Após “Ferreira Gullar — Autobiografia poética”, concluído o segundo livro das férias. A leitura de “O grande Gatsby”, de F. Scott Fitzgerald (1896/1940), justifica que romance e seu autor sejam considerados entre os grandes do séc. XX. Na comparação com o estilo conciso de Ernest Hemingway (1899/1961), talvez maior referência do Modernismo na prosa dos EUA, a escrita fluída, mas caudalosa de Fitzgerald, endossa a distinção entre os dois feita por outro escritor, o brasileiro Luis Fernando Verissimo: “Hemingway é um seco; Fitzgerald, um suculento”.
Na verdade, como narra em seu biográfico “Paris é uma festa”, sobre os encontros e desencontros dos grandes modernistas das artes do mundo na capital francesa dos “loucos” anos 1920, sempre regados a excessos de álcool, Hemingway era não só conterrâneo e contemporâneo, mas amigo próximo de Fitzgerald. O primeiro leu antes de ninguém as cópias ainda não revisadas de “O grande Gatsby”. Ambos integravam aquilo que a também escritora Gertrude Stein (1874/1946), outra estadunidense “exilada” em Paris, batizaria de “geração perdida”.
Considerada a obra prima de Fiztgerald, “O grande Gatsby” é leitura obrigatória nas universidades do mundo que estudam a literatura dos EUA. E foi novamente popularizada com sua mais recente adaptação ao cinema em 2013, pelo diretor australiano Baz Luhrmann, tendo Leonardo DiCaprio como protagonista. Na verdade, foi a quinta transposição do livro às telas, depois de Jay Gatsby ter sido encarnado em filmes homônimos pelos atores Warnen Baxter (1926), Alan Ladd (49) e Robert Redford (74), além de Toby Stephens, numa produção para a TV de 2000.
A trama gira em torno da trágica história de amor idealizado, mesmo após consumado e perdido cinco anos antes, do noveau riche Gastby pela aristocrática Daisy Buchanan, casada e infeliz com seu igual em extrato social: o ex-astro universitário de futebol americano Tom Buchanan, asumido racista, misógino e marido infiel. Completa os personagens principais o corretor de ações Nick Carraway, primo de Daisy e vizinho de Gatsby, que passa a ser um elo na obsessessão deste em reconquistar a amada. Amor defindo assim por seu cupido:
“Quando me aproximei deles para me despedir, percebi que a expressão de assombro tinha retornado ao rosto de Gatsby, como se uma leve dúvida tivesse surgido em sua mente, questionando aquele momento de felicidade. Quase cinco anos! Devia ter havido momentos, mesmo naquela tarde, em que Daisy não correspondia totalmente a seus sonhos… Não por culpa dela, mas devido à colossal vitalidade da ilusão que ele alimentara. Uma idealização que havia crescido e se tornado maior que ela, maior que qualquer coisa no universo. Ele se lançara dentro do sonho com paixão criadora, acrescentando detalhes todo o tempo, decorando-o com cada pluma brilhante que passava em seu caminho. Não há intensidade de ardor ou de euforia que possa desafiar aquilo que um ser humano é capaz de armazenar em seu fantasmagórico coração”.
É Carraway quem narra restrospectivamente os fatos. Com o auxílio da jogadora de golfe Jordan Baker, sua namorada de ocasião e amiga de Daisy, ele atua como cupido para um amor do passado do seu vizinho misterioso, famoso pela ostentação das festas que promove na sua mansão de West Egg, Long Island, tradicional balneário marinho de Nova York. Os personagens principais têm posições sociais bem mais privilegiadas do que Myrthle Wilson, amante de Tom Buchanan e esposa insatisfeita do inexpressivo dono de posto George B. Wilson.
E não é por acaso que o romance cruza o niilismo da burguesia estadunidense com a desumanização do seu proletariado, naquele mesmo período de pujança econômica dos EUA, entre o fim da I Guerra Mundial (1914/18) e a Grande Depressão de 1929. Gatsby, Daisy, Tom, Carraway e Jordan dividem suas vidas de colorido artificial, transitando de carro ou trem entre Nova York e Long Island. E, exatamente no meio do caminho, fica o refugo do “sonho americano”, onde o casal Wilson habita no cotidiano dos “homens cinzentos” da Revolução Industrial.
Na rica descrição de Fitzgerald, pela boca de Carraway:
“Mais ou menos na metade do caminho entre West Egg e Nova York, a rodovia rapidamente se une à linha férrea e corre ao longo dela por uns quatrocentos metros, de modo a afastar-se de uma certa área desolada. É o vale das cinzas, uma fazenda fantástica em que as cinzas crescem como trigo em sulcos, colinas e jardins grotescos; em que as cinzas assumem a forma de casas e chaminés de onde sobe a fumaça; e em que, finalmente, por meio de um esforço transcendental, tomam o aspecto de homens cizentos, que se movem devagar, como se até mesmo eles estivessem se defazendo no ar empoeirado. Por vezes, surge uma linha de vagões cinzentos que se arrasta ao longo de trilhos invisíveis, produzindo um barulho apavorante, e então para; imediatamente, o enxame de homens cinzentos, carregando pás de chumbo, levanta uma nuvem impenetrável de poeira, que esconde por inteiro sua ação obscura da visão dos transeuntes”.
Ao deixar para trás uma origem social não muito diferente, na tentativa de ofertar a mesma vida de conforto material na qual Daisy foi criada, Gatsby transforma em pesadelo próprio o “sonho americano” — aquele mesmo que Donald Trump foi eleito presidente dos EUA, quase um século depois, na promessa de resgatar. Ao custo mais alto possível, a execução da fatura revela o saldo devedor da sociedade burguesa e materialista daquele começo de século 20 — que, no milênio seguinte, ainda parece estar em aberto.
Pobres ou ricos, burgueses ou proletários, todos os personagens centrais têm em torno de 30 anos. Como Fitzgerald, Hemingway e sua mesma “geração perdida” naqueles “anos loucos” entre 1918 e 1929, comungam os dilemas de quem saiu da juventude e da I Guerra — “migração daquelas hordas de bárbaros teutônicos” — rumo à maturidade. E nenhum deles parece cumprir seus ritos de passagem com mais sensibilidade do que Carraway:
“Comecei a gostar de Nova York, das sensações aventurosas e excitantes da noite e da satisfação que a constante passagem de homens, mulheres e veículos dá aos olhares inquietos. Gostava de subir pela Quinta Avenida e escolher mulheres de aspecto romântico no meio da multidão e imaginar que dentro de alguns minutos eu entraria em suas vidas, sem que jamais alguém soubesse ou desaprovasse. Algumas vezes, em minha imaginação, eu as seguia até seus apartamentos nas esquinas de ruas obscuras e elas se viravam e sorriam para mim, antes de desaparecerem por alguma porta e se perderem na escuridão cálida. No crespúsculo encantado da metrópole, sentia algumas vezes uma solidão assombrosa e percebia que outros também a sentiam, jovens pobres que gastavam o tempo em frente às vitrinas, esperando a hora do jantar solitário em qualquer restaurante, jovens funcionários de escritório perdidos no crepúsculo, desperdiçando em noites vazias os momentos mais pungentes de suas vidas”.
É o mesmo Carraway, primo de Daisy e vizinho de Gastby, que conecta seu “espanto” gullareano com o dos holandeses que, expulsos de Pernambuco, vão à América do Norte, no séc. XVII, fundar Nova Amesterdã — mais tarde Nova York. E, como os protestantes holandeses levaram com eles a comunidade judia que se assentara em Recife, inadmissível no catolicismo português, instiga pensar que Steven Spielberg, Woody Allen e Bob Dylan, entre outros, hoje pudessem ser pernambucanos.
Nos cinco últimos parágrafos do livro, pelo seu narrador, o desfecho da história de um verão:
“Na última noite, com minhas bagagens empilhadas e meu carro vendido ao dono do armazém, atravessei o gramado e fui olhar pela última vez aquele imenso e incoerente fracasso que pretendia ser uma casa, Em um dos degraus brancos, uma palavra obscena, rabiscada por algum menino com um pedaço de tijolo, destacava-se claramente ao luar, eu eu a apaguei com cuidado, esfregando a sola do meu sapato na pedra. Então, fui até à praia e deitei minhas costa na areia.
A maioria das grandes residências contruídas junto à praia estava fechada, agora que o verão havia terminado; e praticamente não havia luzes, exceto o brilho impreciso e ondulante de um ferryboat que percorria o Estreito. E, à medida que a lua se erguia cada vez mais alto, todas aquelas casas desnecessárias começaram a se dissipar, até que aos poucos tomei consciência da velha ilha que florescera em outros tempos ante aos olhos dos marinheiros holandeses, como se fosse um seio verde e dadivoso do Novo Mundo. Suas árvores derrubadas, as grandes árvores que tinham dado lugar à casa de Gatsby, haviam sido motivo de admirados e respeitosos sussurros que refletiam o último e maior de todos os sonhos humanos; durante um momento, breve, mais cheio de encantamento, os homens devem ter prendido a respiração diante deste continente, compelidos a uma tensa contemplação estética que nem compreendiam nem desejavam, face a face, pela última vez na história, com alguma coisa que correspondia plenamente à capacidade que os seres humanos têm de maravilhar-se.
Fiquei sentado na praia, meditando sobre o velho mundo desconhecido e pensando no deslumbramento de Gatsby quando pela primeira vez identificou a luz verde que ficava acesa na ponta do acoradouro como a luz da casa de Daisy. Ele percorrera um longo caminho até chegar a este gramado que o luar tornava azul, e seu sonho deve ter parecido tão próximo que seria praticamente impossível deixar de alcançá-lo. Ele não sabia, no entanto, que o sonho havia ficado para trás, perdido em algum lugar daquelas vasta obscuridade que es estendia além da cidade, em que os campos escuros se estendiam muito além da noite.
Gatsby acreditara na luzinha verde, naquele futuro orgiástico que ano após ano se afasta de nós. O futuro já nos iludiu tantas vezes, mas não importa… Amanhã correremos mais depressa e esticaremos nossos braços um pouco mais além até que, em uma bela manhã…
E assim nós prosseguimos, barcos contra a corrente, arrastados incessantemente de volta ao passado”.
Contra a corrente, “só pra exercitar”, navegue pelos trailers de “O grande Gastby” em suas versões às telas de 1929, 1949, 1974, 2000 e 2013:
“O melhor lugar do mundo é dentro de um abraço”