“Enquanto houver um oprimido no mundo, haverá o socialismo”
(Oscar Niemeyer)
O seu nome é José. É negro, está com 37 anos e sua compleição física me autoriza a imaginar que sua ancestralidade é da etnia bantu:alto, pernas longilíneas, magro, nação soberana na África subsaariana, até a chegada dos mercadores de escravos. Mas, ele cumprindo o destino atávico dos seus zilavôs, é um homem desatado de qualquer nó social, livre, solitário, meu vizinho na república autônoma da Bicuíba, às margens do rio do Colégio, nas cercanias de São Fidélis de Sigmaringa,mora embaixo de uma ponte e, de vez em quando, de acordo com rio Paraíba do Sul, “do calendário das águas que vêm de cima”, sai no rústico barco, a remo, para uma pescaria artesanal.
Casar não está nos seus planos. “Arranjar parceira para passar fome comigo? Larga isso!”. Avesso a fotografias, evita festas e aglomerações. Sobrevive com o mínimo e faz qualquer sacrifício para conseguir uma boa barganha. Às vezes, em menos de uma semana, apanha de volta o objeto que barganhou, que, em seguida, será, de novo, fruto de negociação. O prazer é o ato de barganhar. Pode ser uma bicicleta por 10 quilos de robalo; um fusca, de ano indeterminado, por uma vaca que dá 10 litros de leite por dia; um canivete suíço por uma gaita. E assim vai “gastando a vida, na humildade”, como gosta de dizer.
Trouxe meu amigo Zé aqui para falar do comunicado da Oxfam – uma organização não governamental – que divulgou um dado estarrecedor, durante o Encontro das maiores economias do mercado planetário, em Davos, na Suíça, na semana que passou: que, apenas e tão somente, 8 magnatas detêm o mesmo capital que 3 bilhões e 600 milhões de habitantes da Terra, metade do total da população economicamente pobre.
Este é o melhor dos mundos para os democratas que defendem o regime das liberdades individuais acima da harmonia coletiva. A Democracia seletiva, aquela que permite, rigorosamente, tudo que há de melhor, desde que você tenha dinheiro pra comprar. Pouco lhes importa que só há bilionários, quase trilhiardários, porque há bilhões de Zés espalhados pelos continentes, em moradias indignas, dependurados de cabeça pra baixo na linha da miséria. Estão se lixando para a verdade incontestável que a economia é uma só e que os abismos sociais são, neste sistema, absolutamente, “consequências naturais”.
Os capitalistas inveterados usam sempre o mesmo bordão, como auto-defesa do establishment:
— Se não estás satisfeito, vá para Cuba, China, Coréia do Norte ou à Puta que lhe pariu! Lá, não estarias escrevendo estas mal traçadas linhas. Estarias no paredão.
É esse argumento que sustenta sua estupidez; ignoram, por conveniência, a lição basilar do filósofo inglês Thomas Hobbes, no século 17, segundo a qual, “o homem é o lobo do homem”. E que, se não houver uma força concentradora capaz de arbitrar comportamentos sociais, restará impune a autofagia social. Ainda mais quando não há freios para as fortunas criminosas.
Fingem que não vêem os paredões das ruas das cidades conflagradas, dentro dos presídios, nos hospitais sucateados, no trânsito descontrolado, na infância violentada, na escola preparada para impedir a construção do homem novo. Carpem seus pecados capitais à sua maneira, socorrendo, nas datas santas, a miséria abjeta, que avistam pelos vidros dos carros ou pela tela curva da TV. Distribuem bolas de plástico e cestas de Natal, uma vez, por ano e acham que assim ficam quites com seu deus nômade.
Não me detenho no pensamento reles de esquerda e direita, do Estado que fuzila ou do Estado que se omite diante do fuzilamento diário, sobretudo, de crianças inocentes. Ao invés da ocupação de lados ideológicos, grandes causas.
Falo de alternativas para esta dicotomia anacrônica, este maniqueísmo conveniente. Sobre a ideia do socialismo fraterno, “pairam as sombras aterradoras de Fidel e do ouro de Moscou”, “a madame de Mao e a revolução cultural”, “Lênin e os assassinatos em massa”. Porca miséria. De outro lado, contamos os mortos e desaparecidos das ditaduras sul-americanas, as mães da Praça de Maio, a Revolução dos Cravos, a Comuna de Paris, o Holocausto. Há um prazer mórbido dos ideólogos de mensurarem as dores atrozes do mundo. E não aprender com elas e evita-las no futuro. Ficaremos até quando nessa masturbação intelectual, contando nossos mortos?
O planeta, Gaya, pede socorro “estamos maltratando, por dinheiro, a Terra, que é a nave, nossa irmã”
O futuro quer novidades, senhores. Os países que já resolveram suas aberrações políticas, encurtaram os fossos sociais e, como resultado, reduziram a violência, melhoraram o sistema de saúde e avançam para conquistas humanas e respeito às liberdades. O Brasil ainda é um país cafona. Porque a corrupção é cafona. É anacrônica, atrasada, demodê. Chique é ser honesto. O nosso parlamento é um antro, uma ilha próspera, cercada de lixo, inoperante, perdulária, uma caterva, um valhacouto de bandidos.
Aqui, em Pindorama, estamos a léguas do razoável.
Há que se instituir, com a urgência que a fome e a dor coletivas impõem, uma nova ordem mundial. Zé, sob a ponte, em sua “humílima residência” e seus iguais esperam esse gesto de nós.