evento, na abertura da Bienal do último sábado (6), foi a Paula:
— É uma excelente iniciativa, que ajuda a divulgar os escritores de Campos e da região! — ressaltou a também escritora e jornalista.
Abaixo, enquanto Carvalhal não desce o rio Muriaé em sua afluência com o Paraíba do Sul, segue seu conto:
Assusta aos frequentadores o constante estalar de ossos enterrados. Há um regurgitar subterrâneo inexplicável, capaz de causar as mais distintas teorias. Dizem originar-se dos mortos com assuntos não resolvidos do nosso lado e seu movimentar significa uma necessidade de se justificarem ou de acertarem as contas. Outros afirmam se tratar da inveja, de passivamente testemunharem a satisfação dos vivos com os comensais materiais e eles, eternamente soterrados na penúria e na escuridão, gritavam amargurados por uma existência à qual não mais pertenciam.
Muitos cientistas tentaram encontrar uma solução para esse fenômeno. Puseram imensos e potentes estetoscópios ligados a um computador para captar a origem sonora e pouca coisa tal instrumento revelou. Utilizaram de sonares e demais mecanismo de mensuração, sem nada de estranho apontar. Um grupo chegou com uma escavadeira querendo ir a fundo na solução do mistério, mas os moradores bloquearam sua entrada, preservando o sossego de seus finados.
À parte o efeito assustador do fenômeno, muitos encontraram algum divertimento e lidavam com plena naturalidade. Havia quem ali sentasse a apreciasse os ruídos ósseos à maneira como se ouvia piar de passarinho. Uma professora de música começou a percorrer batendo com sua baqueta por diversos pontos, querendo adestrar os restos mortais em ritmo uníssono e arranjar a primeira orquestra póstuma da história. Ela também chegou a transcrever as notas em partitura, ansiosa por reproduzir a legítima música fúnebre.
O mais curioso estava nos entes dos cadáveres. Esses, não se sabe se por misticismo ou por alienação mental, afirmavam compreender perfeitamente as mensagens transmitidas por um modelo semelhante ao código morse. Captavam o barulho e redigiam seus textos, acumulando mensagens a garranchos em seus armários.
Um certo clima de saudosismo se perpetuava. Os mortos nem pareciam assim tão mortos. Um senhor me confessou sua sensação e essa reflete o contexto geral. Afirma ele que, se os mortos de fato tocam música, é para promover uma imensa e alegre festa em seu reino.
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O projeto arquitetônico de João Venceslau visava a meta da total igualdade. Os croquis rabiscados estabeleciam plena uniformidade nas distâncias. De qualquer portão se poderia chegar a qualquer lápide com igual gasto de tempo. Pela mesma lógica, não havia diferença alguma na incidência de sol e chuva, estipuladas as posições objetivando a total simetria.
No fim das contas, o traçado ficou tortuoso. O mosaico de curvas para atrasar a chegada aos túmulos fisicamente próximos gerava reclamações. A equidade se deu por uma via pouco lógica, sendo todos identicamente afastados. Do pó ao pó, reverberava o autor da ideia, pois se após a morte cessavam as diferenças, cabia aos vivos zelar pela autenticidade dos desígnios divinos.
A perfeição desse propósito levou a um total planejamento dos velórios e dos cortejos. Autorizavam enterros apenas se houvesse exatamente 100 pessoas na cerimônia, nem mais nem menos. As famílias dos que excedessem esse total deveriam selecionar os mais distantes e proibi-los de comparecer. As daqueles cuja vida não promovesse o alento dos demais precisariam sair à cata de pessoas até obter a cota mínima. Nos casos de mendigos e pessoas sem parente, a municipalidade contratava carpideiras para dignificar o sepultamento.
Ao longo do tempo notou-se uma insistente assimetria nas visitações. Alguns defuntos arrastavam multidões a chorar, enquanto outros eternizavam-se na solidão. A disparidade feriu aos propósitos e o arquiteto pôs-se a pensar, não satisfeito em assistir à geniosidade das pessoas maculando seu tão trabalhoso esquema. Chegou a contratar mais carpideiras para atender aos isolados e calculou uma média de visitações, limitando as visitas mais volumosas. Perpetuaram-se as discrepâncias, já que diante de alguns túmulos caíam lágrimas sinceras e em outros secas gotas forçadas. O arquiteto se entristeceu e trancou-se em seu quarto por constatar que seus esforços em padronizar a estrutura jamais alcançariam o comportamento humano.
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Uma estranha convergência extraplanar se testemunha nesse local. Para se entender, é preciso começar pelas estrutura arquitetônica. A parte térrea é composta por uma espécie de mausoléu com paginação romana. Uma estrutura normal, rodeada de arbustos e begônias. Há uma entrada larga em dupla porta marmórea e em seu interior uma escada descente.
Nos níveis inferiores ocorre o mistério. Há um complexo labirinto de entradas e saídas muitíssimo bem sinalizado por placas visíveis graças a uma luz azulada existente em todos os compartimentos sem origem especificada. À medida em que se desce se descortinam informes diversos, como um setor dos atingidos da bomba de Hiroshima ou das vítima incineradas no Hindenburg. Emersos de diversos espaços geográficos, de povoados vietnamitas, bolivianos, eslovenos, quenianos e quaisquer outros locais, se faziam presentes. Os esgares dos combalidos na peste negra, nos navios negreiros e pelas tropas de Gengis Khan assomavam pelos cantos e globalizavam o luto.
Não havia um final para aquele complexo. Por mais que se perambulasse, mais novidades apareciam e mais o visitante se perdia na quantidade infinita de residentes. Explicavam aquele local como una zona de convergência de todos os falecidos do mundo. Cada pessoa morta em qualquer local e em qualquer época ali repousava. Assim, pessoas de longínquos recantos que não puderam por força maior enterrar seus entes ali compareciam atrás de alguma proximidade. Consequentemente, pelas galerias ecoavam conversas em muitos idiomas e se prestavam homenagens das mais diversas religiões.
Por mais reconfortante que seja a possibilidade de dar um destino digno aos mortos desaparecidos, reinava ali uma lamúria multiétnica, oriunda de cada ponto cardinal e chegavam preces em tons de saudade e desespero. O vórtice de melancolia tornava esse o lugar mais triste no planeta.
Muito bom.
Sim, Guilheme Carvalhal, eu vi, li, a descrição pós-moderna do Hades, o mundo inferior que os antigos gregos definiram como o lugar dos mortos, mas sem o Caronte, o Barqueiro das almas, para cobrar a moeda de pedágio, nesse novo mundo inferior, todos somos de alguma forma iguais, mas diferentes, planteados, carpidos de formas distintas mas sempre chorados… Se o choro é sincero ou contratado, isso não importa, houve choro, mas o que mais pode nos angustiar, é a angustia do arquiteto, que se trancou no quarto e dele não sabemos o destino, mas sabemos, ou pensamos saber, que todos iremos um dia, para o Hades e por via das dúvidas, Guilherme, eu ando com minha moeda nos bolsos, pois Caronte não deixaria minh’alma fazer a passagem pelos próximos cem anos. Adorei o conto!
Um conto que deu gosto de ler, vou aguardar os próximos.