Era noite de Natal.
Enquanto que, para alguns, a noite do dia vinte e cinco de dezembro possa somente comportar um descanso modorrento junto da família, apenas passível de ser interrompido pelos ataques vorazes às sobras da ceia compartilhada na véspera, para outros, o Natal é meramente mais um dia de trabalho. Na maior metrópole da América Latina, nem mesmo o mais importante dos feriados cristãos é capaz de fazer a cidade parar. Na estação de metrô Pedro II, localizada no centro da cidade de São Paulo, os sons emitidos pelos trilhos e vagões abafavam o barulho dos passos apressados das pessoas que ali chegavam e partiam em direção a outros destinos.
Naquela noite, um homem corpulento de cinquenta e quatro anos vendia biscoitos, balas e refrigerantes em frente à entrada da estação de metrô, tal como fizera diariamente, incluindo os finais de semana e feriados, nas últimas duas décadas. Luiz Carlos Ruas, o “Índio”, como era conhecido entre seus pares devido à cor parda e aos cabelos lisos, havia combinado com a esposa, Maria de Oliveira, que encerraria as vendas daquele dia por volta da meia noite. Decidiu trabalhar no Natal porque o dinheiro estava escasso e o casal precisava quitar a dívida do IPVA.
A hora de embalar seu material de trabalho e retornar a casa já se aproximava, quando percebeu um pequeno tumulto a alguns metros de distância. Como o entorno da estação serve de abrigo para alguns moradores de rua, fenômeno corriqueiro na cidade de São Paulo, um dos “residentes” daquele espaço protestava contra dois rapazes que urinavam justamente no pedaço de chão que frequentemente lhe servia de cama. Homossexual, apelidado de “Brasil”, o morador de rua não poderia supor que a reação aos seus protestos seria tão desproporcionalmente violenta. Começou a ser surrado, junto de outra moradora de rua, a travesti Raíssa, pelos dois jovens rapazes, que portavam, cada um, um “soco inglês”. Ao notar a covardia que se desenrolava diante de seus olhos, Luiz Carlos se lançou na direção do conflito, tentando acalmar os ânimos dos agressores.
Através das imagens registradas pelas câmeras de segurança da estação, podemos ver a travesti Raíssa correndo em disparada em direção ao metrô, perseguida por Alípio Rogério dos Santos, que sustentava uma expressão facial desfigurada por um ódio implacável e, num primeiro momento, inexplicável. Em seguida, vemos Luiz Carlos tentar, ele também, escapar do ímpeto assassino da dupla de agressores. Com mais idade nas costas e maior peso corporal, Luiz Carlos não foi bem sucedido como os outros dois moradores de rua que conseguiram fugir. Quando caiu no chão, Ruas não conseguiu oferecer qualquer resistência aos golpes que se seguiram.
Dezoito segundos.
Este foi o tempo durante o qual Luiz Carlos foi golpeado ininterruptamente. Durante este curto espaço de tempo, transeuntes orbitavam em torno da cena. Algumas pessoas corriam assustadas, temendo por suas próprias vidas; outras permaneciam paralisadas, fitando estuporadas o brutal assassinato. Os agressores então se afastam, deixando o corpo inerte no chão. Após cinquenta e um segundos, a dupla retorna para um novo “round” de socos e pontapés. Miram sempre o rosto. Precisam se certificar de que ali já não existe vida. Espancam o imóvel corpo do ambulante, por mais vinte e três segundos.
Luiz Carlos Ruas era casado há 30 anos com sua esposa, com quem não teve filhos. Paranaense, torcedor do Palmeiras, Ruas era originário de família de vendedores ambulantes, e trabalhou dos nove aos cinquenta e quatro anos. Com o dinheiro que conseguiu juntar com o trabalho, comprou um pequeno apartamento no centro de São Paulo. Grande parte de sua vida laboral foi marcada pela informalidade, sem direito a descanso, férias ou aposentadoria. Ruas era um brasileiro “batalhador”, termo que pego emprestado do sociólogo Jessé Souza, que o cunhou para classificar uma grande massa de trabalhadores brasileiros que possuem parcos direitos trabalhistas, tendo, como suporte, quase que somente a própria força de vontade, a tenacidade do corpo e um pouco de fé e sorte. Quem poderá saber quantos anos mais Ruas teria se dirigido cotidianamente à estação para vender seus quitutes, não tivesse esbarrado com o ódio bestial naquela noite de vinte e cinco de dezembro?
O crime chocou o país pela covardia e pela torpeza, suas principais características. Para mim, é custosa a tentativa de interpretar corretamente os sentidos da ação dos assassinos. A princípio, cogitou-se a possibilidade de os homens pertencerem a alguma “gangue” de caráter “neonazista”, daquelas nas quais seus membros saem pelas ruas com o objetivo de atacar cidadãos pertencentes a minorias. Pessoas próximas aos assassinos relataram que estes eram conhecidos por serem donos de um temperamento explosivo. Indo nesta direção, especulou-se que o ódio dos dois rapazes fora inflamado pela homofobia. Uma vez que não conseguiram fazer jorrar o sangue dos homossexuais envolvidos na história, o ódio voltou-se à terceira vítima, a que fora mais incapaz de correr ou se esconder.
O ódio que movia os autores do crime não deve ser entendido como uma mera característica particular dos indivíduos. Este sentimento, que é capaz de fazer um homem surrar um semelhante indefeso até a morte, é gestado, fomentado e ancorado por algumas instituições da sociedade. Quando determinadas ideias imbuídas de ódio são propagadas, mobilizando nossos medos e paixões mais primitivas, e atingem personalidades demasiadamente desequilibradas, tendem então a produzir resultados como este. Tal como sucedeu no caso do homem que promoveu uma chacina em Campinas, no último dia 31, e que justificou seu ato amparando-se em discursos de ódio que vem ganhando cada vez mais potência nos últimos anos, nos remetendo a tempos sombrios que a humanidade jurou nunca mais reprisar.
Luiz Carlos Ruas foi mais uma vítima deste ódio ao outro. E morreu por ousar defender outros mais indefesos que ele. Por não se calar diante da covardia, perdeu a vida. Quando soube do caso, a primeira coisa que me veio à cabeça foi a seguinte pergunta: “Quem, hoje em dia, arrisca a vida por alguém?”. Quantas vezes, por medo de sermos atingidos, não ficamos paralisados diante de injustiças que são cometidas perto de nós?
Luiz Carlos Ruas já era um herói por sobreviver às condições adversas que marcaram sua vida desde o início. Morreu também num ato de heroísmo, pelo ímpeto de defender outras pessoas que, como ele, enfrentam penosos obstáculos sociais. Que a perda dessa vida nos inspire forças para enfrentar as injustiças e a crescente onda de cólera e intolerância que nos atinge a todos, enquanto sociedade.
Registro aqui o meu lamento e a minha homenagem a Luiz Carlos Ruas.